Professorices: Garcia da Orta

23-03-2005
marcar artigo

Sexta-feira, Novembro 05, 2004 Garcia da Orta Há dias, dei os parabéns à Rua da Judiaria pelo seu aniversário e falei do contributo inestimável de judeus e cristãos-novos para a sociedade portuguesa. Vou falar de duas figuras notáveis, para me cingir só à minha área: Garcia da Orta e Ribeiro Sanches. Hoje, vou ficar pelo primeiro.

Garcia da Orta é o patrono do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, e muito bem, porque é o verdadeiro fundador da medicina tropical. Comecemos pelas notas biográficas secas. Nasceu, provavelmente, em 1499, em Castelo de Vide, filho de Fernando (Isaac) da Orta e de Leonor Gomes, possivelmente judeus conversos provenientes de Espanha. Em data incerta, parte para Salamanca e Alcalá de Henares para estudar medicina e regressa em 1523. Em 1530, é professor de Filosofia Moral na Universidade de Lisboa - aprovado só à terceira vez! - e, em 1534, parte para Goa, onde passa a residir, a trabalhar como médico e no comércio de especiarias e pedras preciosas. Em 1563, publica o seu Colóquios dos Simples e Drogas e Coisas Medicinais da Índia. Morre em 1568, mas não tem a paz eterna, porque, em 1580, é condenado postumamente pela Inquisição e os seus ossos foram desenterrados e queimados. Toda a sua família foi perseguida e a sua irmã Catarina morreu mesmo na fogueira.

Na Índia, estuda a medicina tradicional hindu e planta o seu próprio jardim botânico, com espécies recolhidas por todo o subcontinente e m Ceilão. Experimenta o uso terapêutico das variadas plantas que desconhecia e, ao mesmo tempo, interdisciplinarmente - outro exemplo - estuda as doenças tropicais e faz a sua primeira catalogação, com indicações terapêuticas específicas. Foi simultaneamente botânico e médico, e excelente em ambas as coisas.

O livro não anda muito por aí. A edição que tenho, de 1891, dirigida e anotada pelo Conde de Ficalho, é uma preciosidade. Não vou recomendar aos leitores que o leiam de fio a pavio, mas folheiem-no e leiam páginas magníficas de sabedoria e de curiosidade científica perante um novo mundo que lhe aparecia. Pedro Nunes, na matemática, é considerado o expoente do nosso humanismo, na ciência. Mas, ao mesmo tempo, Garcia da Orta, com dois dos seus quase contemporâneos, D. João de Castro e, antes, Duarte Pacheco Pereira, formam, a meu ver, o trio dos magníficos que rompem com a escolástica e fundam a ciência moderna, centrada na observação e na experiência. Simbolicamente, juntaria Camões. Uns versos seus, num poema dedicado ao Conde de Redondo, não podem deixar de ser uma alusão a Garcia da Orta: "O fruto daquella Orta onde florecem / Prantas novas, que os doutos não conhecem. / Olhai que em vossos annos / Produze huma Orta insigne varias ervas / Nos campos lusitanos, / As quaes, aquellas doutas protervas / Medea e Circe nunca conheceram, / Posto que as leis da Magica excederam". E é a estes homens que Camões se refere no "saber de experiência feito", ou quando critica a escolástica: "E digam agora os Sábios da escritura / que segredos são estes os da natura".

Esta revolução mental não nasce só do contacto com a Índia. Diz o Conde de Ficalho que, para Garcia da Orta, ainda professor em Coimbra, "a sua paixão pelo estudo das coisas do mundo o leva a ser um professor conceituado e querido. Garcia da Orta ensina a seus estudantes a importância do estudo das coisas do mundo, o valor da observação, o valor dos sentidos que vêem o novo e o inusitado e junto com o intelecto trata de inquirir e descobrir coisas que eram até então vistas de maneira menos abrangente e verdadeira".

PS (6.11.2004) - A versão inicial desta entrada tinha lapsos inadmissíveis, de descuido meu na escrita, como dar a universidade em Coimbra sete anos antes da transferência e chamar Diogo a Duarte Pacheco Pereira. Henrique Jorge chamou-me a atenção, o que agradeço, o que me impôs a correcção do texto.

Sexta-feira, Novembro 05, 2004 Garcia da Orta Há dias, dei os parabéns à Rua da Judiaria pelo seu aniversário e falei do contributo inestimável de judeus e cristãos-novos para a sociedade portuguesa. Vou falar de duas figuras notáveis, para me cingir só à minha área: Garcia da Orta e Ribeiro Sanches. Hoje, vou ficar pelo primeiro.

Garcia da Orta é o patrono do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, e muito bem, porque é o verdadeiro fundador da medicina tropical. Comecemos pelas notas biográficas secas. Nasceu, provavelmente, em 1499, em Castelo de Vide, filho de Fernando (Isaac) da Orta e de Leonor Gomes, possivelmente judeus conversos provenientes de Espanha. Em data incerta, parte para Salamanca e Alcalá de Henares para estudar medicina e regressa em 1523. Em 1530, é professor de Filosofia Moral na Universidade de Lisboa - aprovado só à terceira vez! - e, em 1534, parte para Goa, onde passa a residir, a trabalhar como médico e no comércio de especiarias e pedras preciosas. Em 1563, publica o seu Colóquios dos Simples e Drogas e Coisas Medicinais da Índia. Morre em 1568, mas não tem a paz eterna, porque, em 1580, é condenado postumamente pela Inquisição e os seus ossos foram desenterrados e queimados. Toda a sua família foi perseguida e a sua irmã Catarina morreu mesmo na fogueira.

Na Índia, estuda a medicina tradicional hindu e planta o seu próprio jardim botânico, com espécies recolhidas por todo o subcontinente e m Ceilão. Experimenta o uso terapêutico das variadas plantas que desconhecia e, ao mesmo tempo, interdisciplinarmente - outro exemplo - estuda as doenças tropicais e faz a sua primeira catalogação, com indicações terapêuticas específicas. Foi simultaneamente botânico e médico, e excelente em ambas as coisas.

O livro não anda muito por aí. A edição que tenho, de 1891, dirigida e anotada pelo Conde de Ficalho, é uma preciosidade. Não vou recomendar aos leitores que o leiam de fio a pavio, mas folheiem-no e leiam páginas magníficas de sabedoria e de curiosidade científica perante um novo mundo que lhe aparecia. Pedro Nunes, na matemática, é considerado o expoente do nosso humanismo, na ciência. Mas, ao mesmo tempo, Garcia da Orta, com dois dos seus quase contemporâneos, D. João de Castro e, antes, Duarte Pacheco Pereira, formam, a meu ver, o trio dos magníficos que rompem com a escolástica e fundam a ciência moderna, centrada na observação e na experiência. Simbolicamente, juntaria Camões. Uns versos seus, num poema dedicado ao Conde de Redondo, não podem deixar de ser uma alusão a Garcia da Orta: "O fruto daquella Orta onde florecem / Prantas novas, que os doutos não conhecem. / Olhai que em vossos annos / Produze huma Orta insigne varias ervas / Nos campos lusitanos, / As quaes, aquellas doutas protervas / Medea e Circe nunca conheceram, / Posto que as leis da Magica excederam". E é a estes homens que Camões se refere no "saber de experiência feito", ou quando critica a escolástica: "E digam agora os Sábios da escritura / que segredos são estes os da natura".

Esta revolução mental não nasce só do contacto com a Índia. Diz o Conde de Ficalho que, para Garcia da Orta, ainda professor em Coimbra, "a sua paixão pelo estudo das coisas do mundo o leva a ser um professor conceituado e querido. Garcia da Orta ensina a seus estudantes a importância do estudo das coisas do mundo, o valor da observação, o valor dos sentidos que vêem o novo e o inusitado e junto com o intelecto trata de inquirir e descobrir coisas que eram até então vistas de maneira menos abrangente e verdadeira".

PS (6.11.2004) - A versão inicial desta entrada tinha lapsos inadmissíveis, de descuido meu na escrita, como dar a universidade em Coimbra sete anos antes da transferência e chamar Diogo a Duarte Pacheco Pereira. Henrique Jorge chamou-me a atenção, o que agradeço, o que me impôs a correcção do texto.

marcar artigo