PALAVROSSAVRVS REX: BEBIANA, CORAÇÃO-POCILGA

23-05-2009
marcar artigo


Bebiana nunca foi uma criança fácil. Vítima de todos os abandonose rejeições, maltratada, desconhecedora do verbo e da pele do amor,Portuguesa, Africana, negra, melancólica, magra, fibrosa, ágil como um puma acossado, durante muito tempo morou na rua, por Lisboa e mais tarde pelo Porto,e vegetava em grupos com iguais caracteres.lkj Nos anos da rua, deixara crescer um cabelo rasta tão medonhamente imenso, denso, emaranhado, nunca lavado durante anos, que nenhum olhar a poderia evitar. Uma fita imunda unia essa trunfa capilar às orelhas e estas ao couro cabeludo onde nunca a água limpa ou o aroma de um gel de banho ousaram passar caridosos.Sem casa, sem um comportamento minimamente civilizado, Bebiana saltavade internamento em internamento, de instituição em instituição,de grupo delinquente em grupo delinquente. A caspa do crimeestava-lhe no corpo, mesmo que dele se abstivesse.lkj Escapava das instituições de todas as vezes e voltava sempre às ruas, à irremediável violência, à desordem irremediável das ruasonde era puta ocasional, e os seus dentes e as suas unhas, a sua maldade sádica pura, fruto da evolução e da predisposição, eram simples instrumentos de prazer malígno e de sobrevivência indiferente.lkjBasta lembrar que quando um namorado brasileirose interessou por ela, não a quis logo porque ela cheirava mal de maise quando ensaiou tirar-lhe a pútrida fita do cabelo, cortar-lho,já os capilares das orelhas estavam de tal modo unidos aos do couro cabeludoque lhe era aquilo uma massa de doer e de sangrar. A crise de esta moça estar viva aos vinte e quatro anos!lkj Adoptada uma vez com catorze anos, foi um desastre. Cozinhava para a madrinha-mãe adoptivae lembrou-se de envenená-la o que praticou dia após dia. Ter uma obrigação, cozinhar, e sofrer o controlo da mãe-madrinha, era-lhe a mais negra coceira urticária e por isso resistia, mas a mãe obrigava-a a comer também de modo que o esquema não resultava.Ficava igualmente envenenada, tendo sido obrigada, por um internamento de urgência, a parar com a brincadeira.lkjUm pobre de um familiar, tio, homem para quase quarenta anos, vindo de Cabo Verde, veio certa vez dar a Lisboa, como um náufrago a mau recife e acoitou-se entre as barracas de zinco e de esterco, de tijolos e cães vadios, património de alguma família de algumas vezes a Bebiana. Bebiana nessa altura não teria mais de onze anos. Ele procurava emprego durante o diatodos os dias, por muitos e muitos dias em vão. Em casa, Bebiana tinha de tratar dele,de lavar a loiça. Ter de lavar loiça, tal como ter de cozinhar obrigada, moia-lhe a liberdade livre de quando estava na rua, sobretudo mais tarde, quando a rua lhe era tudo e nela tinha tudo, dando a greta por droga e associando-se ao peso dos pesados da delinquência e da mendicidade, assimilando e praticando a crueldade das unhas e dos dentes.lkjCerto dia, Babiana fartou-se de lavar a loiça do tio, rasgou-se, unhou-se e descompôs-se, o pobre inocente na barraca sem acordo de si, e veio para a rua urdir um escândalo gritado, cuspido e ranhosado, denunciando o pobre imigrante desempregado de a ter estuprado e o povo reunido não teve dúvidas: logo ali espancou, pontapeou, partiu, pisou o pobre homem. Esteve meses no hospital a meditar na espécie humana vaidoso-egolátrica, sádico-tarantinae a lamentar não ter fingido reconhecer na sobrinha uma mulher apetecívele assim salvar-se do despeito pelo seu desdém com o álibi da loiça.Conta Bebiana que, muito, muito tempo depois, quando o voltou a ver, estava o triste homem sob um viaduto, aquecendo-se a uma fogueira, por uma noite fria. Ossos partidos curados. Muitas dores. Impróprio para as obras.Ambos sabiam ser Bebiana o gatilho da destruição de um homem. Os seus olhares se cruzaram, o dela impenitente e sádico. O dele derrotado. Bebiana ainda teve alma paradesabar desalmada uma frase triunfal assassina: «Estás a ver?! Olha bem para ti. Ficaste a saber que ninguém me obriga a lavar a loiça!»lkjBebiana, tinha actos e trejeitos de perigo e de imprevisto constante. Mordeu uma vez uma rival de namoro: enquanto se rebolavam no estalo e no soco,entre os paralelos gusmentos da rua que uma morrinha babava, apanhou-lhe Bebiana com os dentes o maxilar inferior,perfurou e rasgou a parte mole atrás do queixo, em torno do queixo e durante longos minutos, não largou imitando um cão perigoso. O sangue da outra a manar-lhe no rosto, a outra aflita com a língua e a vozcomidas da mordedura, preparada para morrer sufocada no próprio pânico. Foi o brasileiro-pomo-discordiano que veio ali, entre elas que se desunhavam por ele talvez, a abrir aquela mandíbularesoluta e pronta ao assassínio, salvando a infeliz da morte. Eram amigas. Lutaram como animais.Muitos pontos e um desfiguramento para a vida deixaram da amiga uma ameaçaque Bebiana não temia de todo: «Um dia eu mato-te, podes ter a certeza.»lkjE a loiça atirada à cabeça dos homens que a montaram?Aquela pontaria com o gume dos pratos que partiam narizes e desatinavam raivas mortíferas?E aquele morder que desuniu um dedo, de repente bambo, unido pela pele e não mais?Os ossos alheios que partiu, o aborto ao feto com que um patrão lhe enchera o ventre, encharcando-a de sémen, de álcool e de erva,era manifesta a habilidade e gosto de a tomar por fêmea e vazadoiro, e o filho de dois anos com o tal brasileiro,a quem educava com irresponsável perfídia e ignorância dolorosa, deixando-o tocar-lhe, introduzir dentro dela a mãozinha, o dedito,pôr ali a boca inocente, o que justificava com o impropério de que «as criançastêm de saber o que é a vida», meu Deus!lkjA promiscuidade e o desnorte foram pai e mãe de Bebiana.O brasileiro salvou-a da rua sistémica tinha ela vinte anos, meteu-a numa casa velha alugada por octagenários em sistema de república, casa de todas as dívidas, de todas as esterqueiras,de todos os imigrantes. Fez-lhe um filho. Conflituaram como cães por ossos por tudo e por nada. Bateram-se como guerreriros na cama espancando-se e amando-se. Ela queria casar. Ele tinha as mulheres que queria e quando queria. Ela tinha todos os ciúmes e todos os desprezos desprezivos e desprezados. Ele agora tinha o filho.çklUm irmão mais novo do brasileiro matara há pouco, esfaqueando-o repetidamente, um foragido criminoso do Brasil, ao monte e ao alto, traquilamente em Portugal, como turista. Fora em legítima defesa e sob grosseira provocação num rançoso Pub.Cadeiras voavam, garrafas, corpo a corpo, alguns homens socavam e estrangulavam.O irmão tirou do bolso um pequeno cortador de vidro e em punção repetidaespetou-o às cegas no peito do outro, um filho do Demo, provocador, violento,gangster acabado, cruel, capaz de todas as maldades gratuitas. Agora estava preso preventivamente. As ameaças de vingança começaram a chover até no improvável telemóvel de Bebiana.Era a hora de ter medo e de fugir, senão por si mesma, ao menos pelo filho. Uma instituição para mulheres maltratadas serviria perfeitamente:ali, ela e o seu filho de dois anos desapareceriam dos olhos de todos.


Bebiana nunca foi uma criança fácil. Vítima de todos os abandonose rejeições, maltratada, desconhecedora do verbo e da pele do amor,Portuguesa, Africana, negra, melancólica, magra, fibrosa, ágil como um puma acossado, durante muito tempo morou na rua, por Lisboa e mais tarde pelo Porto,e vegetava em grupos com iguais caracteres.lkj Nos anos da rua, deixara crescer um cabelo rasta tão medonhamente imenso, denso, emaranhado, nunca lavado durante anos, que nenhum olhar a poderia evitar. Uma fita imunda unia essa trunfa capilar às orelhas e estas ao couro cabeludo onde nunca a água limpa ou o aroma de um gel de banho ousaram passar caridosos.Sem casa, sem um comportamento minimamente civilizado, Bebiana saltavade internamento em internamento, de instituição em instituição,de grupo delinquente em grupo delinquente. A caspa do crimeestava-lhe no corpo, mesmo que dele se abstivesse.lkj Escapava das instituições de todas as vezes e voltava sempre às ruas, à irremediável violência, à desordem irremediável das ruasonde era puta ocasional, e os seus dentes e as suas unhas, a sua maldade sádica pura, fruto da evolução e da predisposição, eram simples instrumentos de prazer malígno e de sobrevivência indiferente.lkjBasta lembrar que quando um namorado brasileirose interessou por ela, não a quis logo porque ela cheirava mal de maise quando ensaiou tirar-lhe a pútrida fita do cabelo, cortar-lho,já os capilares das orelhas estavam de tal modo unidos aos do couro cabeludoque lhe era aquilo uma massa de doer e de sangrar. A crise de esta moça estar viva aos vinte e quatro anos!lkj Adoptada uma vez com catorze anos, foi um desastre. Cozinhava para a madrinha-mãe adoptivae lembrou-se de envenená-la o que praticou dia após dia. Ter uma obrigação, cozinhar, e sofrer o controlo da mãe-madrinha, era-lhe a mais negra coceira urticária e por isso resistia, mas a mãe obrigava-a a comer também de modo que o esquema não resultava.Ficava igualmente envenenada, tendo sido obrigada, por um internamento de urgência, a parar com a brincadeira.lkjUm pobre de um familiar, tio, homem para quase quarenta anos, vindo de Cabo Verde, veio certa vez dar a Lisboa, como um náufrago a mau recife e acoitou-se entre as barracas de zinco e de esterco, de tijolos e cães vadios, património de alguma família de algumas vezes a Bebiana. Bebiana nessa altura não teria mais de onze anos. Ele procurava emprego durante o diatodos os dias, por muitos e muitos dias em vão. Em casa, Bebiana tinha de tratar dele,de lavar a loiça. Ter de lavar loiça, tal como ter de cozinhar obrigada, moia-lhe a liberdade livre de quando estava na rua, sobretudo mais tarde, quando a rua lhe era tudo e nela tinha tudo, dando a greta por droga e associando-se ao peso dos pesados da delinquência e da mendicidade, assimilando e praticando a crueldade das unhas e dos dentes.lkjCerto dia, Babiana fartou-se de lavar a loiça do tio, rasgou-se, unhou-se e descompôs-se, o pobre inocente na barraca sem acordo de si, e veio para a rua urdir um escândalo gritado, cuspido e ranhosado, denunciando o pobre imigrante desempregado de a ter estuprado e o povo reunido não teve dúvidas: logo ali espancou, pontapeou, partiu, pisou o pobre homem. Esteve meses no hospital a meditar na espécie humana vaidoso-egolátrica, sádico-tarantinae a lamentar não ter fingido reconhecer na sobrinha uma mulher apetecívele assim salvar-se do despeito pelo seu desdém com o álibi da loiça.Conta Bebiana que, muito, muito tempo depois, quando o voltou a ver, estava o triste homem sob um viaduto, aquecendo-se a uma fogueira, por uma noite fria. Ossos partidos curados. Muitas dores. Impróprio para as obras.Ambos sabiam ser Bebiana o gatilho da destruição de um homem. Os seus olhares se cruzaram, o dela impenitente e sádico. O dele derrotado. Bebiana ainda teve alma paradesabar desalmada uma frase triunfal assassina: «Estás a ver?! Olha bem para ti. Ficaste a saber que ninguém me obriga a lavar a loiça!»lkjBebiana, tinha actos e trejeitos de perigo e de imprevisto constante. Mordeu uma vez uma rival de namoro: enquanto se rebolavam no estalo e no soco,entre os paralelos gusmentos da rua que uma morrinha babava, apanhou-lhe Bebiana com os dentes o maxilar inferior,perfurou e rasgou a parte mole atrás do queixo, em torno do queixo e durante longos minutos, não largou imitando um cão perigoso. O sangue da outra a manar-lhe no rosto, a outra aflita com a língua e a vozcomidas da mordedura, preparada para morrer sufocada no próprio pânico. Foi o brasileiro-pomo-discordiano que veio ali, entre elas que se desunhavam por ele talvez, a abrir aquela mandíbularesoluta e pronta ao assassínio, salvando a infeliz da morte. Eram amigas. Lutaram como animais.Muitos pontos e um desfiguramento para a vida deixaram da amiga uma ameaçaque Bebiana não temia de todo: «Um dia eu mato-te, podes ter a certeza.»lkjE a loiça atirada à cabeça dos homens que a montaram?Aquela pontaria com o gume dos pratos que partiam narizes e desatinavam raivas mortíferas?E aquele morder que desuniu um dedo, de repente bambo, unido pela pele e não mais?Os ossos alheios que partiu, o aborto ao feto com que um patrão lhe enchera o ventre, encharcando-a de sémen, de álcool e de erva,era manifesta a habilidade e gosto de a tomar por fêmea e vazadoiro, e o filho de dois anos com o tal brasileiro,a quem educava com irresponsável perfídia e ignorância dolorosa, deixando-o tocar-lhe, introduzir dentro dela a mãozinha, o dedito,pôr ali a boca inocente, o que justificava com o impropério de que «as criançastêm de saber o que é a vida», meu Deus!lkjA promiscuidade e o desnorte foram pai e mãe de Bebiana.O brasileiro salvou-a da rua sistémica tinha ela vinte anos, meteu-a numa casa velha alugada por octagenários em sistema de república, casa de todas as dívidas, de todas as esterqueiras,de todos os imigrantes. Fez-lhe um filho. Conflituaram como cães por ossos por tudo e por nada. Bateram-se como guerreriros na cama espancando-se e amando-se. Ela queria casar. Ele tinha as mulheres que queria e quando queria. Ela tinha todos os ciúmes e todos os desprezos desprezivos e desprezados. Ele agora tinha o filho.çklUm irmão mais novo do brasileiro matara há pouco, esfaqueando-o repetidamente, um foragido criminoso do Brasil, ao monte e ao alto, traquilamente em Portugal, como turista. Fora em legítima defesa e sob grosseira provocação num rançoso Pub.Cadeiras voavam, garrafas, corpo a corpo, alguns homens socavam e estrangulavam.O irmão tirou do bolso um pequeno cortador de vidro e em punção repetidaespetou-o às cegas no peito do outro, um filho do Demo, provocador, violento,gangster acabado, cruel, capaz de todas as maldades gratuitas. Agora estava preso preventivamente. As ameaças de vingança começaram a chover até no improvável telemóvel de Bebiana.Era a hora de ter medo e de fugir, senão por si mesma, ao menos pelo filho. Uma instituição para mulheres maltratadas serviria perfeitamente:ali, ela e o seu filho de dois anos desapareceriam dos olhos de todos.

marcar artigo