Os aromas de XangaiFui a Xangai fazer uma Conferência a alguns estudantes na Universidade de Fudan, a mais velha da cidade que era capital do Mundo nos anos 30. Depois dei um salto a Pequim, onde vivi dois anos. Sou um tipo viajado. As viagens formam a juventude (ouvi eu, uma vez, dum peruca, num filme francês). Mas eu já não sou muito jovem e vejo tanta gente a viajar, com camisas de palmeiras que acho que “cantigas de malteses/ são como barcos no mar/ vão de um porto para outro/ com riscos de naufragar” ( adaptação mundialista de uma quadra de Fernando Pessoa). Vou ficando deformado pelo fuso horário e, quando voltei, vivi uma tarde de Verão, sem fim , pairando sobre a Sibéria, onde eram sempre três da tarde, com uma brisazinha abençoada. A Sibéria, no Verão, é verde, com bosquezinhos benfazejos. Nunca vi tantas disposições de azul e de flocos brancos de nuvens, como se o céu quisesse dizer qualquer coisa. Passei dez horas a contemplar o céu, enquanto os filmes todos que perdi no Cinema me passaram ao canto do olho. A turbulência foi grande, de Pequim até Irkutsk e as horas amargas deram-me lições de humildade e de Gratidão sem fim…Passei pelo “Bund” e fui comer ao Hotel da Paz ( o heping fanguar) onde paguei 8 contos por um bife e um shuibi ( sprite) porque tive medo de me lançar logo nos pauzinhos e arriscar uma dor de barriga. Estava calor, cheio de água no ar, o Huangpu corria com aquele nome que me fazia lembrar a Academia militar de Wampoa onde Chiang Kai-Chek, de bota alta prussiana e Chue-En Lai, de brilhantina francesa , sonhavam fazer bem ou mal à China, até tomarem o freio nos dentes e fazerem mal a si próprios, mais a tudo o que se movesse em torno. Chu-en Lai, apesar de tudo, poupou muitas vidas. Por isso, quando o povo o foi enterrar, chorou-o sinceramente. Só ficou a “Pequena Garrafa” Deng que, ao querer que as respectivas cinzas fossem dispersas pelo Oceano, como Rock Hudson - que morria de Sida, ao mesmo tempo, do outro lado do Pacífico -mostrou ter salvo um pouco da sua alma, que escondia na Longa Marcha, com bebedeiras sem fim…Suave, é linda a curva do Huangpu em frente ao Bund. Toda a gente vai lá ao fim da tarde. Toda a gente está lá de manhã a fazer Tai-chi ou a dançar. Foi bonito o sonho de pôr tanoeiros e metalúrgicos a dançarem o pasodoble sob a chuva tropical, na curva do rio. Tive em tempos uma amiga, filha duma chinesa refugiada que dizia que nunca poderia casar com um homem que não soubesse dançar. Em Zorba, o Grego, Anthony Quinn explica a Alan Bates que quando lhe morreu o filhinho, teve de dançar. É uma bela cena.Agora vão milhares de pessoas para o Bund. Uma rapariga invectiva-me em bom inglês sobre quantas vezes estive em Xangai. O namorado olha-me como se o facto de eu não responder seja o mesmo, no Ocidente, que eu meter-me com a namorada de alguém, nas suas barbas. Respondo e minto, porque, ali, não ter ido pelo menos dez vezes a Xangai faz sentir qualquer um, parôlo. Ao lado, uma mulher interessante, discretamente vestida, olha o horizonte sem qualquer noção de pecado, deixando as saias esvoaçarem pandas ao vento sobre as pernas cruzadas, numa pose digna e segura como uma feminista do tempo de Sartre.Os estudantes confundiram-me. Talvez deliberadamente. Quando citei o caso da antiga Primeira-Ministra da Suécia que teve de renunciar à chefia do Governo e do Partido porque se esqueceu de reembolsar um cartão de crédito oficial, no prazo, em doze contos de flores oferecidas a um Homem e chocolates comprados para os filhos, a única Doutorada, além do anfitrião ( mulher que me pareceu, de trabalho e leal) olhou-me com entusiasmo.Os outros disseram-se neoconservadores. Excitados com os próximos programas, em Uppsala ou em Princeton, compararam o recuo sistémico do Poder em Pequim como um ‘neo-conservadorismo” chinês, cheio de heroísmo liberal e de moralismo civilizador mas sem os arrojos imperialistas de Kagan, Kaplan ou Perle. Admiravam a América, de um modo anódino, não pelo sistema, nem pela gente, mas por serem os que ainda fazem a vanguarda do Mundo. Um dia serão eles, um dia a China brilhará para todo o Mundo, mais atraíndo que dominando, mais seduzindo que conquistando. E se nunca será imperialista – crêem eles – é porque a China “ tem uma enorme vontade de se federar”.Alto lá. Ora eu pensei que a China fosse um país. Um país que passava Taiwan, se estendia à Indonésia ( onde 80% da riqueza se concentra em 3% de chineses) chegava ao Havai onde Sun Yat-sen se exilou e se estendia aos americanos nativos, vindos pela ponte de Behring, que eram todos asiáticos. Mas não é. Aí suspeitei que me enganavam: “os Chineses querem-se federar” não porque estão a partir-se, como quis Lee Teng-Hui ou o induz o Dalai Lama, mas porque Taiwan e Pequim se têm que unir.Isto não quer dizer que os estudantes estivessem inconscientes da fragilidade de barro que tem a China continental, ou a China “amarela”. Claro que o sabem mas estão ainda seduzidos pelos ‘ amanhãs que cantam”.Existe um materialismo, como uma insónia sem fim, uma comichão sem origem, que não tem rosto, nem Pátria, nem conteúdo. É apenas uma fogo-fátuo, uma estrêla que se persegue incessantemente. É como uma espécie de eterna juventude sem velhice grata, sem morte tranquila, é um quarto de tortura permanentemente iluminado. Mas que posso fazer? Afinal estes sonhos de Luz nem sempre são maus, mesmo quando políticos, quando quem os sonha não tem todo o Poder na mão. Podem dar às pessoas uma certa Esperança, por mais imberbe que seja.O Professor olha para os dois convidados na minha mesa de honra. Ambos são dirigentes estudantis, uma rapariga e um rapaz. Não conhecem mutuamente as respectivas ideias. Subtilmente, ela diz-me que a estátua de Mao, à volta da qual se reúnem os estudantes graduados dizendo em pares aquilo que não foram capazes durante o ano inteiro ( isto é mais universal que o imperativo categórico!) tem a mão levantada: “ está a chamar um taxi”, diz ela. Certamente para sair dali, penso eu. E era isso que ela queria dizer.O rapaz diz-me que o número de vítimas do Maoísmo foi superior a 70 milhões. Aí eu compreendo: a luta interna do comunismo chinês foi tão aventurosa, nem desafiante como a mais espantosa liberdade democrática. Aí, eu vejo claramente, a virtude da Democracia: não é por ser a menos má, mas por ser a sociedade política menos verdadeira, onde corre menos sangue.O Professor diz-lhes: “Isso é bom, vocês serem dirigentes estudantis! É bom para chegar longe. Também o nosso conterrâneo Hu Jintao chegou alto!”“ Sim”, diz-lhe o estudante” Mas Você, Professor, também foi!”“ Ah, mas eu progredi profissionalmente. Não foi à conta da juventude!”À noite, na Nanjinlu, a rua que levava das concessões estrangeiras, sem cães nem chineses, para a capital Nanquim, passeio por um cenário de Hong-Kong ( com 17 milhões de habitantes laboriosos, Xangai voltará a ser a capital do Mundo) enquanto Pudong exulta de néon. Vejo famílias de trabalho que gozam um pouco o seu bem-estar e estrangeiras loiras em esplanadas, ainda um pouco contraídas. Sou abordado por três prostitutos e três prostitutas. A última é uma rapariga com o ar educado por 5000 anos de civilização mas um corpo pequenino de rapariga que foi mal alimentada na infância. Agradeço-lhe delicadamente como se a uma estudante de boa família a distribuir volantes publicitários pela rua.No comboio para Pequim, três velhos ( como serei em breve) falavam, como falam nos hutongs, com paixão e sabedoria, um californiano, um do Interior, um mais jovem, afinal, todos de Pequim.Em Pequim, numa casa de banho de luxo, no Centro Lufthansa, um empregado dá-me toalhas para eu limpar as mãos no lavatório. O meu coração surpreende-se por ver aquele Homem da minha idade, várias horas por dia no ar húmido e obscuro de uma casa-de-banho, a fazer aquilo, na Pátria que quis libertar o Homem para sempre.Volto em mente para o meu combóio, onde os três pequineses falam eternamente pela noite fora, sem nunca se desentenderem, sem nunca se magoarem. Adormeço ao lado, em paz, doce é o sono num combóio chinês, porque as árvores que passam ao lado são antigas.Falo de noite, e choro, dilacerado pelos meus pesadelo ocidentais de guerras, ambicções e ressentimentos. De manhã, um dos velhos, que me ouviu, olha-me em silêncio com terna discrição.
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Os aromas de XangaiFui a Xangai fazer uma Conferência a alguns estudantes na Universidade de Fudan, a mais velha da cidade que era capital do Mundo nos anos 30. Depois dei um salto a Pequim, onde vivi dois anos. Sou um tipo viajado. As viagens formam a juventude (ouvi eu, uma vez, dum peruca, num filme francês). Mas eu já não sou muito jovem e vejo tanta gente a viajar, com camisas de palmeiras que acho que “cantigas de malteses/ são como barcos no mar/ vão de um porto para outro/ com riscos de naufragar” ( adaptação mundialista de uma quadra de Fernando Pessoa). Vou ficando deformado pelo fuso horário e, quando voltei, vivi uma tarde de Verão, sem fim , pairando sobre a Sibéria, onde eram sempre três da tarde, com uma brisazinha abençoada. A Sibéria, no Verão, é verde, com bosquezinhos benfazejos. Nunca vi tantas disposições de azul e de flocos brancos de nuvens, como se o céu quisesse dizer qualquer coisa. Passei dez horas a contemplar o céu, enquanto os filmes todos que perdi no Cinema me passaram ao canto do olho. A turbulência foi grande, de Pequim até Irkutsk e as horas amargas deram-me lições de humildade e de Gratidão sem fim…Passei pelo “Bund” e fui comer ao Hotel da Paz ( o heping fanguar) onde paguei 8 contos por um bife e um shuibi ( sprite) porque tive medo de me lançar logo nos pauzinhos e arriscar uma dor de barriga. Estava calor, cheio de água no ar, o Huangpu corria com aquele nome que me fazia lembrar a Academia militar de Wampoa onde Chiang Kai-Chek, de bota alta prussiana e Chue-En Lai, de brilhantina francesa , sonhavam fazer bem ou mal à China, até tomarem o freio nos dentes e fazerem mal a si próprios, mais a tudo o que se movesse em torno. Chu-en Lai, apesar de tudo, poupou muitas vidas. Por isso, quando o povo o foi enterrar, chorou-o sinceramente. Só ficou a “Pequena Garrafa” Deng que, ao querer que as respectivas cinzas fossem dispersas pelo Oceano, como Rock Hudson - que morria de Sida, ao mesmo tempo, do outro lado do Pacífico -mostrou ter salvo um pouco da sua alma, que escondia na Longa Marcha, com bebedeiras sem fim…Suave, é linda a curva do Huangpu em frente ao Bund. Toda a gente vai lá ao fim da tarde. Toda a gente está lá de manhã a fazer Tai-chi ou a dançar. Foi bonito o sonho de pôr tanoeiros e metalúrgicos a dançarem o pasodoble sob a chuva tropical, na curva do rio. Tive em tempos uma amiga, filha duma chinesa refugiada que dizia que nunca poderia casar com um homem que não soubesse dançar. Em Zorba, o Grego, Anthony Quinn explica a Alan Bates que quando lhe morreu o filhinho, teve de dançar. É uma bela cena.Agora vão milhares de pessoas para o Bund. Uma rapariga invectiva-me em bom inglês sobre quantas vezes estive em Xangai. O namorado olha-me como se o facto de eu não responder seja o mesmo, no Ocidente, que eu meter-me com a namorada de alguém, nas suas barbas. Respondo e minto, porque, ali, não ter ido pelo menos dez vezes a Xangai faz sentir qualquer um, parôlo. Ao lado, uma mulher interessante, discretamente vestida, olha o horizonte sem qualquer noção de pecado, deixando as saias esvoaçarem pandas ao vento sobre as pernas cruzadas, numa pose digna e segura como uma feminista do tempo de Sartre.Os estudantes confundiram-me. Talvez deliberadamente. Quando citei o caso da antiga Primeira-Ministra da Suécia que teve de renunciar à chefia do Governo e do Partido porque se esqueceu de reembolsar um cartão de crédito oficial, no prazo, em doze contos de flores oferecidas a um Homem e chocolates comprados para os filhos, a única Doutorada, além do anfitrião ( mulher que me pareceu, de trabalho e leal) olhou-me com entusiasmo.Os outros disseram-se neoconservadores. Excitados com os próximos programas, em Uppsala ou em Princeton, compararam o recuo sistémico do Poder em Pequim como um ‘neo-conservadorismo” chinês, cheio de heroísmo liberal e de moralismo civilizador mas sem os arrojos imperialistas de Kagan, Kaplan ou Perle. Admiravam a América, de um modo anódino, não pelo sistema, nem pela gente, mas por serem os que ainda fazem a vanguarda do Mundo. Um dia serão eles, um dia a China brilhará para todo o Mundo, mais atraíndo que dominando, mais seduzindo que conquistando. E se nunca será imperialista – crêem eles – é porque a China “ tem uma enorme vontade de se federar”.Alto lá. Ora eu pensei que a China fosse um país. Um país que passava Taiwan, se estendia à Indonésia ( onde 80% da riqueza se concentra em 3% de chineses) chegava ao Havai onde Sun Yat-sen se exilou e se estendia aos americanos nativos, vindos pela ponte de Behring, que eram todos asiáticos. Mas não é. Aí suspeitei que me enganavam: “os Chineses querem-se federar” não porque estão a partir-se, como quis Lee Teng-Hui ou o induz o Dalai Lama, mas porque Taiwan e Pequim se têm que unir.Isto não quer dizer que os estudantes estivessem inconscientes da fragilidade de barro que tem a China continental, ou a China “amarela”. Claro que o sabem mas estão ainda seduzidos pelos ‘ amanhãs que cantam”.Existe um materialismo, como uma insónia sem fim, uma comichão sem origem, que não tem rosto, nem Pátria, nem conteúdo. É apenas uma fogo-fátuo, uma estrêla que se persegue incessantemente. É como uma espécie de eterna juventude sem velhice grata, sem morte tranquila, é um quarto de tortura permanentemente iluminado. Mas que posso fazer? Afinal estes sonhos de Luz nem sempre são maus, mesmo quando políticos, quando quem os sonha não tem todo o Poder na mão. Podem dar às pessoas uma certa Esperança, por mais imberbe que seja.O Professor olha para os dois convidados na minha mesa de honra. Ambos são dirigentes estudantis, uma rapariga e um rapaz. Não conhecem mutuamente as respectivas ideias. Subtilmente, ela diz-me que a estátua de Mao, à volta da qual se reúnem os estudantes graduados dizendo em pares aquilo que não foram capazes durante o ano inteiro ( isto é mais universal que o imperativo categórico!) tem a mão levantada: “ está a chamar um taxi”, diz ela. Certamente para sair dali, penso eu. E era isso que ela queria dizer.O rapaz diz-me que o número de vítimas do Maoísmo foi superior a 70 milhões. Aí eu compreendo: a luta interna do comunismo chinês foi tão aventurosa, nem desafiante como a mais espantosa liberdade democrática. Aí, eu vejo claramente, a virtude da Democracia: não é por ser a menos má, mas por ser a sociedade política menos verdadeira, onde corre menos sangue.O Professor diz-lhes: “Isso é bom, vocês serem dirigentes estudantis! É bom para chegar longe. Também o nosso conterrâneo Hu Jintao chegou alto!”“ Sim”, diz-lhe o estudante” Mas Você, Professor, também foi!”“ Ah, mas eu progredi profissionalmente. Não foi à conta da juventude!”À noite, na Nanjinlu, a rua que levava das concessões estrangeiras, sem cães nem chineses, para a capital Nanquim, passeio por um cenário de Hong-Kong ( com 17 milhões de habitantes laboriosos, Xangai voltará a ser a capital do Mundo) enquanto Pudong exulta de néon. Vejo famílias de trabalho que gozam um pouco o seu bem-estar e estrangeiras loiras em esplanadas, ainda um pouco contraídas. Sou abordado por três prostitutos e três prostitutas. A última é uma rapariga com o ar educado por 5000 anos de civilização mas um corpo pequenino de rapariga que foi mal alimentada na infância. Agradeço-lhe delicadamente como se a uma estudante de boa família a distribuir volantes publicitários pela rua.No comboio para Pequim, três velhos ( como serei em breve) falavam, como falam nos hutongs, com paixão e sabedoria, um californiano, um do Interior, um mais jovem, afinal, todos de Pequim.Em Pequim, numa casa de banho de luxo, no Centro Lufthansa, um empregado dá-me toalhas para eu limpar as mãos no lavatório. O meu coração surpreende-se por ver aquele Homem da minha idade, várias horas por dia no ar húmido e obscuro de uma casa-de-banho, a fazer aquilo, na Pátria que quis libertar o Homem para sempre.Volto em mente para o meu combóio, onde os três pequineses falam eternamente pela noite fora, sem nunca se desentenderem, sem nunca se magoarem. Adormeço ao lado, em paz, doce é o sono num combóio chinês, porque as árvores que passam ao lado são antigas.Falo de noite, e choro, dilacerado pelos meus pesadelo ocidentais de guerras, ambicções e ressentimentos. De manhã, um dos velhos, que me ouviu, olha-me em silêncio com terna discrição.