Livrar-se de certo oportunismo interesseiro e negocista que o atacou, como um musgo viscoso.

08-04-2005
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Livrar-se de certo oportunismo interesseiro e negocista que o atacou, como um musgo viscoso.

aperfeiçoar e aprofundar a sua própria democraticidade interna - o processo de eleição e de responsabilização dos seus orgãos e quadros dirigentes

Mário Soares

Reflexão pós-eleitoral

Nunca me senti portador da verdade nem, em política, detentor da chamada "linha justa". Tenho demasiadas dúvidas para isso e engano-me frequentemente. Gosto de reflectir, de ousar, de procurar novos caminhos em função dos sinais do tempo e, sobretudo, de partilhar com os outros as minhas preocupações e anseios, isso sim. Como modesto contributo a um pensamento inovador e a um debate político, que julgo constituir a essência mesma da democracia.

Vem isto a propósito das últimas eleições que terão - assim se espera - encerrado um ciclo e iniciado outro da vida política portuguesa. Confirmaram a realidade da alternância democrática que é, seguramente, uma regra de ouro da democracia e factor de renovação. Em que sentido? Eis a questão.

Como é óbvio, o PPD/PSD ganhou as eleições e o PS perdeu-as. Por curtíssima margem, é certo. Mas por um voto se ganha e por um voto se perde. O importante é notar que o PPD/PSD (ao contrário do que pretendia) não conseguiu a maioria absoluta. Ora, nas actuais condições, um Governo minoritário teria poucas probabilidades de criar um mínimo de estabilidade. Assim, viu-se forçado - e quanto a mim, bem - a optar por fazer uma coligação com o CDS/PP, por mais que isso lhe custe, visto que as eleições consagraram Paulo Portas como um líder de direita incontornável, ficando, por assim dizer, com a faca e o queijo na mão.

Tudo depende, agora, da capacidade de entendimento que os dois partidos do centro direita e da direita forem capazes de estabelecer entre si. Não tenho dúvidas de que, numa primeira fase, o conseguirão, com relativa facilidade.

Contudo, há que reconhecer, pela experiência que temos de outras coligações, criadas porventura em condições bem mais favoráveis, que, num primeiro tempo, a perspectiva do poder vai unir, embora quando as dificuldades inevitáveis avultarem, num segundo tempo, eventualmente, posam desunir...

Num artigo particularmente arguto, publicado no Expresso, Duarte Lima, escreveu: "Quanto tempo pode resistir este entendimento de um lider forte de um partido fraco com um lider fraco de um partido forte? Temo que aconteça o pior. Só não sei é quando..." Por mim, não seria tão pessimista: o poder muitas vezes modifica os homens que o detêm, ou melhor: tem o condão de os revelar como estadistas. Foi o caso de Sá Carneiro. Esperemos, pois, para ver.

O êxito da coligação, porém, não dependerá somente da vontade ou dos humores dos líderes mas também da capacidade dos membros escolhidos para o Governo - em particular do ministro das Finanças - e da decisão e acerto com que sejam capazes de atacar os problemas existentes, desde a primeira hora. Porque os problemas são sérios - como foi dito - e é na sua resolução que a coligação se justifica.

Com efeito, a situação económica e social do País não sendo desesperada, como alguns deixaram entender, não é fácil. Acresce que se alimentaram enormes expectativas e que o tempo urge. Pela primeira vez na história do post-25 de Abril, a direita vai ser obrigada a governar o País em tempo de vacas magras. Veremos se dará provas de decisão, de capacidade e de coragem. Qualidades tanto mais necessárias quanto a direita está agarrada - como não poderia deixar de o ser - a promessas eleitorais unanimemente consideradas contraditórias e mesmo irrealizáveis, como ficou bem patente durante a campanha. Para já não falar dos pontos programáticos divergentes entre os dois partidos coligados e da dificuldade em fazer, agora, entre eles, os indispensáveis reajustamentos.

Vejamos: o PSD prometeu reduzir drasticamente as despesas públicas (onde irá fazer os cortes?); reduzir os impostos através do tão falado "choque fiscal" (quais?); melhorar rapidamente os serviços de saúde, acabando com as listas de espera nos hospitais; melhorar sensivelmente os serviços de educação; dotar as forças armadas de equipamento adequado; não tocar na função pública nem nas dotações atribuídas às autarquias. Aliás, Alberto João Jardim, sem perder tempo, já fez um ultimato sobre este ponto, a pensar na Madeira, como é óbvio...

Para não falar nas promessas repetidas do CDS/PP: melhorar as pensões de reforma dos mais desfavorecidos; aumentar o número dos polícias e pagar-lhes subsídios de risco; fazer justiça aos militares que prestaram serviço no Ultramar; etc.

Trata-se, realmente, de uma tarefa gigantesca, para não lhe chamar impossível, porque se afigura quase semelhante à quadratura do círculo... Esperemos, com paciência, para ouvir o que nos anuncia, no seu primeiro discurso à Nação, o novo Ministro das Finanças.

Também é bom não deixar esquecer uma das promessas repetidas pelo primeiro ministro indigitado: promover uma auditoria às contas públicas, feita por uma entidade independente, de forma a fornecer à opinião nacional - e à Comissão Europeia - um conhecimento rigoroso da situação portuguesa. Deve ser uma promessa para cumprir. Falar verdade aos portugueses é essencial e, por outro lado, quem não deve não teme.

Instalado agora na nova Oposição, o PS obteve o que se tem chamado uma "derrota honrosa". É verdade. Graças em primeiro lugar - é de justiça reconhecê-lo - ao novo líder do PS, Ferro Rodrigues. A escolha resultou, em situação de emergência, de uma decisão de poucos: mas revelou-se uma escolha feliz, que foi ratificada pelo Partido e, depois, nas eleições. Ferro Rodrigues soube criar um novo ânimo no PS e um impulso de confiança inesperado no eleitorado. É bom que isto seja dito e sublinhado. Com a condição dos socialistas, na euforia do resultado, não se porem a pensar que ganharam as eleições, porque na realidade as perderam - e com elas o Governo e o poder. Entrámos, efectivamente, num novo ciclo político.

E agora? O PS, quanto a mim, deve assumir-se como Oposição responsável e vigilante em relação ao espírito de Abril. Com realismo, sem impaciências e moderação. Contudo, é preciso dizer, desde já, que não faz sentido exigir-se-lhe um "pacto de regime". Existe uma maioria política que tem, por si só, todas as condições para aprovar as reformas que julgar necessárias - ainda as mais impopulares - reformas que, aliás, repetidamente prometeu aos portugueses. Não pode, nem deve, assim, desculpar-se com o PS, para as não promover.

É óbvio que para além dos combates políticos que aí vêm, provocados pela confrontação de opiniões e pontos de vista divergentes, haverá resistências sociais e corporativas - para não falar da pressão dos interesses - que não deixarão de se manifestar, contraditoriamente, com maior ou menor virulência. No Parlamento, na reacção dos lobbies atingidos e mesmo, eventualmente, na rua. Compete ao Governo de coligação ter a coragem de optar pelas políticas que julgar mais adequadas para as ultrapassar. O eleitorado, no final da legislatura - se não houver acidentes de percurso, que não se desejam - será chamado a apreciar criticamente a prestação realizada.

Ao PS, creio eu, fará bem uma cura de Oposição. Terá tempo para aperfeiçoar e aprofundar a sua própria democraticidade interna - o processo de eleição e de responsabilização dos seus orgãos e quadros dirigentes - e, especialmente, o seu relacionamento com a sociedade civil. Livrar-se de certo oportunismo interesseiro e negocista que o atacou, como um musgo viscoso. Deverá voltar a ser, como nas suas origens, um partido idealista, de causas e de valores, capaz de se impôr ao respeito das gerações jovens, que despertam para a política (e que manifestam agora um certo enfado da política). Deve abrir-se, repito, à sociedade civil emergente, como é urgente que aconteça. Estimulando o espírito crítico e o sentido da participação cívica.

O mundo mudou. O colapso do bloco soviético deu-se há mais de dez anos. Emergiu uma potência hegemónica que goza de um estatuto imperial, pelo seu poderio militar e económico, sem paralelo na história. A União Europeia também está, apesar das aparências, em mudança. O PS, se não erro, deveria definir uma política coerente - compreensível, para poder ser activamente apoiada - em relação aos novos dados geo-estratégicos de hoje.

O vento de direita que sopra sobre o Velho Continente, vindo do outro lado do Atlântico, está a varrer alguns dos tímidos governos socialistas mais ou menos conformistas com o neo-liberalismo invasor. Mas, por outro lado, está a suscitar grandes e talvez inesperadas resistências das populações europeias e do mundo em geral que reclamam, com razão, desde que o façam pacificamente, uma globalização ética, para utilizar uma expressão cara a Mary Robinson e uma ordem internacional fundada no Direito, na Justiça, na Igualdade das Nações - e não na força.

O PS deve saber estar com o seu tempo, dando resposta aos problemas novos que hoje se põem às pessoas, às famílias, às escolas, às empresas, às igrejas e ao Estado, se quiser ser um partido de modernidade, num mundo diferente, complexo e contraditório. Um partido de esquerda como sempre foi - e não do centro. Para poder voltar a captar as simpatias do eleitorado do centro, estando radicado à esquerda, com uma larga base social de apoio, que compreenda e siga convictamente as políticas que preconiza. Com causas, que saiba defender intransigentemente: a solidariedade social; o direito ao emprego; a concertação social como método de governo; a reabilitação do Estado e da política, que deve comandar a economia, ao serviço dos homens e não o contrário; a defesa de sectores económicos considerados como estratégicos, do ponto de vista nacional; os direitos humanos - sempre e onde estejam ameaçados, a começar pelo espaço da Lusofonia; a preservação dos equilíbrios ecológicos de um Planeta manifestamente em perigo; a União Política e Social Europeia; a União Europeia como potência autónoma na cena internacional; o multiculturalismo e nele a defesa da língua portuguesa e da cultura, em lato senso, que inclui a ciência, face ao rolo compressor do chamado "pensamento único".

Neste momento de incontestável viragem política, o PS, na minha opinião, não deverá tornar-se autofágico ou comprazer-se em análises autocríticas do passado recente. É cedo para as fazer. Há que dar tempo ao tempo. Para já, deve voltar-se resolutamente para o futuro, abrir-se à sociedade e aos jovens, ao mundo da cultura, da ciência e da inteligência e pôr na sua agenda - como prioridades - a dinamização e abertura do Partido ao exterior e à organização de amplos debates, abertos aos outros partidos e movimentos de esquerda - aos sindicatos, às associações humanitárias, ambientais, de defesa dos direitos e a personalidades independentes, inquietas com o que aí vem, de modo a suscitar, ou mesmo, de algum modo, a polarizar uma ampla reflexão sobre o futuro de Portugal, no século que se inicia, no contexto europeu, no espaço da Lusofonia e no Mundo em geral.

É da essência de um Partido como o PS ter uma ambição para Portugal que seja clara, para que todos a entendam e possam apoiar ou contestar. Quando o 25 de Abril libertou Portugal da ditadura e do obscurantismo, o PS era um pequeno partido de esquerda, clandestino, anti-colonialista, em favor da liberdade e da justiça social. Perante as novas circunstâncias, criadas no post-25 de Abril, soube participar e bater-se, corajosamente, por uma democracia pluralista, (quando outros fugiram) e, depois, por uma economia de mercado (então ameaçada), compatível com os legítimos anseios sociais do mundo do trabalho, pela integração europeia e por relações fraternais com as ex-colónias, no quadro do que viria a ser (até agora sem grande expressão, infelizmente) a CPLP. Foi o que lhe deu a confiança - e o voto - de milhões de portugueses.

Hoje, noutro tempo, com outros problemas, num mundo globalizado, injusto e desumano, o PS deve saber estar atento ao pulsar da sociedade contemporânea e deve saber estar presente nos grandes combates cívicos que se desenham na Europa e no Mundo, em favor das grandes Causas. Indico as principais: a paz; a defesa do ambiente; a erradicação da pobreza; a luta contra o terrorismo (no respeito pelo Direito); a luta contra a criminalidade internacionalmente organizada; pela existência de regras internacionais que regulamentem os fluxos de capital que circulam especulativamente no mundo, deixando impune o chamado dinheiro sujo (proveniente da venda ilegal de armas, nomeadamente nucleares, do anarco-tráfico, de redes de prostituição ou do comércio infame de orgãos humanos).

Num país com uma democracia consolidada, Governo e Oposição são igualmente importantes. Ao contrário do que se julga, no mundo de hoje, mais do que os interesses constituídos contam as ideias, a criatividade e o espírito de inovação. Numa República moderna e progressista, que os partidos se confrontem no domínio das ideias e das políticas, com armas iguais, é altamente salutar. Mas que se respeitem as pessoas, na pluralidade das suas ideias e concepções, quaisquer que sejam, desde que o façam no quadro da legalidade democrática e republicana e no respeito mútuo. Porque todos queremos o bem de Portugal - que, aliás, a todos pertence.

Lisboa, 26 de Março de 2002

Livrar-se de certo oportunismo interesseiro e negocista que o atacou, como um musgo viscoso.

aperfeiçoar e aprofundar a sua própria democraticidade interna - o processo de eleição e de responsabilização dos seus orgãos e quadros dirigentes

Mário Soares

Reflexão pós-eleitoral

Nunca me senti portador da verdade nem, em política, detentor da chamada "linha justa". Tenho demasiadas dúvidas para isso e engano-me frequentemente. Gosto de reflectir, de ousar, de procurar novos caminhos em função dos sinais do tempo e, sobretudo, de partilhar com os outros as minhas preocupações e anseios, isso sim. Como modesto contributo a um pensamento inovador e a um debate político, que julgo constituir a essência mesma da democracia.

Vem isto a propósito das últimas eleições que terão - assim se espera - encerrado um ciclo e iniciado outro da vida política portuguesa. Confirmaram a realidade da alternância democrática que é, seguramente, uma regra de ouro da democracia e factor de renovação. Em que sentido? Eis a questão.

Como é óbvio, o PPD/PSD ganhou as eleições e o PS perdeu-as. Por curtíssima margem, é certo. Mas por um voto se ganha e por um voto se perde. O importante é notar que o PPD/PSD (ao contrário do que pretendia) não conseguiu a maioria absoluta. Ora, nas actuais condições, um Governo minoritário teria poucas probabilidades de criar um mínimo de estabilidade. Assim, viu-se forçado - e quanto a mim, bem - a optar por fazer uma coligação com o CDS/PP, por mais que isso lhe custe, visto que as eleições consagraram Paulo Portas como um líder de direita incontornável, ficando, por assim dizer, com a faca e o queijo na mão.

Tudo depende, agora, da capacidade de entendimento que os dois partidos do centro direita e da direita forem capazes de estabelecer entre si. Não tenho dúvidas de que, numa primeira fase, o conseguirão, com relativa facilidade.

Contudo, há que reconhecer, pela experiência que temos de outras coligações, criadas porventura em condições bem mais favoráveis, que, num primeiro tempo, a perspectiva do poder vai unir, embora quando as dificuldades inevitáveis avultarem, num segundo tempo, eventualmente, posam desunir...

Num artigo particularmente arguto, publicado no Expresso, Duarte Lima, escreveu: "Quanto tempo pode resistir este entendimento de um lider forte de um partido fraco com um lider fraco de um partido forte? Temo que aconteça o pior. Só não sei é quando..." Por mim, não seria tão pessimista: o poder muitas vezes modifica os homens que o detêm, ou melhor: tem o condão de os revelar como estadistas. Foi o caso de Sá Carneiro. Esperemos, pois, para ver.

O êxito da coligação, porém, não dependerá somente da vontade ou dos humores dos líderes mas também da capacidade dos membros escolhidos para o Governo - em particular do ministro das Finanças - e da decisão e acerto com que sejam capazes de atacar os problemas existentes, desde a primeira hora. Porque os problemas são sérios - como foi dito - e é na sua resolução que a coligação se justifica.

Com efeito, a situação económica e social do País não sendo desesperada, como alguns deixaram entender, não é fácil. Acresce que se alimentaram enormes expectativas e que o tempo urge. Pela primeira vez na história do post-25 de Abril, a direita vai ser obrigada a governar o País em tempo de vacas magras. Veremos se dará provas de decisão, de capacidade e de coragem. Qualidades tanto mais necessárias quanto a direita está agarrada - como não poderia deixar de o ser - a promessas eleitorais unanimemente consideradas contraditórias e mesmo irrealizáveis, como ficou bem patente durante a campanha. Para já não falar dos pontos programáticos divergentes entre os dois partidos coligados e da dificuldade em fazer, agora, entre eles, os indispensáveis reajustamentos.

Vejamos: o PSD prometeu reduzir drasticamente as despesas públicas (onde irá fazer os cortes?); reduzir os impostos através do tão falado "choque fiscal" (quais?); melhorar rapidamente os serviços de saúde, acabando com as listas de espera nos hospitais; melhorar sensivelmente os serviços de educação; dotar as forças armadas de equipamento adequado; não tocar na função pública nem nas dotações atribuídas às autarquias. Aliás, Alberto João Jardim, sem perder tempo, já fez um ultimato sobre este ponto, a pensar na Madeira, como é óbvio...

Para não falar nas promessas repetidas do CDS/PP: melhorar as pensões de reforma dos mais desfavorecidos; aumentar o número dos polícias e pagar-lhes subsídios de risco; fazer justiça aos militares que prestaram serviço no Ultramar; etc.

Trata-se, realmente, de uma tarefa gigantesca, para não lhe chamar impossível, porque se afigura quase semelhante à quadratura do círculo... Esperemos, com paciência, para ouvir o que nos anuncia, no seu primeiro discurso à Nação, o novo Ministro das Finanças.

Também é bom não deixar esquecer uma das promessas repetidas pelo primeiro ministro indigitado: promover uma auditoria às contas públicas, feita por uma entidade independente, de forma a fornecer à opinião nacional - e à Comissão Europeia - um conhecimento rigoroso da situação portuguesa. Deve ser uma promessa para cumprir. Falar verdade aos portugueses é essencial e, por outro lado, quem não deve não teme.

Instalado agora na nova Oposição, o PS obteve o que se tem chamado uma "derrota honrosa". É verdade. Graças em primeiro lugar - é de justiça reconhecê-lo - ao novo líder do PS, Ferro Rodrigues. A escolha resultou, em situação de emergência, de uma decisão de poucos: mas revelou-se uma escolha feliz, que foi ratificada pelo Partido e, depois, nas eleições. Ferro Rodrigues soube criar um novo ânimo no PS e um impulso de confiança inesperado no eleitorado. É bom que isto seja dito e sublinhado. Com a condição dos socialistas, na euforia do resultado, não se porem a pensar que ganharam as eleições, porque na realidade as perderam - e com elas o Governo e o poder. Entrámos, efectivamente, num novo ciclo político.

E agora? O PS, quanto a mim, deve assumir-se como Oposição responsável e vigilante em relação ao espírito de Abril. Com realismo, sem impaciências e moderação. Contudo, é preciso dizer, desde já, que não faz sentido exigir-se-lhe um "pacto de regime". Existe uma maioria política que tem, por si só, todas as condições para aprovar as reformas que julgar necessárias - ainda as mais impopulares - reformas que, aliás, repetidamente prometeu aos portugueses. Não pode, nem deve, assim, desculpar-se com o PS, para as não promover.

É óbvio que para além dos combates políticos que aí vêm, provocados pela confrontação de opiniões e pontos de vista divergentes, haverá resistências sociais e corporativas - para não falar da pressão dos interesses - que não deixarão de se manifestar, contraditoriamente, com maior ou menor virulência. No Parlamento, na reacção dos lobbies atingidos e mesmo, eventualmente, na rua. Compete ao Governo de coligação ter a coragem de optar pelas políticas que julgar mais adequadas para as ultrapassar. O eleitorado, no final da legislatura - se não houver acidentes de percurso, que não se desejam - será chamado a apreciar criticamente a prestação realizada.

Ao PS, creio eu, fará bem uma cura de Oposição. Terá tempo para aperfeiçoar e aprofundar a sua própria democraticidade interna - o processo de eleição e de responsabilização dos seus orgãos e quadros dirigentes - e, especialmente, o seu relacionamento com a sociedade civil. Livrar-se de certo oportunismo interesseiro e negocista que o atacou, como um musgo viscoso. Deverá voltar a ser, como nas suas origens, um partido idealista, de causas e de valores, capaz de se impôr ao respeito das gerações jovens, que despertam para a política (e que manifestam agora um certo enfado da política). Deve abrir-se, repito, à sociedade civil emergente, como é urgente que aconteça. Estimulando o espírito crítico e o sentido da participação cívica.

O mundo mudou. O colapso do bloco soviético deu-se há mais de dez anos. Emergiu uma potência hegemónica que goza de um estatuto imperial, pelo seu poderio militar e económico, sem paralelo na história. A União Europeia também está, apesar das aparências, em mudança. O PS, se não erro, deveria definir uma política coerente - compreensível, para poder ser activamente apoiada - em relação aos novos dados geo-estratégicos de hoje.

O vento de direita que sopra sobre o Velho Continente, vindo do outro lado do Atlântico, está a varrer alguns dos tímidos governos socialistas mais ou menos conformistas com o neo-liberalismo invasor. Mas, por outro lado, está a suscitar grandes e talvez inesperadas resistências das populações europeias e do mundo em geral que reclamam, com razão, desde que o façam pacificamente, uma globalização ética, para utilizar uma expressão cara a Mary Robinson e uma ordem internacional fundada no Direito, na Justiça, na Igualdade das Nações - e não na força.

O PS deve saber estar com o seu tempo, dando resposta aos problemas novos que hoje se põem às pessoas, às famílias, às escolas, às empresas, às igrejas e ao Estado, se quiser ser um partido de modernidade, num mundo diferente, complexo e contraditório. Um partido de esquerda como sempre foi - e não do centro. Para poder voltar a captar as simpatias do eleitorado do centro, estando radicado à esquerda, com uma larga base social de apoio, que compreenda e siga convictamente as políticas que preconiza. Com causas, que saiba defender intransigentemente: a solidariedade social; o direito ao emprego; a concertação social como método de governo; a reabilitação do Estado e da política, que deve comandar a economia, ao serviço dos homens e não o contrário; a defesa de sectores económicos considerados como estratégicos, do ponto de vista nacional; os direitos humanos - sempre e onde estejam ameaçados, a começar pelo espaço da Lusofonia; a preservação dos equilíbrios ecológicos de um Planeta manifestamente em perigo; a União Política e Social Europeia; a União Europeia como potência autónoma na cena internacional; o multiculturalismo e nele a defesa da língua portuguesa e da cultura, em lato senso, que inclui a ciência, face ao rolo compressor do chamado "pensamento único".

Neste momento de incontestável viragem política, o PS, na minha opinião, não deverá tornar-se autofágico ou comprazer-se em análises autocríticas do passado recente. É cedo para as fazer. Há que dar tempo ao tempo. Para já, deve voltar-se resolutamente para o futuro, abrir-se à sociedade e aos jovens, ao mundo da cultura, da ciência e da inteligência e pôr na sua agenda - como prioridades - a dinamização e abertura do Partido ao exterior e à organização de amplos debates, abertos aos outros partidos e movimentos de esquerda - aos sindicatos, às associações humanitárias, ambientais, de defesa dos direitos e a personalidades independentes, inquietas com o que aí vem, de modo a suscitar, ou mesmo, de algum modo, a polarizar uma ampla reflexão sobre o futuro de Portugal, no século que se inicia, no contexto europeu, no espaço da Lusofonia e no Mundo em geral.

É da essência de um Partido como o PS ter uma ambição para Portugal que seja clara, para que todos a entendam e possam apoiar ou contestar. Quando o 25 de Abril libertou Portugal da ditadura e do obscurantismo, o PS era um pequeno partido de esquerda, clandestino, anti-colonialista, em favor da liberdade e da justiça social. Perante as novas circunstâncias, criadas no post-25 de Abril, soube participar e bater-se, corajosamente, por uma democracia pluralista, (quando outros fugiram) e, depois, por uma economia de mercado (então ameaçada), compatível com os legítimos anseios sociais do mundo do trabalho, pela integração europeia e por relações fraternais com as ex-colónias, no quadro do que viria a ser (até agora sem grande expressão, infelizmente) a CPLP. Foi o que lhe deu a confiança - e o voto - de milhões de portugueses.

Hoje, noutro tempo, com outros problemas, num mundo globalizado, injusto e desumano, o PS deve saber estar atento ao pulsar da sociedade contemporânea e deve saber estar presente nos grandes combates cívicos que se desenham na Europa e no Mundo, em favor das grandes Causas. Indico as principais: a paz; a defesa do ambiente; a erradicação da pobreza; a luta contra o terrorismo (no respeito pelo Direito); a luta contra a criminalidade internacionalmente organizada; pela existência de regras internacionais que regulamentem os fluxos de capital que circulam especulativamente no mundo, deixando impune o chamado dinheiro sujo (proveniente da venda ilegal de armas, nomeadamente nucleares, do anarco-tráfico, de redes de prostituição ou do comércio infame de orgãos humanos).

Num país com uma democracia consolidada, Governo e Oposição são igualmente importantes. Ao contrário do que se julga, no mundo de hoje, mais do que os interesses constituídos contam as ideias, a criatividade e o espírito de inovação. Numa República moderna e progressista, que os partidos se confrontem no domínio das ideias e das políticas, com armas iguais, é altamente salutar. Mas que se respeitem as pessoas, na pluralidade das suas ideias e concepções, quaisquer que sejam, desde que o façam no quadro da legalidade democrática e republicana e no respeito mútuo. Porque todos queremos o bem de Portugal - que, aliás, a todos pertence.

Lisboa, 26 de Março de 2002

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