Soube hoje que o deputado Duarte Lima, do PSD, propôs na Assembleia da República que as escutas telefónicas se cingissem à investigação de crimes de «terrorismo organizado», tráfico de droga e «crimes de sangue». De repente, tornou-se-me muito evidente o porquê da sanha que se vê aí, em alguns meios políticos e informativos, a propósito das escutas telefónicas – mormente no âmbito do «processo Casa Pia». Há aqui dois aspectos que me parecem agora claros.Assim, quanto ao referido processo em especial, o objectivo é desacreditar a prova já produzida, de maneira a conduzir à absolvição dos arguidos. Mas, reflexamente, pretende-se retirar qualquer força probatória às escutas telefónicas em geral. E é precisamente aqui que a proposta de Duarte Lima ganha sentido. Ao circunscrever as escutas daquela maneira, ficariam de fora crimes como o peculato ou a corrupção – crimes eminentemente «políticos», ou susceptíveis de ser cometidos por titulares de cargos políticos.O que isto significa é que a classe política – que, como sabemos, ascendeu à custa de um mecanismo alicerçado em interesses e em trocas de favores muito pouco claras – gostaria de eliminar o último obstáculo que defronta – o sistema judicial. Sejamos claros. A justiça está em crise porque essa crise convém à classe política. Aos políticos que ascenderam ao poder através de um sistema profundamente venal e corrupto interessa que a reputação da justiça saia denegrida, de maneira a que as investigações contra si dirigidas esbarrem no descrédito e esmoreçam. É uma estratégia que demonstra até onde vai a ambição totalitária dos políticos que se alternam ciclicamente no poder. À míngua de poder instrumentalizar a justiça – porque as magistraturas, sendo independentes, serão sempre refractárias à sua utilização com fins políticos –, retira-se-lhes eficácia, de maneira a que as investigações sejam encobertas por um manto de suspeição. Percebemos agora, à luz destas conclusões, porque é que há gente que chega ao extremo de questionar a legitimidade das magistraturas, invocando a sua falta de democraticidade. O que Duarte Lima e o resto da classe política gostariam era que fossem imunes. Poder exercer o poder livres de qualquer controlo – eis o sonho dos Isaltinos, dos Valentins, das Damascenos, das Felgueiras, dos Nobre Guedes e de todos os que se serviram das instituições do Estado em benefício de interesses próprios e alheios. Que bom seria, para a nossa classe política, que o meio de investigação mais poderoso e inimpugnável não fosse usado quando se investigam crimes relacionados com o exercício do poder!Nada disto significa, porém, que aprove o uso indiscriminado das escutas telefónicas, ou que vá considerar que o Procurador-Geral da República é uma pobre vítima dos ataques ferozes de uma classe política acossada. Os que me lêem sabem o que penso disto. Souto de Moura deixou que a investigação criminal fosse usada com fins políticos e permitiu abusos indesculpáveis. Nada do que referi obsta a que entenda que o sistema judicial está em crise, e que esta deve ser resolvida, sob pena de este sistema entrar em colapso. Mas este colapso é desejado por todos aqueles que pretendem prosseguir a sua carreira política impunemente, sem o estorvo de uma investigação judicial. E eliminar um meio de prova tão eficaz como as escutas telefónicas dava jeito a muita gente, e seria o primeiro passo para a impunidade pretendida…
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Soube hoje que o deputado Duarte Lima, do PSD, propôs na Assembleia da República que as escutas telefónicas se cingissem à investigação de crimes de «terrorismo organizado», tráfico de droga e «crimes de sangue». De repente, tornou-se-me muito evidente o porquê da sanha que se vê aí, em alguns meios políticos e informativos, a propósito das escutas telefónicas – mormente no âmbito do «processo Casa Pia». Há aqui dois aspectos que me parecem agora claros.Assim, quanto ao referido processo em especial, o objectivo é desacreditar a prova já produzida, de maneira a conduzir à absolvição dos arguidos. Mas, reflexamente, pretende-se retirar qualquer força probatória às escutas telefónicas em geral. E é precisamente aqui que a proposta de Duarte Lima ganha sentido. Ao circunscrever as escutas daquela maneira, ficariam de fora crimes como o peculato ou a corrupção – crimes eminentemente «políticos», ou susceptíveis de ser cometidos por titulares de cargos políticos.O que isto significa é que a classe política – que, como sabemos, ascendeu à custa de um mecanismo alicerçado em interesses e em trocas de favores muito pouco claras – gostaria de eliminar o último obstáculo que defronta – o sistema judicial. Sejamos claros. A justiça está em crise porque essa crise convém à classe política. Aos políticos que ascenderam ao poder através de um sistema profundamente venal e corrupto interessa que a reputação da justiça saia denegrida, de maneira a que as investigações contra si dirigidas esbarrem no descrédito e esmoreçam. É uma estratégia que demonstra até onde vai a ambição totalitária dos políticos que se alternam ciclicamente no poder. À míngua de poder instrumentalizar a justiça – porque as magistraturas, sendo independentes, serão sempre refractárias à sua utilização com fins políticos –, retira-se-lhes eficácia, de maneira a que as investigações sejam encobertas por um manto de suspeição. Percebemos agora, à luz destas conclusões, porque é que há gente que chega ao extremo de questionar a legitimidade das magistraturas, invocando a sua falta de democraticidade. O que Duarte Lima e o resto da classe política gostariam era que fossem imunes. Poder exercer o poder livres de qualquer controlo – eis o sonho dos Isaltinos, dos Valentins, das Damascenos, das Felgueiras, dos Nobre Guedes e de todos os que se serviram das instituições do Estado em benefício de interesses próprios e alheios. Que bom seria, para a nossa classe política, que o meio de investigação mais poderoso e inimpugnável não fosse usado quando se investigam crimes relacionados com o exercício do poder!Nada disto significa, porém, que aprove o uso indiscriminado das escutas telefónicas, ou que vá considerar que o Procurador-Geral da República é uma pobre vítima dos ataques ferozes de uma classe política acossada. Os que me lêem sabem o que penso disto. Souto de Moura deixou que a investigação criminal fosse usada com fins políticos e permitiu abusos indesculpáveis. Nada do que referi obsta a que entenda que o sistema judicial está em crise, e que esta deve ser resolvida, sob pena de este sistema entrar em colapso. Mas este colapso é desejado por todos aqueles que pretendem prosseguir a sua carreira política impunemente, sem o estorvo de uma investigação judicial. E eliminar um meio de prova tão eficaz como as escutas telefónicas dava jeito a muita gente, e seria o primeiro passo para a impunidade pretendida…