A lágrimaManuel Guedes Martins- Pinnnnnnnnnnnnnndaaaaaaa..........!Chamava-o como ao pai. Pinda. O nome de família.Ainda o eco do grito se apalpava no espaço chumbo por volta da primeira hora vespertina, e já Maria do Canto apoiada no mal amanhado alpendre, de boca aberta e queixo levantado, fazia latejar duas grossas veias azuis que violentamente atacadas pelo imparável sopro pulmonar ameaçavam romper a todo o momento.- Pinnnnnnnnnnnnndaaaaaaaaaaaaaaaa...!Desta vez como que chicoteado por trinta mil demónios, o grito alcançou o que do outro restava, e assim mais robustecido galgou montes e valados. Ascendeu às carumas dos pinheiros. Trepou aos mais altos picos. Chegou às nuvens negras e densas. Destas subiu às mais claras. Muito lá para cima. Onde tudo é leve e maior é a velocidade. Daqui foi arremessado em direcção ao ventre do mundo. Que o lançou para mais longe ainda.Até encontrar o seu alvo já em nítido descorçoou fragorosamente caiu nas ondas. Que o levantaram, sacudiram e atiraram-no para donde as próprias nereides receiam até o nome. O Bojador. Em desespero Maria do Canto Pinda deixa cair a rodilha que se lhe tinha enclavinhado nas ásperas mãos. Que rola no chão entabuado, ficando tristemente estendida ao comprido. Um trapo indigente. Em indigente soalho.Dá Maria meia volta, abre a porta atrás de si e espoja-se no sobrado onde, possessa, berra como um vitelo acabado de parir. É outro arquejar. De medo. De impotência. De junto do rosto brotam lágrimas que desenham atribulados itinerários por entre a madeira comida " das bexigas ". E uma delas, inocente, deixa-se engolir por uma das covinhas. Que a absorve em sofreguidão!À garupa das alterosas e túrgidas vagas, fincado nos cornos do vento, mordido pelo passado próximo mas já com saudades do futuro, Pinda chorado, choroso e determinado mais se retesa não dando " abébias " às matreirices do líquido elemento. Que tinha granjeado fama terrível, à custa da vida de muitos pindas. Mas este não era um qualquer!Era um Pinda "portuga". Da raça dos que tratavam por tu os oceanos. Que os insultava em dias menos bons. Mas que os respeitava. Como se respeita os grandes! Só não percebia porque razão estavam as águas tão encapeladas. Será que não sabem que sou eu? Um dos portugas da Póvoa do Varzim. Conhecidos de todos os monstros marinhos. Até do Bojador. O estafermo. Que assustava os humanos atrevidos desde que Cristo caminhou por sobre as águas.O frio do norte era já ido e Pinda sentia o quente roçagar dos ares a assobiar por entre as presas que segurava. Estava em África.Súbito sente um piparote que o eleva às alturas de uma duna. De onde escorrega em velocidade para se estatelar, estrepitosamente, junto de coisa nunca vista.Parecia um cacto. Sim. Era um cacto. Mas um cacto esquisito. Esquisito mas bonito. Bonito mesmo! Mal ele sabia que se tratava de espécime que em todo o orbe só tinha encontrado hospitalidade ali. No namibe.Levantou-se e com o sol ainda a atestar-lhe o lombo, de frente para de onde tinha escorregado, lobrigou extensas e altas dunas de uma areia fina. Que escondiam todo um mundo de areia, areia, areia e mais areia.Rodou sobre si e viu mais areia! Muita areia!Aturdido e embora " cansadérrimo " resolveu subir uma das dunas para ver se, vendo o mar, se podia localizar, com o sol como guia.Foi o deslumbre! Uma imensidão de azul ondulante projectava-se à sua frente. À sua ilharga a costa formava um rendilhado de concha em curva suave. Que por si passava e ia dar à outra banda. Numa ligação tão harmoniosa que parecia desenhar uma coroa. O sol quentíssimo espargia-se em catadupas de luz formando um lençol de oiro fulvo e brilhante por sobre as águas. Mudo e quedo de espanto, ficou só a olhar. A olhar o maravilhoso!Foi até à água! Que o atraía. Como era quentinha! Ah...como sabia bem...! Foi então que olhou mais de perto e viu uma parte mais escura da água que muito se mexia...! Sentiu primeiro uns toquezinhos nas pernas....depois muitos toquezinhos....e de repente viu-se no meio de uma autêntica miríade de pequenos peixes que o mordiscavam como que a desejar-lhe boas vindas. No princípio também devia ter sido assim na Póvoa do Varzim. Pensou. Só que agora já não temos tanto peixe! Isto por aqui está no começo. Parece o princípio dos tempos! Onde estarei? Voltou para trás e ficou a olhar.E a olhar ficou! Deixou-se aninhar. O torvelinho de acontecimentos vividos fez menção de lhe chamar a atenção. A atenção ocupada a desfrutar o belo. Deixou-se estender e assim permaneceu longas horas. Esta sua viagem tinha chegado ao fim. Mas não a saga que só agora ia abrir o livro!O livro em que Pinda deu ao sítio que o acolheu o seu próprio nome. Pinda. Porto Pinda. Pinda, porque foi seu achador. Porto, porque o sítio era um porto de abrigo.O livro em que Pinda construiu sonhos de granito. Em que Pinda destruiu, também, castelos de areia.O livro em que uma lágrima nascida de um rosto amargurado de Mãe em desespero, consegue por artes que só o sonho domina, atravessar continentes, misturar-se com águas assassinas, para se poder dar como água bendita a gente sedenta. Ao fruto do seu amor que, contra tudo e todos buscou, com a força do desespero e a convicção de um iluminado.A lágrima que rasgou o namibe.Curoca de seu nome!
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A lágrimaManuel Guedes Martins- Pinnnnnnnnnnnnnndaaaaaaa..........!Chamava-o como ao pai. Pinda. O nome de família.Ainda o eco do grito se apalpava no espaço chumbo por volta da primeira hora vespertina, e já Maria do Canto apoiada no mal amanhado alpendre, de boca aberta e queixo levantado, fazia latejar duas grossas veias azuis que violentamente atacadas pelo imparável sopro pulmonar ameaçavam romper a todo o momento.- Pinnnnnnnnnnnnndaaaaaaaaaaaaaaaa...!Desta vez como que chicoteado por trinta mil demónios, o grito alcançou o que do outro restava, e assim mais robustecido galgou montes e valados. Ascendeu às carumas dos pinheiros. Trepou aos mais altos picos. Chegou às nuvens negras e densas. Destas subiu às mais claras. Muito lá para cima. Onde tudo é leve e maior é a velocidade. Daqui foi arremessado em direcção ao ventre do mundo. Que o lançou para mais longe ainda.Até encontrar o seu alvo já em nítido descorçoou fragorosamente caiu nas ondas. Que o levantaram, sacudiram e atiraram-no para donde as próprias nereides receiam até o nome. O Bojador. Em desespero Maria do Canto Pinda deixa cair a rodilha que se lhe tinha enclavinhado nas ásperas mãos. Que rola no chão entabuado, ficando tristemente estendida ao comprido. Um trapo indigente. Em indigente soalho.Dá Maria meia volta, abre a porta atrás de si e espoja-se no sobrado onde, possessa, berra como um vitelo acabado de parir. É outro arquejar. De medo. De impotência. De junto do rosto brotam lágrimas que desenham atribulados itinerários por entre a madeira comida " das bexigas ". E uma delas, inocente, deixa-se engolir por uma das covinhas. Que a absorve em sofreguidão!À garupa das alterosas e túrgidas vagas, fincado nos cornos do vento, mordido pelo passado próximo mas já com saudades do futuro, Pinda chorado, choroso e determinado mais se retesa não dando " abébias " às matreirices do líquido elemento. Que tinha granjeado fama terrível, à custa da vida de muitos pindas. Mas este não era um qualquer!Era um Pinda "portuga". Da raça dos que tratavam por tu os oceanos. Que os insultava em dias menos bons. Mas que os respeitava. Como se respeita os grandes! Só não percebia porque razão estavam as águas tão encapeladas. Será que não sabem que sou eu? Um dos portugas da Póvoa do Varzim. Conhecidos de todos os monstros marinhos. Até do Bojador. O estafermo. Que assustava os humanos atrevidos desde que Cristo caminhou por sobre as águas.O frio do norte era já ido e Pinda sentia o quente roçagar dos ares a assobiar por entre as presas que segurava. Estava em África.Súbito sente um piparote que o eleva às alturas de uma duna. De onde escorrega em velocidade para se estatelar, estrepitosamente, junto de coisa nunca vista.Parecia um cacto. Sim. Era um cacto. Mas um cacto esquisito. Esquisito mas bonito. Bonito mesmo! Mal ele sabia que se tratava de espécime que em todo o orbe só tinha encontrado hospitalidade ali. No namibe.Levantou-se e com o sol ainda a atestar-lhe o lombo, de frente para de onde tinha escorregado, lobrigou extensas e altas dunas de uma areia fina. Que escondiam todo um mundo de areia, areia, areia e mais areia.Rodou sobre si e viu mais areia! Muita areia!Aturdido e embora " cansadérrimo " resolveu subir uma das dunas para ver se, vendo o mar, se podia localizar, com o sol como guia.Foi o deslumbre! Uma imensidão de azul ondulante projectava-se à sua frente. À sua ilharga a costa formava um rendilhado de concha em curva suave. Que por si passava e ia dar à outra banda. Numa ligação tão harmoniosa que parecia desenhar uma coroa. O sol quentíssimo espargia-se em catadupas de luz formando um lençol de oiro fulvo e brilhante por sobre as águas. Mudo e quedo de espanto, ficou só a olhar. A olhar o maravilhoso!Foi até à água! Que o atraía. Como era quentinha! Ah...como sabia bem...! Foi então que olhou mais de perto e viu uma parte mais escura da água que muito se mexia...! Sentiu primeiro uns toquezinhos nas pernas....depois muitos toquezinhos....e de repente viu-se no meio de uma autêntica miríade de pequenos peixes que o mordiscavam como que a desejar-lhe boas vindas. No princípio também devia ter sido assim na Póvoa do Varzim. Pensou. Só que agora já não temos tanto peixe! Isto por aqui está no começo. Parece o princípio dos tempos! Onde estarei? Voltou para trás e ficou a olhar.E a olhar ficou! Deixou-se aninhar. O torvelinho de acontecimentos vividos fez menção de lhe chamar a atenção. A atenção ocupada a desfrutar o belo. Deixou-se estender e assim permaneceu longas horas. Esta sua viagem tinha chegado ao fim. Mas não a saga que só agora ia abrir o livro!O livro em que Pinda deu ao sítio que o acolheu o seu próprio nome. Pinda. Porto Pinda. Pinda, porque foi seu achador. Porto, porque o sítio era um porto de abrigo.O livro em que Pinda construiu sonhos de granito. Em que Pinda destruiu, também, castelos de areia.O livro em que uma lágrima nascida de um rosto amargurado de Mãe em desespero, consegue por artes que só o sonho domina, atravessar continentes, misturar-se com águas assassinas, para se poder dar como água bendita a gente sedenta. Ao fruto do seu amor que, contra tudo e todos buscou, com a força do desespero e a convicção de um iluminado.A lágrima que rasgou o namibe.Curoca de seu nome!