O valor das ideias: Regulação Financeira: agora o argumento neoliberal é que a transparência causou a crise

24-05-2009
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Se é certo que o debate sobre a regulação financeira se começa a intensificar, nomeadamente sobre que tipo de regulção adoptar, sobre que instrumentos incidir e qual a extensão dos poderes do regulador, a verdade também é que os partidários do funcionamento totalmente livre dos mercados e defensores de que foi o Estado, e não a falta de regulação, que lançaram a actual crise já começam a cerrar fileiras. Há dias um dos soldados do costume do neoliberalismo rejubilava com estas afirmações, num blogue de discussão cujo nome é desde logo totalmente insuspeito: "Library of Economics and Liberty". Contextualizam-se os mais desatentos para que Liberty costuma querer dizer por aquelas bandas algo diferente de liberdade de expressão ou livre iniciativa. Antes significa: se o Estado coloca um dedo que seja no mercado está a impedir a beleza da mão invisível produzir os seus frutos dourados. Vem isto a propósito de um primeiro debate sobre regulação que queria iniciar aqui. E o tal blogue dá o mote, porque culpa pela actual crise, surpreendam-se: a regulação! Isto é, a instabilidade financeira em Wall Street e a crise do crédito são culpa de os bancos estarem sujeitos a algumas regras. Economia de Casino? Qual quê. Se o mundo económico está hoje como está, defendem, por exemplo, os editores da National Review, a culpa é das exigências de transparência nas contas e dos princípios de prudência na contabilidade bancária.Se acha que estou exagerar, aqui fica o argumento. Correntemente, os bancos norte-americanos por razões prudenciais que enformam as normas contabilísticas em muitos países, devem reportar nos seus balanços o actual valor de mercado dos diversos investimentos financeiros que tenham. Isto significa que apesar do título A poder ter sido comprado a 100 USD, pode correntemente só valer 20 USD em termos de mercado. Nesse sentido, os títulos de tipo A (imaginemos que o banco detinha 1000 títulos nesta categoria) tinham um valor de aquisição de 100000 USD mas um valor de mercado de apenas 20000 USD. A opção pelas chamadas regras de mark-to-market, correntemente em vigor, obrigam o banco a apresentar entre dois balanços consecutivos uma descida na sua carteira de títulos A de 80%. A ideia de prudência é aqui manifestada na necessidade de os bancos registarem as perdas potenciais como eles tivessem efectivamente acontecido. Generalizando, quando pensamos, por exemplo, na quantidade gigantesca de títulos de crédito hipotecário de alto risco nos balanços bancários norte americanos, e notamos a perda enorme no preço de mercado dessas Mortgage Backed Securities, concluímos que os activos bancários perderam valor de forma muito significativa precisamente porque as regras de regulação em vigor os obrigam a avaliar esses activos em termos das condições actuais de mercado. Assim, argumentam: uma solução para a crise bancária passaria por eliminar essa regra de mark-to-market. Dito de outra forma, não tendo que avaliar os preços dos activos ao preço de mercado, os balanços bancários dariam sinais de uma saúde financeira clara, repondo a confiança em Wall Street e eventualmente no mundo global das finanças.Num op-ed do Wall Street Journal, Steve Forbes escrevia mesmo recentemente: "Mark-to-market accounting is the principal reason why our financial system is in a meltdown." E uma proposta legislativa de rever este princípio deu já entrada no Congresso. A ideia parece-me do mais chocante que se pode imaginar. Se há coisa que qualquer livrinho introdutório de finanças ensina é que a informação financeira deve ser o mais transparente possível. E o que está aqui em causa é uma proposta que alega que a confiança se repõe enganando os investidores, com balanços "fictícios". Um editorial recente do NYT notava a propósito que o que os banqueiros estavam a propor era a sugestão de vivermos com Alice no Páis das Maravilhas, recordando a passagem em que Humpty-Dumpty diz: "Quando uso uma palavra, ela quer dizer o que eu escolho que ela queira dizer, nem mais nem menos."Da mesma forma, a proposta dos banqueiros norte americanos é que o valor de um activo é aquilo que o banco entender que ele é. O que nos conduz à total ausência de regulação financeira e à opacidade completa dos balanços bancários. Contudo, asseguro, é isto que se propõe. No tal texto do blog de Arnold Kling, reproduzido no sítio do costume, ele afirma também categoricamente que a actual crise resulta dos erros na apreciação de balanços bancários, que apresentam activos desvalorizados em função desta regra. Alguns defensores mais sérios da abolição do mark-to-market advogam que o princípio é errado por duas razões: por uma lado porque cria a crise de confiança interbancária, quando muitos destes activos até nem são transacionados com frequência suficiente para definir um preço de mercado credível; por outro, os requesitos de capital próprio imposto pelos reguladores aos bancos, obrigam-nos, em face desta descida de valor tida por artificial do activo, a vender parte dos seus títulos para satisfazer os requisitos da tier 1 e outros rácios relevantes. Ora o que parece claro é que o primeiro destes argumentos carece de fundamento: se agora o mercado soubesse que os balanços bancários estavam muito melhores por uma mudança de regras contabilísticas em que activos tóxicos deixaram de ser avaliados ao preço de mercado, não era por isso que a confiança dos investidores ia aumentar. Porque a "mentira" já foi desnudade.E a questão de ser difícil estabelecer um valor de mercado para estes activos, na prática apenas traduz o reduzido número de compradores potenciais. O que significa que eles valeriam mesmo pouco. Alguns episódios recentes comprovam isso, com títulos avaliados a 87 cêntimos em termos dos seus cash flows futuros descontados, a serem transacionados abaixo dos 30 cêntimos. Porque ninguém pode garantir esses cash flows actualmente, e porque a procura escasseia.O segundo argumento tem algum sentido, mas é colocado no momento errado. Se os reguladores tivessem sido mais exigentes em tempos de expansão, ao nível dos requisitos de capital, os bancos tinham constituído buffers de segurança contra períodos de desvalorização do activo, não precisando agora de vender tanto para satisfazer as autoridades. A regulação apertada em períodos de expansão permite o relaxamento na depressão e não foi isso que sucedeu. Mas a ilação lógica é que foi o défice, e não o excesso de regulação que causaram a crise. Acima de tudo, e reitero este ponto, já há demasiada opacidade em hedge funds, credit default swaps e outros instrumentos. Não é de todo concebível que se vá num momento de crise bancária agravar a falta de confiança aumentando a opacidade dos balanços. A transparência é um valor fundamental para os mercados financeiros funcionarem adequadamente.Nas palavras do blogger do NYT, Floyd Norris, "os bancos já experimentaram mentir no passado, com empréstimos enganadores [referindo-se ao subprime]. E vejam onde isso os deixou!" E sugere mesmo que se pergunte aos defensores da menor regulação, se eles aceitam emprestar-nos dinheiro com base no que nós achamos que uma casa vale? Porque é basicamente isso que os defensores da não intervenção pela via regulatória estão a pedir: eles dizem quanto vale o que têm, e nós temos é de acreditar.


Se é certo que o debate sobre a regulação financeira se começa a intensificar, nomeadamente sobre que tipo de regulção adoptar, sobre que instrumentos incidir e qual a extensão dos poderes do regulador, a verdade também é que os partidários do funcionamento totalmente livre dos mercados e defensores de que foi o Estado, e não a falta de regulação, que lançaram a actual crise já começam a cerrar fileiras. Há dias um dos soldados do costume do neoliberalismo rejubilava com estas afirmações, num blogue de discussão cujo nome é desde logo totalmente insuspeito: "Library of Economics and Liberty". Contextualizam-se os mais desatentos para que Liberty costuma querer dizer por aquelas bandas algo diferente de liberdade de expressão ou livre iniciativa. Antes significa: se o Estado coloca um dedo que seja no mercado está a impedir a beleza da mão invisível produzir os seus frutos dourados. Vem isto a propósito de um primeiro debate sobre regulação que queria iniciar aqui. E o tal blogue dá o mote, porque culpa pela actual crise, surpreendam-se: a regulação! Isto é, a instabilidade financeira em Wall Street e a crise do crédito são culpa de os bancos estarem sujeitos a algumas regras. Economia de Casino? Qual quê. Se o mundo económico está hoje como está, defendem, por exemplo, os editores da National Review, a culpa é das exigências de transparência nas contas e dos princípios de prudência na contabilidade bancária.Se acha que estou exagerar, aqui fica o argumento. Correntemente, os bancos norte-americanos por razões prudenciais que enformam as normas contabilísticas em muitos países, devem reportar nos seus balanços o actual valor de mercado dos diversos investimentos financeiros que tenham. Isto significa que apesar do título A poder ter sido comprado a 100 USD, pode correntemente só valer 20 USD em termos de mercado. Nesse sentido, os títulos de tipo A (imaginemos que o banco detinha 1000 títulos nesta categoria) tinham um valor de aquisição de 100000 USD mas um valor de mercado de apenas 20000 USD. A opção pelas chamadas regras de mark-to-market, correntemente em vigor, obrigam o banco a apresentar entre dois balanços consecutivos uma descida na sua carteira de títulos A de 80%. A ideia de prudência é aqui manifestada na necessidade de os bancos registarem as perdas potenciais como eles tivessem efectivamente acontecido. Generalizando, quando pensamos, por exemplo, na quantidade gigantesca de títulos de crédito hipotecário de alto risco nos balanços bancários norte americanos, e notamos a perda enorme no preço de mercado dessas Mortgage Backed Securities, concluímos que os activos bancários perderam valor de forma muito significativa precisamente porque as regras de regulação em vigor os obrigam a avaliar esses activos em termos das condições actuais de mercado. Assim, argumentam: uma solução para a crise bancária passaria por eliminar essa regra de mark-to-market. Dito de outra forma, não tendo que avaliar os preços dos activos ao preço de mercado, os balanços bancários dariam sinais de uma saúde financeira clara, repondo a confiança em Wall Street e eventualmente no mundo global das finanças.Num op-ed do Wall Street Journal, Steve Forbes escrevia mesmo recentemente: "Mark-to-market accounting is the principal reason why our financial system is in a meltdown." E uma proposta legislativa de rever este princípio deu já entrada no Congresso. A ideia parece-me do mais chocante que se pode imaginar. Se há coisa que qualquer livrinho introdutório de finanças ensina é que a informação financeira deve ser o mais transparente possível. E o que está aqui em causa é uma proposta que alega que a confiança se repõe enganando os investidores, com balanços "fictícios". Um editorial recente do NYT notava a propósito que o que os banqueiros estavam a propor era a sugestão de vivermos com Alice no Páis das Maravilhas, recordando a passagem em que Humpty-Dumpty diz: "Quando uso uma palavra, ela quer dizer o que eu escolho que ela queira dizer, nem mais nem menos."Da mesma forma, a proposta dos banqueiros norte americanos é que o valor de um activo é aquilo que o banco entender que ele é. O que nos conduz à total ausência de regulação financeira e à opacidade completa dos balanços bancários. Contudo, asseguro, é isto que se propõe. No tal texto do blog de Arnold Kling, reproduzido no sítio do costume, ele afirma também categoricamente que a actual crise resulta dos erros na apreciação de balanços bancários, que apresentam activos desvalorizados em função desta regra. Alguns defensores mais sérios da abolição do mark-to-market advogam que o princípio é errado por duas razões: por uma lado porque cria a crise de confiança interbancária, quando muitos destes activos até nem são transacionados com frequência suficiente para definir um preço de mercado credível; por outro, os requesitos de capital próprio imposto pelos reguladores aos bancos, obrigam-nos, em face desta descida de valor tida por artificial do activo, a vender parte dos seus títulos para satisfazer os requisitos da tier 1 e outros rácios relevantes. Ora o que parece claro é que o primeiro destes argumentos carece de fundamento: se agora o mercado soubesse que os balanços bancários estavam muito melhores por uma mudança de regras contabilísticas em que activos tóxicos deixaram de ser avaliados ao preço de mercado, não era por isso que a confiança dos investidores ia aumentar. Porque a "mentira" já foi desnudade.E a questão de ser difícil estabelecer um valor de mercado para estes activos, na prática apenas traduz o reduzido número de compradores potenciais. O que significa que eles valeriam mesmo pouco. Alguns episódios recentes comprovam isso, com títulos avaliados a 87 cêntimos em termos dos seus cash flows futuros descontados, a serem transacionados abaixo dos 30 cêntimos. Porque ninguém pode garantir esses cash flows actualmente, e porque a procura escasseia.O segundo argumento tem algum sentido, mas é colocado no momento errado. Se os reguladores tivessem sido mais exigentes em tempos de expansão, ao nível dos requisitos de capital, os bancos tinham constituído buffers de segurança contra períodos de desvalorização do activo, não precisando agora de vender tanto para satisfazer as autoridades. A regulação apertada em períodos de expansão permite o relaxamento na depressão e não foi isso que sucedeu. Mas a ilação lógica é que foi o défice, e não o excesso de regulação que causaram a crise. Acima de tudo, e reitero este ponto, já há demasiada opacidade em hedge funds, credit default swaps e outros instrumentos. Não é de todo concebível que se vá num momento de crise bancária agravar a falta de confiança aumentando a opacidade dos balanços. A transparência é um valor fundamental para os mercados financeiros funcionarem adequadamente.Nas palavras do blogger do NYT, Floyd Norris, "os bancos já experimentaram mentir no passado, com empréstimos enganadores [referindo-se ao subprime]. E vejam onde isso os deixou!" E sugere mesmo que se pergunte aos defensores da menor regulação, se eles aceitam emprestar-nos dinheiro com base no que nós achamos que uma casa vale? Porque é basicamente isso que os defensores da não intervenção pela via regulatória estão a pedir: eles dizem quanto vale o que têm, e nós temos é de acreditar.

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