EXPRESSO: País

24-02-2008
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O Congresso da consagração

Jorge Simão António Guterres: depois do desafio à «clarificação» interna, agora um desafio à unanimidade

AO ABRIR inequivocamente a porta a um entendimento de incidência governativa com o PCP e o Bloco de Esquerda, numa cedência já prenunciada pela Reforma Fiscal às exigências dos sectores mais à esquerda do PS, António Guterres transforma ode Março no congresso da sua consagração como líder. À luz deste discurso, nem Manuel Alegre, o eterno discordante, irá querer estragar a festa, pese embora o facto de as palavras chocarem frontalmente com a prática política dos últimos seis anos. Está a caminho a unanimidade.

A promessa de viragem à esquerda é a única novidade relevante da moção, que repete «slogans» e intenções. O apelo à frente unida com os comunistas é antecedido de um lamento. «À esquerda do PS, 10% dos portugueses têm sido sistematicamente impedidos de contribuir directamente para a governabilidade de uma sociedade moderna, europeia e em mudança», constata Guterres. Para concluir que a questão é «grave para o país», «tanto mais grave quanto é certo que não surge, à direita, qualquer projecto modernizador para a sociedade portuguesa».

O texto faz de seguida um aceno aos «renovadores», ao lembrar que o PCP não é ainda uma força «aberta, moderna e europeia», o que representa aos seus olhos «a mais grave lacuna do nosso sistema partidário». E incita os socialistas a abrir caminho: «O PS deve lançar um desafio claro de mudança a quem pretenda mediar politicamente o eleitorado à sua esquerda, para que evolua e contribua efectivamente para a governabilidade.»

Muitas interrogações

O texto da moção não se limita à redacção saída do punho de Guterres. É o «caldo» dos contributos de uma lista de governantes e dirigentes socialistas, escolhida a dedo pelo líder, que quis envolver na operação os sampaístas, que constituem a maior força de oposição interna. Entre os escolhidos figuram Guilherme d'Oliveira Martins (em lugar de destaque), João Cravinho, Ferro Rodrigues, Alberto Martins, Pina Moura, Almeida Santos, José Sócrates, Augusto Santos Silva, Vitalino Canas e Carlos Zorrinho.

Durante a semana, o primeiro-ministro fez questão de se explicar perante outras personalidades do PS, como João Soares, e de ouvir a «sociedade civil», representada por 150 figuras, entre as quais Vital Moreira, Vasco Lourenço, Miguel Galvão Teles, Maria de Lourdes Pintasilgo, Helena Cidade Moura, Rui Alarcão, Vasco Vieira de Almeida, Augusto Mateus e Luís Moita. Gastou nisso escassas 18 horas.

O documento - que renova a promessa de «vencer no prazo de uma geração o atraso» que separa o país dos outros mais evoluídos da Europa e reafirma a intenção de levar até ao fim as quatro reformas há muito dadas como iniciadas (Reforma Fiscal, Segurança Social, Saúde e Administração Pública) - deixa muitas questões em aberto, múltiplas dúvidas por esclarecer.

Não se sabe, por exemplo, quantos anos são para Guterres «uma geração» (20?, 25?, 30?); o que pretende dizer quando afirma que a reinserção social dos excluídos será «centrada no apoio às famílias»; a quanto ascenderá o corte nas pensões de reforma que irá permitir a «diferenciação positiva» dos que mais precisam»; ou se a «separação das águas» e eliminação de «formas de promiscuidade» no Serviço Nacional de Saúde corresponderá à moralização da actividade privada nos hospitais e do desvio sistemático de doentes para clínicas e consultórios.

Num momento em que os trabalhadores que passam recibos verdes temem o pior, Guterres só diz que o desagravamento fiscal no IRS poderá ir até os cem milhões de contos, abrindo espaço a muitas mais dúvidas.

O voto aos 16 anos

A outra grande novidade contida na moção do líder socialista - a promessa de «lançar um grande debate nacional sobre a redução da idade de voto», dos 18 para os 16 anos -, não é, afinal, novidade nenhuma. A denúncia do «aproveitamento» é feita a partir de Bruxelas pelo ex-braço-direito do líder, António José Seguro, que em declarações ao EXPRESSO lembra que a questão já foi levantada e discutida pela JS há 10 anos, quando ele era secretário-geral, no âmbito de um debate alargado sobre a maioridade.

«Acho muito bem que a questão seja novamente colocada em discussão, mas não concordo que se apropriem intelectualmente das ideias de outros», critica o ex-secretário de Estado adjunto de Guterres, que cumpre a sua primeira «travessia do deserto» em Bruxelas, como eurodeputado.

A questão das quotas das mulheres e dos jovens é também retomada na moção. Guterres fixa agora uma data - o ano 2004 - a partir da qual o número de mulheres «em lugares de responsabilidade política» deverá ser de «um terço». E para que o PS dê o exemplo, o primeiro-ministro (que tem apenas cinco mulheres entre os 59 membros do seu Governo) quer que o Congresso dê luz verde à Comissão Nacional para proceder a uma revisão estatutária de carácter extraordinário que corrija as «distorções».

«Mostrar» a pobreza

A par de outros «slogans» já conhecidos - abertura do partido à sociedade civil e fidelidade ao espírito dos Estados Gerais; aposta clara na Sociedade da Informação; vontade de pertencer ao núcleo duro da construção europeia; defesa da identidade cultural e linguística e do espaço da lusofonia -, Guterres define como meta «política e moral» a determinação de «erradicar a pobreza e todas as novas formas de exclusão» do país.

Não arrisca datas, metas ou calendários. Diz apenas que coube ao PS «revelar a pobreza e a exclusão» que «no passado» foi sistematicamente escondida, «numa atitude de hipocrisia envergonhada». E que, a partir de agora, «ninguém ousará esconder» os pobres.

Está aberto o debate.

O Congresso da consagração

Jorge Simão António Guterres: depois do desafio à «clarificação» interna, agora um desafio à unanimidade

AO ABRIR inequivocamente a porta a um entendimento de incidência governativa com o PCP e o Bloco de Esquerda, numa cedência já prenunciada pela Reforma Fiscal às exigências dos sectores mais à esquerda do PS, António Guterres transforma ode Março no congresso da sua consagração como líder. À luz deste discurso, nem Manuel Alegre, o eterno discordante, irá querer estragar a festa, pese embora o facto de as palavras chocarem frontalmente com a prática política dos últimos seis anos. Está a caminho a unanimidade.

A promessa de viragem à esquerda é a única novidade relevante da moção, que repete «slogans» e intenções. O apelo à frente unida com os comunistas é antecedido de um lamento. «À esquerda do PS, 10% dos portugueses têm sido sistematicamente impedidos de contribuir directamente para a governabilidade de uma sociedade moderna, europeia e em mudança», constata Guterres. Para concluir que a questão é «grave para o país», «tanto mais grave quanto é certo que não surge, à direita, qualquer projecto modernizador para a sociedade portuguesa».

O texto faz de seguida um aceno aos «renovadores», ao lembrar que o PCP não é ainda uma força «aberta, moderna e europeia», o que representa aos seus olhos «a mais grave lacuna do nosso sistema partidário». E incita os socialistas a abrir caminho: «O PS deve lançar um desafio claro de mudança a quem pretenda mediar politicamente o eleitorado à sua esquerda, para que evolua e contribua efectivamente para a governabilidade.»

Muitas interrogações

O texto da moção não se limita à redacção saída do punho de Guterres. É o «caldo» dos contributos de uma lista de governantes e dirigentes socialistas, escolhida a dedo pelo líder, que quis envolver na operação os sampaístas, que constituem a maior força de oposição interna. Entre os escolhidos figuram Guilherme d'Oliveira Martins (em lugar de destaque), João Cravinho, Ferro Rodrigues, Alberto Martins, Pina Moura, Almeida Santos, José Sócrates, Augusto Santos Silva, Vitalino Canas e Carlos Zorrinho.

Durante a semana, o primeiro-ministro fez questão de se explicar perante outras personalidades do PS, como João Soares, e de ouvir a «sociedade civil», representada por 150 figuras, entre as quais Vital Moreira, Vasco Lourenço, Miguel Galvão Teles, Maria de Lourdes Pintasilgo, Helena Cidade Moura, Rui Alarcão, Vasco Vieira de Almeida, Augusto Mateus e Luís Moita. Gastou nisso escassas 18 horas.

O documento - que renova a promessa de «vencer no prazo de uma geração o atraso» que separa o país dos outros mais evoluídos da Europa e reafirma a intenção de levar até ao fim as quatro reformas há muito dadas como iniciadas (Reforma Fiscal, Segurança Social, Saúde e Administração Pública) - deixa muitas questões em aberto, múltiplas dúvidas por esclarecer.

Não se sabe, por exemplo, quantos anos são para Guterres «uma geração» (20?, 25?, 30?); o que pretende dizer quando afirma que a reinserção social dos excluídos será «centrada no apoio às famílias»; a quanto ascenderá o corte nas pensões de reforma que irá permitir a «diferenciação positiva» dos que mais precisam»; ou se a «separação das águas» e eliminação de «formas de promiscuidade» no Serviço Nacional de Saúde corresponderá à moralização da actividade privada nos hospitais e do desvio sistemático de doentes para clínicas e consultórios.

Num momento em que os trabalhadores que passam recibos verdes temem o pior, Guterres só diz que o desagravamento fiscal no IRS poderá ir até os cem milhões de contos, abrindo espaço a muitas mais dúvidas.

O voto aos 16 anos

A outra grande novidade contida na moção do líder socialista - a promessa de «lançar um grande debate nacional sobre a redução da idade de voto», dos 18 para os 16 anos -, não é, afinal, novidade nenhuma. A denúncia do «aproveitamento» é feita a partir de Bruxelas pelo ex-braço-direito do líder, António José Seguro, que em declarações ao EXPRESSO lembra que a questão já foi levantada e discutida pela JS há 10 anos, quando ele era secretário-geral, no âmbito de um debate alargado sobre a maioridade.

«Acho muito bem que a questão seja novamente colocada em discussão, mas não concordo que se apropriem intelectualmente das ideias de outros», critica o ex-secretário de Estado adjunto de Guterres, que cumpre a sua primeira «travessia do deserto» em Bruxelas, como eurodeputado.

A questão das quotas das mulheres e dos jovens é também retomada na moção. Guterres fixa agora uma data - o ano 2004 - a partir da qual o número de mulheres «em lugares de responsabilidade política» deverá ser de «um terço». E para que o PS dê o exemplo, o primeiro-ministro (que tem apenas cinco mulheres entre os 59 membros do seu Governo) quer que o Congresso dê luz verde à Comissão Nacional para proceder a uma revisão estatutária de carácter extraordinário que corrija as «distorções».

«Mostrar» a pobreza

A par de outros «slogans» já conhecidos - abertura do partido à sociedade civil e fidelidade ao espírito dos Estados Gerais; aposta clara na Sociedade da Informação; vontade de pertencer ao núcleo duro da construção europeia; defesa da identidade cultural e linguística e do espaço da lusofonia -, Guterres define como meta «política e moral» a determinação de «erradicar a pobreza e todas as novas formas de exclusão» do país.

Não arrisca datas, metas ou calendários. Diz apenas que coube ao PS «revelar a pobreza e a exclusão» que «no passado» foi sistematicamente escondida, «numa atitude de hipocrisia envergonhada». E que, a partir de agora, «ninguém ousará esconder» os pobres.

Está aberto o debate.

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