incomunidade: Fiama e a poesia do século XX

01-10-2009
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Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007)Numa realidade cada vez mais furtiva, também a arte assume contornos vagos e indistintos. Talvez por isso, são também cada vez menos evidentes os contornos artísticos, quer dizer, o que permite circunscrever – como participando de algum modo desse fazer que para Platão melhor materializava a ideia de beleza –, uma determinada actividade ou ofício como artístico. O trans-curso do mundo já não encontra equivalentes em nenhum dis-curso que acerca dele possamos fazer.Da poesia diz-se muitas vezes que é hermética, querendo com isso dizer que é de leitura custosa e de compreensão ao alcance de apenas uns poucos. Outras vezes, afirma-se a sua natureza iniciática, quando se a entende como dirigida apenas a uns eleitos que partilham, ou julgam partilhar, os mesmos códigos simbólicos ou as mesmas categorias de inteligibilidade. Trata-se de obras que, por razões nem sempre muito evidentes, passam ao lado dos circuitos comerciais e que, por isso mesmo, nunca se lhes aplica a designação de «obras de sucesso» ou «best-sellers» com reedições asseguradas. Certo é que, nessas designações, nada cabe do valor artístico ou poético das ditas, ou ainda do facto de certas obras e vidas serem referências seguras para uma justa e adequada compreensão da história cultural de um povo.Ajuntar-lhes o epíteto de herméticas é sinónimo de expulsão para a margem, ou seja, para uma periferia que não comunga dos rituais consumistas, os quais a corrente do rio não deixa fixar em nenhuma permanência, certa ou segura. Nos escaparates das montras das últimas novidades literárias, todas as obras estão já datadas pelos remoinhos que o marketing incessantemente produz. Nesta voragem da obra-mercadoria acontece mesmo os autores fazerem formação acelerada de natação. Não conseguindo chegar à margem, não sabendo construir amarrações seguras, só lhes é possível nadar o melhor possível e ir na onda. Na eventualidade de terem voz, ou de a ela se terem aproximado, a correnteza tratará de mostrar que a afonia (quando não a cacofonia) é o seu destino. Terão, talvez, os seus quinze minutos de fama. Ou não estivessem os deltas cheios de magníficas derrotas.Por outro lado, existem vozes poéticas que, na sua serena gravidade, irradiam em todas as direcções. É o caso da obra poética de Fiama Hasse Pais Brandão. Sem nunca abdicar da vocação textual do que, no poema, é diálogo com outros (con)textos e, por isso mesmo, com uma língua – a portuguesa -, com modos de ver que nesta encontram o seu horizonte de possibilidade, Fiama Hasse Pais Brandão construiu, ao longo da segunda metade do século XX, uma obra sem a qual não seria possível compreender o que de mais significativo aconteceu na poesia portuguesa dos últimos 50 anos.Poeta da «harmonia do mundo», na escrita de Fiama condensa-se a contemplação reflexiva do mundo, das suas coisas mínimas, ou de acontecimentos que, na sua aparente banalidade, encerram virtualidades significativas, que a visão poética sabe descortinar. Não se trata de, à maneira dos místicos, negar o mundo para o salvar. Nem, muito menos, de dissolver a subjectividade numa vastidão cósmica em que a palavra soçobra, calando-se. Nem discursividade, nem silêncio. Antes o verso, que tem a arte de se suster, produzindo descontinuidades e intermitências, que é o modo próprio de tornar real a realidade. Ou ainda a palavra que se quebra, de maneira a expor a evidência da sua materialidade.Estamos portanto longe da violência metafórica que o Surrealismo cultivou à exaustão, ou da aderência da palavra à realidade, «justamente» resolvida no Neo-realismo. Como observou António Ramos Rosa, em ensaio inserto no livro «Incisões Oblíquas», de 1987, na poesia de Fiama Hasse Pais Brandão «todas as coisas estão sempre em vias de surgir ou de desaparecer, deslizando para fora de si mesmas ou perdendo-se no vazio. Assim, o ver engloba a sua negação».Daí que, desde «Morfismos» – a sua colaboração no movimento «Poesia 61», com Casimiro de Brito, Gastão Cruz, Luiza Neto Jorge e Maria Teresa Horta –, até à edição da Assírio & Alvim de «Obra Breve» (2006), o percurso poético da autora de «Cenas Vivas» (2000) se defina por um sereno exercício de criação, em que o poema não se toma a si mesmo como uma exterioridade, exaltante ou exaltada, mas como «matéria simples» no/do mundo. Como se pode ler no poema «Sopro» que, na edição de 1991da Teorema, fecha a «Obra Breve»: «Os meus poemas reunidos no seu todo / são o meu som. O meu sopro/está neles, não está a boca que os soou. / Fazer os poemas através da vida / é pegar em meus gritos emudecidos / para que fiquem, melódicos, em papéis».Fernando Martinho Guimarães


Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007)Numa realidade cada vez mais furtiva, também a arte assume contornos vagos e indistintos. Talvez por isso, são também cada vez menos evidentes os contornos artísticos, quer dizer, o que permite circunscrever – como participando de algum modo desse fazer que para Platão melhor materializava a ideia de beleza –, uma determinada actividade ou ofício como artístico. O trans-curso do mundo já não encontra equivalentes em nenhum dis-curso que acerca dele possamos fazer.Da poesia diz-se muitas vezes que é hermética, querendo com isso dizer que é de leitura custosa e de compreensão ao alcance de apenas uns poucos. Outras vezes, afirma-se a sua natureza iniciática, quando se a entende como dirigida apenas a uns eleitos que partilham, ou julgam partilhar, os mesmos códigos simbólicos ou as mesmas categorias de inteligibilidade. Trata-se de obras que, por razões nem sempre muito evidentes, passam ao lado dos circuitos comerciais e que, por isso mesmo, nunca se lhes aplica a designação de «obras de sucesso» ou «best-sellers» com reedições asseguradas. Certo é que, nessas designações, nada cabe do valor artístico ou poético das ditas, ou ainda do facto de certas obras e vidas serem referências seguras para uma justa e adequada compreensão da história cultural de um povo.Ajuntar-lhes o epíteto de herméticas é sinónimo de expulsão para a margem, ou seja, para uma periferia que não comunga dos rituais consumistas, os quais a corrente do rio não deixa fixar em nenhuma permanência, certa ou segura. Nos escaparates das montras das últimas novidades literárias, todas as obras estão já datadas pelos remoinhos que o marketing incessantemente produz. Nesta voragem da obra-mercadoria acontece mesmo os autores fazerem formação acelerada de natação. Não conseguindo chegar à margem, não sabendo construir amarrações seguras, só lhes é possível nadar o melhor possível e ir na onda. Na eventualidade de terem voz, ou de a ela se terem aproximado, a correnteza tratará de mostrar que a afonia (quando não a cacofonia) é o seu destino. Terão, talvez, os seus quinze minutos de fama. Ou não estivessem os deltas cheios de magníficas derrotas.Por outro lado, existem vozes poéticas que, na sua serena gravidade, irradiam em todas as direcções. É o caso da obra poética de Fiama Hasse Pais Brandão. Sem nunca abdicar da vocação textual do que, no poema, é diálogo com outros (con)textos e, por isso mesmo, com uma língua – a portuguesa -, com modos de ver que nesta encontram o seu horizonte de possibilidade, Fiama Hasse Pais Brandão construiu, ao longo da segunda metade do século XX, uma obra sem a qual não seria possível compreender o que de mais significativo aconteceu na poesia portuguesa dos últimos 50 anos.Poeta da «harmonia do mundo», na escrita de Fiama condensa-se a contemplação reflexiva do mundo, das suas coisas mínimas, ou de acontecimentos que, na sua aparente banalidade, encerram virtualidades significativas, que a visão poética sabe descortinar. Não se trata de, à maneira dos místicos, negar o mundo para o salvar. Nem, muito menos, de dissolver a subjectividade numa vastidão cósmica em que a palavra soçobra, calando-se. Nem discursividade, nem silêncio. Antes o verso, que tem a arte de se suster, produzindo descontinuidades e intermitências, que é o modo próprio de tornar real a realidade. Ou ainda a palavra que se quebra, de maneira a expor a evidência da sua materialidade.Estamos portanto longe da violência metafórica que o Surrealismo cultivou à exaustão, ou da aderência da palavra à realidade, «justamente» resolvida no Neo-realismo. Como observou António Ramos Rosa, em ensaio inserto no livro «Incisões Oblíquas», de 1987, na poesia de Fiama Hasse Pais Brandão «todas as coisas estão sempre em vias de surgir ou de desaparecer, deslizando para fora de si mesmas ou perdendo-se no vazio. Assim, o ver engloba a sua negação».Daí que, desde «Morfismos» – a sua colaboração no movimento «Poesia 61», com Casimiro de Brito, Gastão Cruz, Luiza Neto Jorge e Maria Teresa Horta –, até à edição da Assírio & Alvim de «Obra Breve» (2006), o percurso poético da autora de «Cenas Vivas» (2000) se defina por um sereno exercício de criação, em que o poema não se toma a si mesmo como uma exterioridade, exaltante ou exaltada, mas como «matéria simples» no/do mundo. Como se pode ler no poema «Sopro» que, na edição de 1991da Teorema, fecha a «Obra Breve»: «Os meus poemas reunidos no seu todo / são o meu som. O meu sopro/está neles, não está a boca que os soou. / Fazer os poemas através da vida / é pegar em meus gritos emudecidos / para que fiquem, melódicos, em papéis».Fernando Martinho Guimarães

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