O discurso político cubano

22-04-2005
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O compromisso com a verdade

no discurso político cubano

Por Miguel Urbano Rodrigues

S

Meditava nessa excepção cubana ao acompanhar recentemente uma sessão pública durante a qual 53 cidadãos receberam diplomas comprovativos do alto apreço em que são tidos pelos seus méritos. Todos esses quadros têm grandes responsabilidades na Administração ou no Governo, mas somente alguns são personalidades conhecidas.

A imprensa internacional ignorou o acontecimento. É pena. Carlos Lage, que é um Primeiro Ministro sem título, aproveitou a oportunidade - como vice presidente do Conselho de Estado e do Conselho de Ministros - para pronunciar um desses discursos que iluminam o carácter humanista da Revolução Cubana e o seu permanente eticismo.

Cuba não é um país de anjos onde o homem novo, eterna utopia, seja uma realidade após quatro décadas de revolução. As enormes dificuldades impostas pelo período especial, ou mais exactamente, pela necessidade de apertar o cinto e sobreviver em condições de escassez e cerco, difícilmente imagináveis na Europa, desenvolveram pelo contrário, em certas franjas da sociedade, comportamentos e hábitos negativos, resultantes daquilo a que Fidel chama a contaminação capitalista.

Precisamente por isso, a questão dos quadros do Estado e do Partido, o problema da sua atitude social, adquire uma importância decisiva na luta pela superação dos grandes desafios que a Revolução enfrenta.

O discurso de Lage impressionou-me pela clareza, pela frontalidade na abordagem de temas delicados e pela riqueza conceptual. No preâmbulo comentou os balanços anuais da gestão dos organismos centrais do Estado em 97, cuja análise e crítica permitiram fixar objectivos até ao ano 2000. Sem triunfalismo, mas consciente de que o esforço colectivo viabilizou a passagem a uma nova etapa, lembrou que foi já criada uma dinâmica interna de recuperação capaz de fazer o país avançar não obstante o cerco imperialista.

O crescimento económico no ano passado foi discreto, apenas 2,5%,mas excedeu a média da América Latina onde as condições externas são muito mais favoráveis.

Lage tirou conclusões : «Os que críticam a intervenção do Estado na economia têm aqui um exemplo incómodo. Se, bloqueados, obtivemos estes resultados, que possibilidades seriam as do nosso sistema económico, racional e programado, com a experiência que adquirimos, se simplesmente terminasse a guerra contra nós ?».

No inventário de êxitos e insuficiências, um aspecto da vida mereceu atenção especial. Os avanços mais importantes na frente da económia foram possíveis graças a uma maior eficiência e ao sentido de responsabilidade da maioria dos quadros.

Lage foi categórico num ponto: «O socialismo que defendemos somente pode sustentar-se com uma empresa estatal tão forte e eficaz como a melhor das empresas privadas.»

O discurso teve espírito e estrutura de diálogo. Muito diferente daquilo a que nos acostumaram os governos europeus. Por viver permanentemente na beira do abismo, com um inimigo implacável à espreita do menor deslize, em Cuba as palavras pesam, a defesa do Socialismo implica uma exigência moral e sacrifícios mais duros por parte dos mais responsáveis.

«Indiscutivelmente hoje», sublinhou Lage, «as exigências que incidem sobre nós têm de ser maiores do que há alguns anos. A firmeza revolucionária tem de ser total.»

Para sobreviverem, os cubanos revolucionários - a grande maioria -, tem de colocar muito alto a fasquia ; devem ser melhores do que os estrangeiros.

«É necessário comparar os nossos resultados com aqueles que obtêm os melhores do mundo.»

E isso somente será possível num mundo injusto, dominado pelas transnacionais, se os quadros, com o seu exemplo, aceitarem o desafio de uma superação permanente : «Temos de converter cada vez mais as nossas salas de reuniões em aulas.»

Carlos Lage informou que muitos grandes empresários estrangeiros, ao serem interrogados sobre os motivos que os levavam a investir em Cuba, apesar da Helms Burton, respondem: «Aqui não há corrupção.»

«Esse», comentou o vice presidente do Conselho de Ministros, «é um dos grandes recursos que temos; e é necessário preservá-lo.»

Lage está, porém, consciente da realidade. Sabe que não existe aparelho de

Estado impermeável à corrupção. Cuba não pretende apresentar-se como o paraíso terrestre. Na Administração também há gente corrupta, embora no Governo sejam raríssimos esses casos.

Contrariamente ao que ocorre em Portugal, o Estado cubano não esconde

essas mazelas quando são detectadas.

«Temos casos», as palavras são também de Lage, «de comportamentos contrários aos nossos princípios, de acomodados e delapidadores de recursos, embora não nos níveis mais altos de direcção. Existem, mas, logo que são conhecidos, essas pessoas são afastadas dos seus cargos e sancionadas. Em situações desse género não actuamos com flexibilidade nem tolerância.»

Não é surpreendente que nas suas cidades, repartições e fábricas, os 53 quadros (altos funcionários, embaixadores, gerentes de empresas) pelos quais a Revolução manifestou um apreço e gratidão especiais, tenham sido recebidos festivamente. Estamos longe da rigidez e do artificialismo da emulação stakanovista. Em Cuba a eficácia no trabalho, a responsabilidade, a imaginação revolucionária desenvolvem-se numa atmosfera de humanização da vida. As convicções revolucionárias e a consciência comunista são inseparáveis de um espírito de participação que não conhecemos na Europa capitalista.

Seria uma atitude romântica acreditar que todos na Ilha, repito, são moldados por essa mentalidade. Mas é ela que define o rumo da sociedade e imprime às relações humanas o estilo fraterno e caloroso que tanto impressiona os visitantes.

O compromisso com a verdade

no discurso político cubano

Por Miguel Urbano Rodrigues

S

Meditava nessa excepção cubana ao acompanhar recentemente uma sessão pública durante a qual 53 cidadãos receberam diplomas comprovativos do alto apreço em que são tidos pelos seus méritos. Todos esses quadros têm grandes responsabilidades na Administração ou no Governo, mas somente alguns são personalidades conhecidas.

A imprensa internacional ignorou o acontecimento. É pena. Carlos Lage, que é um Primeiro Ministro sem título, aproveitou a oportunidade - como vice presidente do Conselho de Estado e do Conselho de Ministros - para pronunciar um desses discursos que iluminam o carácter humanista da Revolução Cubana e o seu permanente eticismo.

Cuba não é um país de anjos onde o homem novo, eterna utopia, seja uma realidade após quatro décadas de revolução. As enormes dificuldades impostas pelo período especial, ou mais exactamente, pela necessidade de apertar o cinto e sobreviver em condições de escassez e cerco, difícilmente imagináveis na Europa, desenvolveram pelo contrário, em certas franjas da sociedade, comportamentos e hábitos negativos, resultantes daquilo a que Fidel chama a contaminação capitalista.

Precisamente por isso, a questão dos quadros do Estado e do Partido, o problema da sua atitude social, adquire uma importância decisiva na luta pela superação dos grandes desafios que a Revolução enfrenta.

O discurso de Lage impressionou-me pela clareza, pela frontalidade na abordagem de temas delicados e pela riqueza conceptual. No preâmbulo comentou os balanços anuais da gestão dos organismos centrais do Estado em 97, cuja análise e crítica permitiram fixar objectivos até ao ano 2000. Sem triunfalismo, mas consciente de que o esforço colectivo viabilizou a passagem a uma nova etapa, lembrou que foi já criada uma dinâmica interna de recuperação capaz de fazer o país avançar não obstante o cerco imperialista.

O crescimento económico no ano passado foi discreto, apenas 2,5%,mas excedeu a média da América Latina onde as condições externas são muito mais favoráveis.

Lage tirou conclusões : «Os que críticam a intervenção do Estado na economia têm aqui um exemplo incómodo. Se, bloqueados, obtivemos estes resultados, que possibilidades seriam as do nosso sistema económico, racional e programado, com a experiência que adquirimos, se simplesmente terminasse a guerra contra nós ?».

No inventário de êxitos e insuficiências, um aspecto da vida mereceu atenção especial. Os avanços mais importantes na frente da económia foram possíveis graças a uma maior eficiência e ao sentido de responsabilidade da maioria dos quadros.

Lage foi categórico num ponto: «O socialismo que defendemos somente pode sustentar-se com uma empresa estatal tão forte e eficaz como a melhor das empresas privadas.»

O discurso teve espírito e estrutura de diálogo. Muito diferente daquilo a que nos acostumaram os governos europeus. Por viver permanentemente na beira do abismo, com um inimigo implacável à espreita do menor deslize, em Cuba as palavras pesam, a defesa do Socialismo implica uma exigência moral e sacrifícios mais duros por parte dos mais responsáveis.

«Indiscutivelmente hoje», sublinhou Lage, «as exigências que incidem sobre nós têm de ser maiores do que há alguns anos. A firmeza revolucionária tem de ser total.»

Para sobreviverem, os cubanos revolucionários - a grande maioria -, tem de colocar muito alto a fasquia ; devem ser melhores do que os estrangeiros.

«É necessário comparar os nossos resultados com aqueles que obtêm os melhores do mundo.»

E isso somente será possível num mundo injusto, dominado pelas transnacionais, se os quadros, com o seu exemplo, aceitarem o desafio de uma superação permanente : «Temos de converter cada vez mais as nossas salas de reuniões em aulas.»

Carlos Lage informou que muitos grandes empresários estrangeiros, ao serem interrogados sobre os motivos que os levavam a investir em Cuba, apesar da Helms Burton, respondem: «Aqui não há corrupção.»

«Esse», comentou o vice presidente do Conselho de Ministros, «é um dos grandes recursos que temos; e é necessário preservá-lo.»

Lage está, porém, consciente da realidade. Sabe que não existe aparelho de

Estado impermeável à corrupção. Cuba não pretende apresentar-se como o paraíso terrestre. Na Administração também há gente corrupta, embora no Governo sejam raríssimos esses casos.

Contrariamente ao que ocorre em Portugal, o Estado cubano não esconde

essas mazelas quando são detectadas.

«Temos casos», as palavras são também de Lage, «de comportamentos contrários aos nossos princípios, de acomodados e delapidadores de recursos, embora não nos níveis mais altos de direcção. Existem, mas, logo que são conhecidos, essas pessoas são afastadas dos seus cargos e sancionadas. Em situações desse género não actuamos com flexibilidade nem tolerância.»

Não é surpreendente que nas suas cidades, repartições e fábricas, os 53 quadros (altos funcionários, embaixadores, gerentes de empresas) pelos quais a Revolução manifestou um apreço e gratidão especiais, tenham sido recebidos festivamente. Estamos longe da rigidez e do artificialismo da emulação stakanovista. Em Cuba a eficácia no trabalho, a responsabilidade, a imaginação revolucionária desenvolvem-se numa atmosfera de humanização da vida. As convicções revolucionárias e a consciência comunista são inseparáveis de um espírito de participação que não conhecemos na Europa capitalista.

Seria uma atitude romântica acreditar que todos na Ilha, repito, são moldados por essa mentalidade. Mas é ela que define o rumo da sociedade e imprime às relações humanas o estilo fraterno e caloroso que tanto impressiona os visitantes.

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