Jardim à beira-mar plantado

13-04-2005
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Com a devida vénia, transcrevo alguns excertos, do excelente artigo do Deputado Bruno Dias (PCP), no Expresso de 31/05/2004.«Imagine que se dirige a uma papelaria para comprar um lápis. E que, como seria de esperar, a sua escolha recai sobre aquele que é o lápis mais vendido do mundo, que toda a gente usa e que se vê por toda a parte. Chegado a casa ou ao escritório, abre a embalagem do lápis e fica a saber que tem de entrar em contacto com o fabricante, e fornecer-lhe uns quantos dados pessoais - sob pena de o lápis deixar de escrever ao fim de poucos dias.Agora imagine que começa a descobrir que está impedido de afiar o lápis, que está impedido de escrever com ele num caderno fabricado pela concorrência, ou de apagar com borrachas da concorrência; que está impedido de o emprestar a quem quer que seja. Não querendo acreditar no que está a acontecer, chega à conclusão de que afinal não comprou um lápis - o que fez foi adquirir o direito de o utilizar, em determinadas condições (que evidentemente não conhecia).Tudo isto é demasiado estranho. Mas, só para me fazer a vontade, imagine ainda que o fabricante do lápis registou a patente e que agora mais ninguém o pode produzir, nem sequer utilizar essa tecnologia para outros produtos (compassos, por exemplo, ou lapiseiras). E, para o delírio acabar em grande, imagine finalmente que, sem que ninguém dê por isso, esse maldito lápis ainda se põe a escrever sozinho, a copiar documentos seus e a assinar cheques! Parece mentira mas é verdade. Então vamos por partes.Ninguém que tenha o mínimo de bom senso hesitará um segundo em achar esta «história» absolutamente estranha e inverosímil. Mas se em vez de «lápis» dissermos «programa de computador» ou «sistema operativo», as coisas começam assustadoramente a bater certo.Claro que esta imagem está consideravelmente longe da realidade. Primeiro, porque não é por usarmos «lápis» diferentes que deixamos de poder ler o que nos escrevem (o que, convenhamos, permite uma outra liberdade). Segundo, porque para o utilizador de certos programas de computador, as restrições e proibições no seu uso são muito (mas muito) mais draconianas, complexas e abrangentes do que estas que eu «imaginei» com esta história do lápis.Basta que tenhamos em conta os famosos «acordos de licenciamento de utilizador final» de alguns sistemas operativos ou aplicações do chamado «'software' proprietário» e encontraremos situações em que nos perguntamos quem é afinal o proprietário do quê, ou de quem.Depois há o registo de patentes. «Inventos» tão prosaicos como o-cursor-que-muda-de-cor-quando-passa-por-uma-imagem (não tem nada que saber, é só um «programa» com três ou quatro linhas de comando) ou as banais paletas/menus que podemos sobrepor no ecrã, entre tantos, tantos outros, correspondem a patentes registadas que em alguns casos envolveram, nas barras dos tribunais norte-americanos, processos judiciais de milhões de dólares.Finalmente, quanto ao «lápis que escreve sem darmos por isso», parece mentira mas é verdade. Na esmagadora maioria dos casos, nenhum de nós pode garantir o que está a acontecer no nosso computador enquanto o utilizamos para escrever, para pesquisar na «web» ou para aceder ao correio electrónico. Porque ninguém sabe que operações algorítmicas, funções, sub-rotinas e outras que tais são desencadeadas por um «software» cujo código é formalmente conhecido apenas pelo fabricante, pela Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos da América e por mais algumas (poucas) entidades autorizadas. [...]Chama-se «patente comunitária» mas podia perfeitamente chamar-se Caixa de Pandora. É matéria que está a ser objecto de um processo de co-decisão entre a Comissão Europeia, o Conselho e o Parlamento Europeu. Para o que agora nos interessa, a guerra estalou com a proposta de directiva apresentada pela Comissão Europeia (e defendida com unhas e dentes pelo comissário Bolkestein) no sentido de consagrar a possibilidade de registar patentes de «software». Ou seja, pondo em causa a consideração, assumida em 1973 na Convenção de Munique, basicamente no sentido de que o «software» não é patenteável.As alterações entretanto produzidas na proposta de directiva permitem clarificar o contributo técnico para que os inventos que implicam «software» possam ser patenteáveis. Mas esta directiva aprovada em primeira leitura admite, por exemplo, a patenteabilidade de um algoritmo «na condição de esse método ser utilizado para solucionar um problema técnico», mantendo a ideia de que o «carácter técnico» pode configurar «um invento patenteável» e realçando a suposta «importância da protecção por patente». O que na prática significa manter a abertura às patentes de «software». [...]Entretanto, e na sequência da votação de 24/9/2003 no Parlamento Europeu, o Conselho de Ministros da União Europeia mandou elaborar um «livro branco» para que a matéria seja reexaminada pelo Parlamento, onde se defende designadamente que algoritmos matemáticos e métodos de gestão atribuídos pelo Gabinete Europeu de Patentes sejam (contra a letra e o espírito da legislação em vigor) automaticamente invenções patenteáveis; que o uso de protocolos patenteados e de formatos de ficheiros para fins de interoperabilidade sejam ilegais, assim como a publicação em linguagem formal num servidor da Internet da descrição de uma ideia patenteada; etc. Propostas que testemunham bem a força dos grandes interesses económicos e as grandes pressões exercidas sobre os órgãos da União Europeia.Um negócio dentro do negócio.A prazo, o perigo real que se coloca é o de as patentes sobre «software» se revelarem não um incentivo à inovação e ao desenvolvimento mas um verdadeiro obstáculo à produção e comercialização de programas, para todas as micro, pequenas e médias empresas que não têm milhares de patentes registadas - o que suscita o problema da submissão da «indústria» da produção técnica às lógicas da «indústria» do registo e comercialização de patentes. A título de exemplo, refira-se o caso da empresa líder mundial de patentes nesta área - a IBM -, que entre 1993 e 2002 adquiriu 22 mil patentes, das quais veio a extrair cerca de dez mil milhões de dólares em receitas de licenciamento (em larga medida, através de contencioso judicial). [...]No limite, como diz um camarada meu, corremos o risco de ver a escrita de programas como a construção de um «puzzle», em que cada peça está sujeita a pelo menos uma patente registada. E assim chegamos ao ponto em que o desenvolvimento e a produção de uma solução ou programa informático se torna um simples pormenor de todo o processo, quando comparado com a «via-sacra» jurídica e administrativa a percorrer até se descobrir que o produto desenvolvido não tem «lá no meio» nenhuma patente já registada por algum gigante do sector... [...]Mas, a este propósito, e apesar das vozes que se levantam nesse combate, o que verificamos afinal é que a falta de seriedade com que o Governo tem conduzido os processos de discussão pública sobre esta matéria é mais digna do anedotário nacional do que propriamente de quaisquer conceitos de participação e democracia.Chegaram inclusivamente testemunhos segundo os quais o Instituto Nacional da Propriedade Industrial terá transmitido em sede comunitária um suposto «consenso nacional» absolutamente espantoso, a favor das patentes de «software» - sendo dado como certo que nenhum cidadão português detém nenhuma das cerca de 30 mil patentes de «software» atribuídas pelo Gabinete Europeu de Patentes, pelo menos até ao ano passado! Ora, esse «consenso» a favor das patentes de «software» terá sido alcançado através de uma consulta conduzida pelo INPI em 2001 e que consistiu no envio de um ofício a 19 directores de empresas, afirmando uma posição de defesa das patentes de «software», tendo sido recebidas três respostas - as quais manifestavam apoio à posição do instituto!Se é isto que o Governo considera consenso nacional, se é isto que o Governo considera um processo sério de discussão pública, estamos esclarecidos. O que nos falta saber é se este processo fica mesmo por aqui ou se, pelo contrário, o Governo tomou alguma medida para que esta discussão seja digna desse nome. Foi nesse sentido que o PCP apresentou a semana passada, na Assembleia da República, um requerimento ao Governo, confrontando-o com esta situação, pedindo-lhe explicações e perguntando se já foi - ou vai ser - reaberto o processo de consulta pública sobre esta matéria. [...]No fundo, trata-se de duas faces da mesma moeda. As discussões que hoje vão fervilhando sobre o «software» livre e sobre as patentes de «software» apontam afinal para uma mesma constatação: a de que esta lógica dominante do máximo lucro e dos interesses económicos acaba, ela própria, por constituir um obstáculo (eu diria, «o» obstáculo) ao verdadeiro desenvolvimento humano. A história, que é feita destas contradições e antagonismos, vai prosseguindo. E a luta continua. Aí é que não há volta a dar...»O artigo completo aqui

Com a devida vénia, transcrevo alguns excertos, do excelente artigo do Deputado Bruno Dias (PCP), no Expresso de 31/05/2004.«Imagine que se dirige a uma papelaria para comprar um lápis. E que, como seria de esperar, a sua escolha recai sobre aquele que é o lápis mais vendido do mundo, que toda a gente usa e que se vê por toda a parte. Chegado a casa ou ao escritório, abre a embalagem do lápis e fica a saber que tem de entrar em contacto com o fabricante, e fornecer-lhe uns quantos dados pessoais - sob pena de o lápis deixar de escrever ao fim de poucos dias.Agora imagine que começa a descobrir que está impedido de afiar o lápis, que está impedido de escrever com ele num caderno fabricado pela concorrência, ou de apagar com borrachas da concorrência; que está impedido de o emprestar a quem quer que seja. Não querendo acreditar no que está a acontecer, chega à conclusão de que afinal não comprou um lápis - o que fez foi adquirir o direito de o utilizar, em determinadas condições (que evidentemente não conhecia).Tudo isto é demasiado estranho. Mas, só para me fazer a vontade, imagine ainda que o fabricante do lápis registou a patente e que agora mais ninguém o pode produzir, nem sequer utilizar essa tecnologia para outros produtos (compassos, por exemplo, ou lapiseiras). E, para o delírio acabar em grande, imagine finalmente que, sem que ninguém dê por isso, esse maldito lápis ainda se põe a escrever sozinho, a copiar documentos seus e a assinar cheques! Parece mentira mas é verdade. Então vamos por partes.Ninguém que tenha o mínimo de bom senso hesitará um segundo em achar esta «história» absolutamente estranha e inverosímil. Mas se em vez de «lápis» dissermos «programa de computador» ou «sistema operativo», as coisas começam assustadoramente a bater certo.Claro que esta imagem está consideravelmente longe da realidade. Primeiro, porque não é por usarmos «lápis» diferentes que deixamos de poder ler o que nos escrevem (o que, convenhamos, permite uma outra liberdade). Segundo, porque para o utilizador de certos programas de computador, as restrições e proibições no seu uso são muito (mas muito) mais draconianas, complexas e abrangentes do que estas que eu «imaginei» com esta história do lápis.Basta que tenhamos em conta os famosos «acordos de licenciamento de utilizador final» de alguns sistemas operativos ou aplicações do chamado «'software' proprietário» e encontraremos situações em que nos perguntamos quem é afinal o proprietário do quê, ou de quem.Depois há o registo de patentes. «Inventos» tão prosaicos como o-cursor-que-muda-de-cor-quando-passa-por-uma-imagem (não tem nada que saber, é só um «programa» com três ou quatro linhas de comando) ou as banais paletas/menus que podemos sobrepor no ecrã, entre tantos, tantos outros, correspondem a patentes registadas que em alguns casos envolveram, nas barras dos tribunais norte-americanos, processos judiciais de milhões de dólares.Finalmente, quanto ao «lápis que escreve sem darmos por isso», parece mentira mas é verdade. Na esmagadora maioria dos casos, nenhum de nós pode garantir o que está a acontecer no nosso computador enquanto o utilizamos para escrever, para pesquisar na «web» ou para aceder ao correio electrónico. Porque ninguém sabe que operações algorítmicas, funções, sub-rotinas e outras que tais são desencadeadas por um «software» cujo código é formalmente conhecido apenas pelo fabricante, pela Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos da América e por mais algumas (poucas) entidades autorizadas. [...]Chama-se «patente comunitária» mas podia perfeitamente chamar-se Caixa de Pandora. É matéria que está a ser objecto de um processo de co-decisão entre a Comissão Europeia, o Conselho e o Parlamento Europeu. Para o que agora nos interessa, a guerra estalou com a proposta de directiva apresentada pela Comissão Europeia (e defendida com unhas e dentes pelo comissário Bolkestein) no sentido de consagrar a possibilidade de registar patentes de «software». Ou seja, pondo em causa a consideração, assumida em 1973 na Convenção de Munique, basicamente no sentido de que o «software» não é patenteável.As alterações entretanto produzidas na proposta de directiva permitem clarificar o contributo técnico para que os inventos que implicam «software» possam ser patenteáveis. Mas esta directiva aprovada em primeira leitura admite, por exemplo, a patenteabilidade de um algoritmo «na condição de esse método ser utilizado para solucionar um problema técnico», mantendo a ideia de que o «carácter técnico» pode configurar «um invento patenteável» e realçando a suposta «importância da protecção por patente». O que na prática significa manter a abertura às patentes de «software». [...]Entretanto, e na sequência da votação de 24/9/2003 no Parlamento Europeu, o Conselho de Ministros da União Europeia mandou elaborar um «livro branco» para que a matéria seja reexaminada pelo Parlamento, onde se defende designadamente que algoritmos matemáticos e métodos de gestão atribuídos pelo Gabinete Europeu de Patentes sejam (contra a letra e o espírito da legislação em vigor) automaticamente invenções patenteáveis; que o uso de protocolos patenteados e de formatos de ficheiros para fins de interoperabilidade sejam ilegais, assim como a publicação em linguagem formal num servidor da Internet da descrição de uma ideia patenteada; etc. Propostas que testemunham bem a força dos grandes interesses económicos e as grandes pressões exercidas sobre os órgãos da União Europeia.Um negócio dentro do negócio.A prazo, o perigo real que se coloca é o de as patentes sobre «software» se revelarem não um incentivo à inovação e ao desenvolvimento mas um verdadeiro obstáculo à produção e comercialização de programas, para todas as micro, pequenas e médias empresas que não têm milhares de patentes registadas - o que suscita o problema da submissão da «indústria» da produção técnica às lógicas da «indústria» do registo e comercialização de patentes. A título de exemplo, refira-se o caso da empresa líder mundial de patentes nesta área - a IBM -, que entre 1993 e 2002 adquiriu 22 mil patentes, das quais veio a extrair cerca de dez mil milhões de dólares em receitas de licenciamento (em larga medida, através de contencioso judicial). [...]No limite, como diz um camarada meu, corremos o risco de ver a escrita de programas como a construção de um «puzzle», em que cada peça está sujeita a pelo menos uma patente registada. E assim chegamos ao ponto em que o desenvolvimento e a produção de uma solução ou programa informático se torna um simples pormenor de todo o processo, quando comparado com a «via-sacra» jurídica e administrativa a percorrer até se descobrir que o produto desenvolvido não tem «lá no meio» nenhuma patente já registada por algum gigante do sector... [...]Mas, a este propósito, e apesar das vozes que se levantam nesse combate, o que verificamos afinal é que a falta de seriedade com que o Governo tem conduzido os processos de discussão pública sobre esta matéria é mais digna do anedotário nacional do que propriamente de quaisquer conceitos de participação e democracia.Chegaram inclusivamente testemunhos segundo os quais o Instituto Nacional da Propriedade Industrial terá transmitido em sede comunitária um suposto «consenso nacional» absolutamente espantoso, a favor das patentes de «software» - sendo dado como certo que nenhum cidadão português detém nenhuma das cerca de 30 mil patentes de «software» atribuídas pelo Gabinete Europeu de Patentes, pelo menos até ao ano passado! Ora, esse «consenso» a favor das patentes de «software» terá sido alcançado através de uma consulta conduzida pelo INPI em 2001 e que consistiu no envio de um ofício a 19 directores de empresas, afirmando uma posição de defesa das patentes de «software», tendo sido recebidas três respostas - as quais manifestavam apoio à posição do instituto!Se é isto que o Governo considera consenso nacional, se é isto que o Governo considera um processo sério de discussão pública, estamos esclarecidos. O que nos falta saber é se este processo fica mesmo por aqui ou se, pelo contrário, o Governo tomou alguma medida para que esta discussão seja digna desse nome. Foi nesse sentido que o PCP apresentou a semana passada, na Assembleia da República, um requerimento ao Governo, confrontando-o com esta situação, pedindo-lhe explicações e perguntando se já foi - ou vai ser - reaberto o processo de consulta pública sobre esta matéria. [...]No fundo, trata-se de duas faces da mesma moeda. As discussões que hoje vão fervilhando sobre o «software» livre e sobre as patentes de «software» apontam afinal para uma mesma constatação: a de que esta lógica dominante do máximo lucro e dos interesses económicos acaba, ela própria, por constituir um obstáculo (eu diria, «o» obstáculo) ao verdadeiro desenvolvimento humano. A história, que é feita destas contradições e antagonismos, vai prosseguindo. E a luta continua. Aí é que não há volta a dar...»O artigo completo aqui

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