Papéis de Alexandria*: A propósito dos «rituais» e da «rotina»

16-07-2009
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"Avante!"07.05.92 Ponderando muito do que se disse e escreveu sobre o 25 de Abril e sobre o 1º de Maio, e sobretudo sobre as respectivas comemorações, não é possível deixar de constatar que assistimos este ano, sob coberturas e pretextos diversos, ao desenvolvimento e refinamento de velhas mistificações procurando obscurecer o o significado profundo dessas efemérides e estabelecer linhas de pressão, de hostilização e descrédito das formas de massiva intervenção e participação popular que, em Portugal, desde há 18 anos lhes estão historicamente associadas.Um editorial do «Diário de Notícias» de 2 de Maio ilustrou , de forma sintética mas expressiva, os grandes eixos de argumentação que estiveram presentes em numerosos comentários e intervenções públicas que, digamo-lo já, por muito que o procurassem disfarçar, foram em boa parte impulsionados por um profundo incómodo com as raizes populares das comemorações do 25 de Abril e do lº de Maio, por um ostensivo desagrado com os valores e aspirações que através delas se afirmam na vida portuguesa, por uma vísivel inquietação perante a sua renovada projecção e articulação com os problemas da actualidade e com uma luta que continua, por um patente nervosismo causado pelo facto de a realidade ainda triunfar sobre os desejos ,esquemas e os preconceitos dos seus autores.,Com efeito, o citado editorial entrava logo a matar, afirmando seca e peremptoriamente que «como era de prever, o lº de Maio não diferiu do modelo rotineiro» , proclamando na passada que « a verdade é que o lº de Maio acabou há muito por cair na mesma rotina ensossa que já acontecera à celebração do 25 de Abril e que Soares , muito certeiramente, teve a frontalidade de denunciar no ano passado, com frutos já vísiveis neste» e enfatizando depois « a necessidade de remodelar a chamada festa dos trabalhadores, sob risco grave de cada vez ser maior a desmobilização desses mesmos trabalhadores e, pior ainda, o divórcio entre a juventude e a data que se pretende um símbolo perene » . E, num assinalável ímpeto de generosidade, o editorialista do «DN» concedia que as manifestações «se tivessem saldado pela afluência de alguns milhares de pessoas - até porque o tempo puxava para a rua e não abundavam os pólos de atracção» para, logo de seguida, sentenciar que «a celebração do lº de Maio não pode continuar a ser uma mera repetição de chavões e referências de ano para ano rebuscadas no armazém do pronto-a-servir político» e que «é preciso ser mais qualquer coisa .Ser, sobretudo, alguma coisa de novo» .Neste editorial ( escrito e composto em 1 de Maio, em quebra dessa «rotina» que consistia em nessa data, já antes do 25 de Abril, os operários gráficos não trabalharem, por força de regalia consagrada nos contratos colectivos) avultam de facto dois ingredientes básicos de numerosas «reflexões» e conselhos emitidos a propósito do 25 de Abril e do lº de Maio : a emocionante preocupação com os perigos de divórcio destas comemorações em relação às jovens gerações e o comovedor e infatigável combate aos «rituais » e às «rotinas».Sem a pretensão de esgotar o assunto e com a ressalva expressa de que a análise e desmontagem destes dois ingredientes básicos exige uma equilibrada consideração de diversos aspectos e nuances, cremos entretanto ser justo e adequado chamar a atenção para alguns factos e realidades que não podem deixar de ,desde já, iluminar a apreciação destas questões.Assim, em relação ao problema da informação de que as jovens gerações dispõem sobre o 25 de Abril ( e que, fruto inocente do acaso ou de uma orientada selecção, um muito falado inquérito televisivo a jovens permitiu estabelecer uma generalização de todo em todo ilegítima e abusiva mas que foi reverentemente acolhida por personalidades que não estão propriamente indefesas perante a televisão ), creio ser muito significativo que nenhum dos órgãos de informação que exprimiu pungentes preocupações com esta matéria tenha tido a simples e óbvia lembrança de recolher os testemunhos e opiniões dos muitos e muitos jovens que participaram nos desfiles populares do 25 de Abril e do lº de Maio, não para proceder a generalizações de sinal contrário, e que seriam igualmente ilegitimas e abusivas, mas para restabelecer um diversidade de graus de informação e de opiniões que não é ilegitimo nem abusivo supor mais aproximada da realidade.Por outro lado, doa a quem doer , é absolutamente necessário dizer que muitos ( incluindo no campo democrático ) dos que mais choram e se lamuriam com a «absoluta ignorância» da juventude em relação ao que foi o fascismo e o 25 de Abril estão desde há muitos anos profundamente envolvidos em operações de reescrita ,de mistificação e de superficialização da história da revolução democrática e têm dado uma notável contribuição para que, não apenas na consciência de importantes segmentos juvenis mas também na própria memória colectiva de parte da população que viveu directamente os acontecimentos, se instale a ideia e a imagem ( aqui entra em cheio a RTP) de uma época considerávelmente tresloucada, dominantemente resumida a uma desagradável e agressiva sequência de conflitos e confrontos, de «bagunça», excessos e irresponsabilidade, de agitação, violência e intranquidade, para já não falar no folhetim tão permanente quanto falso sobre o lobo mau (os comunistas) que quis não apenas desviar mas comer o Capuchinho Vermelho ( a democracia solidamente apoiada e defendida pelo PS,PSD e CDS).E, nesta curiosa forma de contar a história, todo o interesse vai para o insistir na tecla dos alegados «excessos» dos trabalhadores e de algumas forças de esquerda, mas nunca há interesse em recordar a oposição, as manobras, as conspirações do grande capital e das forças reaccionárias e conservadoras contra o curso libertador do 25 de Abril.Todo o interesse vai para os confrontos e conflitos, mas nunca há interesse em evocar a sua origem e a sua razão , isto é as concretas causas, aspirações e interesses que uns defendiam e outros combatiam.Todo o interesse vai para os momentos e episódios mais acidentados e convulsionados, mas nunca há interesse em recordar o largo espectro de direitos conquistados, a melhoria das condições de vida verificada, as profundas transformações políticas,sociais e económicas realizadas , as medidas de grande alcance social postas em prática ( a generalização da segurança social e da contratação colectiva,a ampliação e generalização de importantes regalias dos trabalhadores. o salário mínimo, os avanços em matéria de direitos cívicos, a remodelação progressista de aspectos fundamentais da ordem juridica, o arranque na prática de um poder local democrático, a reparação de tantas injustiças e humilhações, etc.etc.) .Todo o interesse vai para tudo menos para restabelecer a verdade histórica de que em termos de balanço do processo da revolução democrática também é indispensável falar de um inesquecível impulso e movimento nacional de reconquista da dignidade cívica , de trabalho criador, de generosidade individual e colectiva, de espirito de serviço à comunidade, de sentido de responsabilidade e de eficácia nas tarefas de democratização da vida nacional, de vasta e voluntária mobilização da dedicação e das energias populares para a solução dos problemas nacionais e para a construção de uma vida melhor em Portugal.Quanto ao palavrório circulante contra os «rituais» e «rotinas» das comemorações do 25 de Abril e do lº Maio, justamente desconfiados com tanto desvelo e carinho, apetece, como primeiro e incompleto comentário, mandá-los pregar para outras freguesias.Pela simples razão de que, começando logo pela própria orientação e critérios informativos dominantes em boa parte da comunicação social , a vida nacional está cheia de detestáveis «rituais» e «rotinas» que nunca mereceram nem um centésimo da atenção, da crítica e da condenação agora lançadas sobre os alegados «rituais» e «rotinas» atribuidos às iniciativas populares de comemoração do 25 de Abril e do lº de Maio.Dos variados « rituais » da Presidência portuguesa da CEE aos chocantes e insolentes «rituais » e cerimónias normalmente realizadas nos Palácios das Bolsas de escandaloso leilão e saque de vultuoso património do Estado às nefastas e impiedosas «rotinas» da política do Governo do PSD rotineiramente empenhada no agravamento das condições de vida da população, na acentuação das injustiças e desigualdades sociais, na ofensa a principios e valores básicos da vida democrática e na recuperação e reabilitação de concepções, critérios e figuras do passado fascista, na perversão da democracia política consagrada na Constituição - não faltam pois bons e adequados alvos para os novos campeões da luta contra os «rituais» e as «rotinas » .E assim, utilmente ocupados, talvez possam fazer o favor de deixar em paz os democratas, os trabalhadores, os cidadãos de diversas gerações que - em suprema ofensa às sagradas sentenças dos novos bonzos - têm gosto, têm prazer, têm alegria, e logo sentem-se bem, por se manifestarem e desfilarem juntos para dar público testemunho da sua fidelidade aos valores e ideais democráticos, para revigorar a afirmação do valor do trabalho e do papel dos trabalhadores na vida nacional, para fazer ouvir as suas reclamações e reivindicações, para fazer valer a sua razão e a sua luta presente, para mostrar a verticalidade, a dignidade e a força de convicções com que se forjam os combates do futuro.


"Avante!"07.05.92 Ponderando muito do que se disse e escreveu sobre o 25 de Abril e sobre o 1º de Maio, e sobretudo sobre as respectivas comemorações, não é possível deixar de constatar que assistimos este ano, sob coberturas e pretextos diversos, ao desenvolvimento e refinamento de velhas mistificações procurando obscurecer o o significado profundo dessas efemérides e estabelecer linhas de pressão, de hostilização e descrédito das formas de massiva intervenção e participação popular que, em Portugal, desde há 18 anos lhes estão historicamente associadas.Um editorial do «Diário de Notícias» de 2 de Maio ilustrou , de forma sintética mas expressiva, os grandes eixos de argumentação que estiveram presentes em numerosos comentários e intervenções públicas que, digamo-lo já, por muito que o procurassem disfarçar, foram em boa parte impulsionados por um profundo incómodo com as raizes populares das comemorações do 25 de Abril e do lº de Maio, por um ostensivo desagrado com os valores e aspirações que através delas se afirmam na vida portuguesa, por uma vísivel inquietação perante a sua renovada projecção e articulação com os problemas da actualidade e com uma luta que continua, por um patente nervosismo causado pelo facto de a realidade ainda triunfar sobre os desejos ,esquemas e os preconceitos dos seus autores.,Com efeito, o citado editorial entrava logo a matar, afirmando seca e peremptoriamente que «como era de prever, o lº de Maio não diferiu do modelo rotineiro» , proclamando na passada que « a verdade é que o lº de Maio acabou há muito por cair na mesma rotina ensossa que já acontecera à celebração do 25 de Abril e que Soares , muito certeiramente, teve a frontalidade de denunciar no ano passado, com frutos já vísiveis neste» e enfatizando depois « a necessidade de remodelar a chamada festa dos trabalhadores, sob risco grave de cada vez ser maior a desmobilização desses mesmos trabalhadores e, pior ainda, o divórcio entre a juventude e a data que se pretende um símbolo perene » . E, num assinalável ímpeto de generosidade, o editorialista do «DN» concedia que as manifestações «se tivessem saldado pela afluência de alguns milhares de pessoas - até porque o tempo puxava para a rua e não abundavam os pólos de atracção» para, logo de seguida, sentenciar que «a celebração do lº de Maio não pode continuar a ser uma mera repetição de chavões e referências de ano para ano rebuscadas no armazém do pronto-a-servir político» e que «é preciso ser mais qualquer coisa .Ser, sobretudo, alguma coisa de novo» .Neste editorial ( escrito e composto em 1 de Maio, em quebra dessa «rotina» que consistia em nessa data, já antes do 25 de Abril, os operários gráficos não trabalharem, por força de regalia consagrada nos contratos colectivos) avultam de facto dois ingredientes básicos de numerosas «reflexões» e conselhos emitidos a propósito do 25 de Abril e do lº de Maio : a emocionante preocupação com os perigos de divórcio destas comemorações em relação às jovens gerações e o comovedor e infatigável combate aos «rituais » e às «rotinas».Sem a pretensão de esgotar o assunto e com a ressalva expressa de que a análise e desmontagem destes dois ingredientes básicos exige uma equilibrada consideração de diversos aspectos e nuances, cremos entretanto ser justo e adequado chamar a atenção para alguns factos e realidades que não podem deixar de ,desde já, iluminar a apreciação destas questões.Assim, em relação ao problema da informação de que as jovens gerações dispõem sobre o 25 de Abril ( e que, fruto inocente do acaso ou de uma orientada selecção, um muito falado inquérito televisivo a jovens permitiu estabelecer uma generalização de todo em todo ilegítima e abusiva mas que foi reverentemente acolhida por personalidades que não estão propriamente indefesas perante a televisão ), creio ser muito significativo que nenhum dos órgãos de informação que exprimiu pungentes preocupações com esta matéria tenha tido a simples e óbvia lembrança de recolher os testemunhos e opiniões dos muitos e muitos jovens que participaram nos desfiles populares do 25 de Abril e do lº de Maio, não para proceder a generalizações de sinal contrário, e que seriam igualmente ilegitimas e abusivas, mas para restabelecer um diversidade de graus de informação e de opiniões que não é ilegitimo nem abusivo supor mais aproximada da realidade.Por outro lado, doa a quem doer , é absolutamente necessário dizer que muitos ( incluindo no campo democrático ) dos que mais choram e se lamuriam com a «absoluta ignorância» da juventude em relação ao que foi o fascismo e o 25 de Abril estão desde há muitos anos profundamente envolvidos em operações de reescrita ,de mistificação e de superficialização da história da revolução democrática e têm dado uma notável contribuição para que, não apenas na consciência de importantes segmentos juvenis mas também na própria memória colectiva de parte da população que viveu directamente os acontecimentos, se instale a ideia e a imagem ( aqui entra em cheio a RTP) de uma época considerávelmente tresloucada, dominantemente resumida a uma desagradável e agressiva sequência de conflitos e confrontos, de «bagunça», excessos e irresponsabilidade, de agitação, violência e intranquidade, para já não falar no folhetim tão permanente quanto falso sobre o lobo mau (os comunistas) que quis não apenas desviar mas comer o Capuchinho Vermelho ( a democracia solidamente apoiada e defendida pelo PS,PSD e CDS).E, nesta curiosa forma de contar a história, todo o interesse vai para o insistir na tecla dos alegados «excessos» dos trabalhadores e de algumas forças de esquerda, mas nunca há interesse em recordar a oposição, as manobras, as conspirações do grande capital e das forças reaccionárias e conservadoras contra o curso libertador do 25 de Abril.Todo o interesse vai para os confrontos e conflitos, mas nunca há interesse em evocar a sua origem e a sua razão , isto é as concretas causas, aspirações e interesses que uns defendiam e outros combatiam.Todo o interesse vai para os momentos e episódios mais acidentados e convulsionados, mas nunca há interesse em recordar o largo espectro de direitos conquistados, a melhoria das condições de vida verificada, as profundas transformações políticas,sociais e económicas realizadas , as medidas de grande alcance social postas em prática ( a generalização da segurança social e da contratação colectiva,a ampliação e generalização de importantes regalias dos trabalhadores. o salário mínimo, os avanços em matéria de direitos cívicos, a remodelação progressista de aspectos fundamentais da ordem juridica, o arranque na prática de um poder local democrático, a reparação de tantas injustiças e humilhações, etc.etc.) .Todo o interesse vai para tudo menos para restabelecer a verdade histórica de que em termos de balanço do processo da revolução democrática também é indispensável falar de um inesquecível impulso e movimento nacional de reconquista da dignidade cívica , de trabalho criador, de generosidade individual e colectiva, de espirito de serviço à comunidade, de sentido de responsabilidade e de eficácia nas tarefas de democratização da vida nacional, de vasta e voluntária mobilização da dedicação e das energias populares para a solução dos problemas nacionais e para a construção de uma vida melhor em Portugal.Quanto ao palavrório circulante contra os «rituais» e «rotinas» das comemorações do 25 de Abril e do lº Maio, justamente desconfiados com tanto desvelo e carinho, apetece, como primeiro e incompleto comentário, mandá-los pregar para outras freguesias.Pela simples razão de que, começando logo pela própria orientação e critérios informativos dominantes em boa parte da comunicação social , a vida nacional está cheia de detestáveis «rituais» e «rotinas» que nunca mereceram nem um centésimo da atenção, da crítica e da condenação agora lançadas sobre os alegados «rituais» e «rotinas» atribuidos às iniciativas populares de comemoração do 25 de Abril e do lº de Maio.Dos variados « rituais » da Presidência portuguesa da CEE aos chocantes e insolentes «rituais » e cerimónias normalmente realizadas nos Palácios das Bolsas de escandaloso leilão e saque de vultuoso património do Estado às nefastas e impiedosas «rotinas» da política do Governo do PSD rotineiramente empenhada no agravamento das condições de vida da população, na acentuação das injustiças e desigualdades sociais, na ofensa a principios e valores básicos da vida democrática e na recuperação e reabilitação de concepções, critérios e figuras do passado fascista, na perversão da democracia política consagrada na Constituição - não faltam pois bons e adequados alvos para os novos campeões da luta contra os «rituais» e as «rotinas » .E assim, utilmente ocupados, talvez possam fazer o favor de deixar em paz os democratas, os trabalhadores, os cidadãos de diversas gerações que - em suprema ofensa às sagradas sentenças dos novos bonzos - têm gosto, têm prazer, têm alegria, e logo sentem-se bem, por se manifestarem e desfilarem juntos para dar público testemunho da sua fidelidade aos valores e ideais democráticos, para revigorar a afirmação do valor do trabalho e do papel dos trabalhadores na vida nacional, para fazer ouvir as suas reclamações e reivindicações, para fazer valer a sua razão e a sua luta presente, para mostrar a verticalidade, a dignidade e a força de convicções com que se forjam os combates do futuro.

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