Não há fenómeno que me intrigue mais neste país do que o fenómeno dos consensos generalizados (talvez apenas os consensos singularizados). Ricardo Araújo Pereira (n. 1974) é o mais recente motivo desses consensos, o tal prodígio do humor português que não se via desde Herman José, sendo que este já havia sido o mesmo em relação a Raul Solnado, o qual, por sua vez, mereceu similar galardão em relação a António Silva e Vasco Santana, que, se não me falha a memória, foram os maiores humoristas portugueses depois de D. Sebastião. Mas RAP (variante de MEC), ao contrário dos restantes, é uma súmula de predicados favoráveis. A haver algum defeito em RAP, esse defeito é a ausência de defeitos alguns (imagino o que pensaria EPC acerca deste pormenor). Porque sou boa pessoa, lancei-me na tarefa de encontrar defeitos em RAP (não sei se VPV já fez o mesmo). Pretendo, com este meu esforço estóico, encontrar-lhe aqueles vícios que farão dele já não apenas um indivíduo sem defeitos, mas antes um génio. Foi esse o meu móbil de leitura das crónicas reunidas em Boca do Inferno. Comecemos pelo título, claramente hiperbólico e, de certa forma, pretensioso. Para quem não saiba, Boca do Inferno foi o nome pelo qual ficou conhecido o famigerado poeta satírico Gregório de Matos, autor de uma obra e dono de uma vida ao pé das quais RAP não passa de um copinho de leite (estou certo que MST concordaria comigo). A haver alguém que mereça tal epíteto na actualidade, esse alguém é O Meu Pipi. Jamais RAP, a quem apenas reconhecemos habilidade na imitação de MR de S, um enorme talento para a estupidez e, vá lá, grande desembaraço na ingestão de pudins. Aliás, RAP apenas revela presunção e inveja ao pretender passar por aquilo que somente O Meu Pipi pode ser, isto é, o Gregório dos nossos tempos (sem ironia). Esta confusão de identidades vai ao ponto de uma das epígrafes citadas na abertura deste livro ser atribuída a Gregório de Matos quando, na verdade, o seu autor foi Tomás Pinto Brandão. RAP saberá muito bem, pelo menos tão bem quanto MFM, que a autoria de Sátira ao Governo de Portugal, por Gregório de Matos, ressuscitado em Pernambuco no ano de 1713 deve-se à pena de Tomás Pinto Brandão e não à de Gregório de Matos. Ao contribuir para tal confusão, o humorista português incorre num acto falhado assaz revelador da sua personalidade doentia: confundir identidades, como que desculpando-se de passar a vida a chamar a si o que não é seu. Neste caso, o que não é seu é O Meu Pipi. Quanto às crónicas em si, nunca li nada mais anódino e inconsequente. Os alvos são débeis e fáceis, eternos cromos da vida social portuguesa, tais como José Sócrates, Pedro Santana Lopes, José Pacheco Pereira, João César das Neves, Vasco Pulido Valente, Luís Delgado, Jesus Cristo e Deus, entre outros. Nota-se uma clara tentativa de evitar referências a gente séria como Bernardino Soares ou Jerónimo de Sousa, optando-se antes por afirmações desconexas e vazias de conteúdo como as que a seguir reproduzo: «A ignorância, quando se exprime com alguma riqueza morfológico-sintática, tem logo outro encanto» (p. 65), «A Revolução, para mim, é como uma cunha: se não fosse o 25 de Abril, eu não teria emprego» (p. 86), «Telefonar para um programa de opiniões não tendo opinião nenhuma é um acto de coragem que merece o nosso respeito e admiração» (p. 152), «A discriminação é bastante desagradável, mas isso não se nota muito quando somos nós a praticá-la» (p. 160), «Certos artistas têm do dinheiro uma opinião muito negativa, em parte provocada pela pouca convivência que têm com ele» (p. 164), «Para mim, a característica mais notável de um nazi é p modo como, visto de fora, ele chega a parecer quase um ser humano» (p. 176). O que será isto de parecer quase? Será o mesmo que muito mais raro? Fraquito, este RAP. Assim como assim, continuo a preferir fado. Até porque RAP é excessivo na piada sexual (quase sempre com recursos auto-irónicos mais que previsíveis, nomeadamente para quem já tenha lido as crónicas na imprensa escrita), abre parêntesis por tudo e por nada (vício contagiante), repete-se na técnica e na forma (gerando amiúde aquela sensação estúpida de que o mais surpreendente é aquilo que já não surpreende, ainda que provoque repetidamente a gargalhada). Em suma, este é um livro profundamente desinteressante que lerei apenas mais uma vez, para que possa, superficialmente, aprofundar a minha crença de que RAP possui, pelo menos, os defeitos que poderão fazer dele um humorista perfeito. Safa-se o Posfácio Relativamente Interessantíssimo, da autoria de Manuel Rosado Baptista (MRB, fixem bem esta sigla), Pompousass’ College da Universidade de Oxford. A mesma onde, asseguram-me fontes secas, O Meu Pipi se formou.Ricardo Araújo Pereira, Boca do Inferno, Ilustrações de João Fazenda, Tinta da China, Outubro de 2007.
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Não há fenómeno que me intrigue mais neste país do que o fenómeno dos consensos generalizados (talvez apenas os consensos singularizados). Ricardo Araújo Pereira (n. 1974) é o mais recente motivo desses consensos, o tal prodígio do humor português que não se via desde Herman José, sendo que este já havia sido o mesmo em relação a Raul Solnado, o qual, por sua vez, mereceu similar galardão em relação a António Silva e Vasco Santana, que, se não me falha a memória, foram os maiores humoristas portugueses depois de D. Sebastião. Mas RAP (variante de MEC), ao contrário dos restantes, é uma súmula de predicados favoráveis. A haver algum defeito em RAP, esse defeito é a ausência de defeitos alguns (imagino o que pensaria EPC acerca deste pormenor). Porque sou boa pessoa, lancei-me na tarefa de encontrar defeitos em RAP (não sei se VPV já fez o mesmo). Pretendo, com este meu esforço estóico, encontrar-lhe aqueles vícios que farão dele já não apenas um indivíduo sem defeitos, mas antes um génio. Foi esse o meu móbil de leitura das crónicas reunidas em Boca do Inferno. Comecemos pelo título, claramente hiperbólico e, de certa forma, pretensioso. Para quem não saiba, Boca do Inferno foi o nome pelo qual ficou conhecido o famigerado poeta satírico Gregório de Matos, autor de uma obra e dono de uma vida ao pé das quais RAP não passa de um copinho de leite (estou certo que MST concordaria comigo). A haver alguém que mereça tal epíteto na actualidade, esse alguém é O Meu Pipi. Jamais RAP, a quem apenas reconhecemos habilidade na imitação de MR de S, um enorme talento para a estupidez e, vá lá, grande desembaraço na ingestão de pudins. Aliás, RAP apenas revela presunção e inveja ao pretender passar por aquilo que somente O Meu Pipi pode ser, isto é, o Gregório dos nossos tempos (sem ironia). Esta confusão de identidades vai ao ponto de uma das epígrafes citadas na abertura deste livro ser atribuída a Gregório de Matos quando, na verdade, o seu autor foi Tomás Pinto Brandão. RAP saberá muito bem, pelo menos tão bem quanto MFM, que a autoria de Sátira ao Governo de Portugal, por Gregório de Matos, ressuscitado em Pernambuco no ano de 1713 deve-se à pena de Tomás Pinto Brandão e não à de Gregório de Matos. Ao contribuir para tal confusão, o humorista português incorre num acto falhado assaz revelador da sua personalidade doentia: confundir identidades, como que desculpando-se de passar a vida a chamar a si o que não é seu. Neste caso, o que não é seu é O Meu Pipi. Quanto às crónicas em si, nunca li nada mais anódino e inconsequente. Os alvos são débeis e fáceis, eternos cromos da vida social portuguesa, tais como José Sócrates, Pedro Santana Lopes, José Pacheco Pereira, João César das Neves, Vasco Pulido Valente, Luís Delgado, Jesus Cristo e Deus, entre outros. Nota-se uma clara tentativa de evitar referências a gente séria como Bernardino Soares ou Jerónimo de Sousa, optando-se antes por afirmações desconexas e vazias de conteúdo como as que a seguir reproduzo: «A ignorância, quando se exprime com alguma riqueza morfológico-sintática, tem logo outro encanto» (p. 65), «A Revolução, para mim, é como uma cunha: se não fosse o 25 de Abril, eu não teria emprego» (p. 86), «Telefonar para um programa de opiniões não tendo opinião nenhuma é um acto de coragem que merece o nosso respeito e admiração» (p. 152), «A discriminação é bastante desagradável, mas isso não se nota muito quando somos nós a praticá-la» (p. 160), «Certos artistas têm do dinheiro uma opinião muito negativa, em parte provocada pela pouca convivência que têm com ele» (p. 164), «Para mim, a característica mais notável de um nazi é p modo como, visto de fora, ele chega a parecer quase um ser humano» (p. 176). O que será isto de parecer quase? Será o mesmo que muito mais raro? Fraquito, este RAP. Assim como assim, continuo a preferir fado. Até porque RAP é excessivo na piada sexual (quase sempre com recursos auto-irónicos mais que previsíveis, nomeadamente para quem já tenha lido as crónicas na imprensa escrita), abre parêntesis por tudo e por nada (vício contagiante), repete-se na técnica e na forma (gerando amiúde aquela sensação estúpida de que o mais surpreendente é aquilo que já não surpreende, ainda que provoque repetidamente a gargalhada). Em suma, este é um livro profundamente desinteressante que lerei apenas mais uma vez, para que possa, superficialmente, aprofundar a minha crença de que RAP possui, pelo menos, os defeitos que poderão fazer dele um humorista perfeito. Safa-se o Posfácio Relativamente Interessantíssimo, da autoria de Manuel Rosado Baptista (MRB, fixem bem esta sigla), Pompousass’ College da Universidade de Oxford. A mesma onde, asseguram-me fontes secas, O Meu Pipi se formou.Ricardo Araújo Pereira, Boca do Inferno, Ilustrações de João Fazenda, Tinta da China, Outubro de 2007.