E o esplendor dos mapas: Imagens profanadas

16-04-2005
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Gostava de ouvir Bernardino Soares, o líder do PCP com dúvidas de que a Coreia do Norte não seja uma democracia a comentar a imagem hoje publicada na última página do Público. Esta imagem é, de acordo com o título do jornal, «o primeiro sinal de dissidência visível na fechada Coreia do Norte». A imagem foi extraída de um filme vídeo de 35 minutos que terá sido realizado por um movimento organizado a favor da democracia e depois passado para o exterior através de Hoeryong, uma cidade na fronteira Norte do país. Há uma voz masculina no vídeo que afirma: «As pessoas sensíveis e comuns da Coreia do Norte precisam de um novo líder» e «Há um enorme potencial para a democracia neste país». Segundo Do Hee-youn, o homem que divulgou a gravação, «o vídeo não foi feito por um grupo de pessoas qualquer». Só homens muito corajosos e organizados se poderiam ter arriscado a praticar uma acto susceptível de pena capital sem julgamento. Mas que acto é este ? O que é que mostram as imagens ? Uma manifestação ? Uma sabotagem ? Nada disso: apenas um retrato de Kim Jong-il fixado numa parede, mostrando o líder a sorrir, de traje militar envergado. E sobre a imagem está escrito: «Abaixo Kim Jong-il. Levantemo-nos para expulsar o regime ditatorial». Apenas isto. Nem sequer uns corninhos ou uns desenhos obscenos acrescentados à imagem. Apenas uma frase. Suficiente para condenar à morte os seus autores.Esta imagem transporta-nos para um outro mundo dentro do nosso mundo. Um mundo em que o retrato do líder de um país tem um valor sagrado. Um mundo onde só se pode escrever frases sobre a imagem de um líder praticando um ritual secreto de profanação, como quem desafia uma divindade sobre a terra.Na Europa, outra imagem profanada continua a suscitar escândalo: a do príncipe Harry vestido de oficial nazi. Neste caso, a profanação foi auto-infligida e ambígua. O príncipe encontrava-se numa festa de mascarados. Escolheu o fato de um oficial nazi como podia ter vestido o fato de um astronauta ou se podia ter disfarçado de Conde Drácula. Acontece que ele não assumiu a entidade de uma outra personagem. Se se tivesse mascarado de Hitler teria sido simultaneamente mais provocador e menos ambíguo. Harry disfarçado de Hitler – com uma cabeleira morena e bigode – não era ele, era um outro. Harry vestido de oficial nazi, com o seu sorriso de sempre, de copo de cerveja numa mão e cigarro na outra é um outro ou é ele mesmo ? Para Harry o fato de oficial nazi é equivalente a um fato de astronauta ? O cenário de um campo de concentração pertence à mesma categoria afectiva do cenário da lua ?Depois do sucedido, Harry apresentou um pedido de desculpas num comunicado, mas recusou-se a pedir desculpas em público e a visitar o campo de Auschwitz, como sugeriu o centro Simon Weisentahl e pediu o Príncipe Carlos. Errar é humano e mesmo as pessoas com responsabilidades podem cometer «gaffes», mas estas recusas são um duro golpe na tentação de desculpar Harry pelos seus vinte anos. Teve tempo para pensar e analisar as reacções. Mais valia dizer «estava apenas a brincar e se me vestisse de huno ninguém me chateava» do que pedir meias-desculpas. Mais valia defender-se em nome da liberdade de expressão e do direito à brincadeira do que deixar no ar uma atitude de minimização do nazismo e de desvalorização das suas vítimas.O caso já suscitou, da parte de políticos alemães, um pedido de proibição de todos os símbolos nazis na Europa. Medida perigosa, que pode sacralizar proibindo. Em vez da proibição, eu defendo a responsabilização pelo uso de símbolos nazis. A dessacralização das imagens políticas é uma condição da democracia.


Gostava de ouvir Bernardino Soares, o líder do PCP com dúvidas de que a Coreia do Norte não seja uma democracia a comentar a imagem hoje publicada na última página do Público. Esta imagem é, de acordo com o título do jornal, «o primeiro sinal de dissidência visível na fechada Coreia do Norte». A imagem foi extraída de um filme vídeo de 35 minutos que terá sido realizado por um movimento organizado a favor da democracia e depois passado para o exterior através de Hoeryong, uma cidade na fronteira Norte do país. Há uma voz masculina no vídeo que afirma: «As pessoas sensíveis e comuns da Coreia do Norte precisam de um novo líder» e «Há um enorme potencial para a democracia neste país». Segundo Do Hee-youn, o homem que divulgou a gravação, «o vídeo não foi feito por um grupo de pessoas qualquer». Só homens muito corajosos e organizados se poderiam ter arriscado a praticar uma acto susceptível de pena capital sem julgamento. Mas que acto é este ? O que é que mostram as imagens ? Uma manifestação ? Uma sabotagem ? Nada disso: apenas um retrato de Kim Jong-il fixado numa parede, mostrando o líder a sorrir, de traje militar envergado. E sobre a imagem está escrito: «Abaixo Kim Jong-il. Levantemo-nos para expulsar o regime ditatorial». Apenas isto. Nem sequer uns corninhos ou uns desenhos obscenos acrescentados à imagem. Apenas uma frase. Suficiente para condenar à morte os seus autores.Esta imagem transporta-nos para um outro mundo dentro do nosso mundo. Um mundo em que o retrato do líder de um país tem um valor sagrado. Um mundo onde só se pode escrever frases sobre a imagem de um líder praticando um ritual secreto de profanação, como quem desafia uma divindade sobre a terra.Na Europa, outra imagem profanada continua a suscitar escândalo: a do príncipe Harry vestido de oficial nazi. Neste caso, a profanação foi auto-infligida e ambígua. O príncipe encontrava-se numa festa de mascarados. Escolheu o fato de um oficial nazi como podia ter vestido o fato de um astronauta ou se podia ter disfarçado de Conde Drácula. Acontece que ele não assumiu a entidade de uma outra personagem. Se se tivesse mascarado de Hitler teria sido simultaneamente mais provocador e menos ambíguo. Harry disfarçado de Hitler – com uma cabeleira morena e bigode – não era ele, era um outro. Harry vestido de oficial nazi, com o seu sorriso de sempre, de copo de cerveja numa mão e cigarro na outra é um outro ou é ele mesmo ? Para Harry o fato de oficial nazi é equivalente a um fato de astronauta ? O cenário de um campo de concentração pertence à mesma categoria afectiva do cenário da lua ?Depois do sucedido, Harry apresentou um pedido de desculpas num comunicado, mas recusou-se a pedir desculpas em público e a visitar o campo de Auschwitz, como sugeriu o centro Simon Weisentahl e pediu o Príncipe Carlos. Errar é humano e mesmo as pessoas com responsabilidades podem cometer «gaffes», mas estas recusas são um duro golpe na tentação de desculpar Harry pelos seus vinte anos. Teve tempo para pensar e analisar as reacções. Mais valia dizer «estava apenas a brincar e se me vestisse de huno ninguém me chateava» do que pedir meias-desculpas. Mais valia defender-se em nome da liberdade de expressão e do direito à brincadeira do que deixar no ar uma atitude de minimização do nazismo e de desvalorização das suas vítimas.O caso já suscitou, da parte de políticos alemães, um pedido de proibição de todos os símbolos nazis na Europa. Medida perigosa, que pode sacralizar proibindo. Em vez da proibição, eu defendo a responsabilização pelo uso de símbolos nazis. A dessacralização das imagens políticas é uma condição da democracia.

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