A outra Varinha Mágica: Da deontologia dos jornalistas portugueses aos argumentos estafados dos "controleiros" do sistema

20-05-2009
marcar artigo


Nos últimos tempos, a questão da ética no jornalismo tem sido discutida na blogosfera e em alguma imprensa. E ainda bem. Há dias, no twitter, referi-me ao facto do código deontológico dos jornalistas portugueses caber nas costas de um calendário de bolso. Recebi uma resposta de uma jornalista que dizia o seguinte: “se pelo menos esse fosse cumprido, não havia problemas”. Sendo verdade, não deixo de considerar que tenho razão quando afirmo que não se perdia nada em melhorá-lo. O código actual foi elaborado em 1993, tem por isso 16 anos. Os tempos mudaram, as Leis mudaram várias vezes, as tecnologias de informação mudaram, a comunicação social evoluiu muito e as próprias estruturas que regulam a profissão são hoje diferentes. O público é mas exigente. A democracia cresceu.Esta recente discussão sobre a deontologia jornalística nasceu a propósito do que escreve uma jornalista tendo em conta as suas relações pessoais. Devo dizer que não tenho entrado muito nessa conversa, até ontem me despertarem ainda mais para ela, depois de um post que aqui escrevi.Depois de questionar a legitimidade de um jornalista para apelar ao voto em determinado candidato ou manifestar a sua própria intenção de voto em período pré-eleitoral nas páginas do próprio jornal onde é profissional, percebi de imediato a ira dos “controleiros” da blogosfera. De imediato atiraram-me à cara a América e os seus valores, procurando confundir aquilo que por lá é a posição de um jornal, em editorial, com a actividade que se quer independente dos seus jornalistas na cobertura da campanha.Dei-me por isso ao trabalho de procurar o código deontológico em vigor nos Estados Unidos.A Society of Professional Journalists, que o elaborou, tem cem anos de existência durante os quais foi evoluindo o texto que recebeu milhares de assinaturas de aprovação entre a classe.O documento, que pode ser descarregado em versão pdf ou lido em versão traduzida (tradução oficial para português) é bem mais completo e específico do que o código deontológico português. Contudo, embora diga basicamente a mesma coisa, vai um pouco mais além e é bem mais exacto e esclarecedor em matérias como a das incompatibilidades.Reproduzo aqui o capítulo que diz respeito à Independência dos jornalistas (negritos meus):Agir com IndependênciaOs jornalistas devem ser livres de obrigações com qualquer interesse além do direito do público a saber.Os jornalistas devem:— Evitar conflitos de interesse, reais ou percebidos.— Permanecer livres de associações e actividades que possam comprometer a integridade ou danificar a credibilidade.— Recusar presentes, favores, gratificações, viagens gratuitas e tratamento especial, e evitar segundos empregos, envolvimento político, cargos públicos e servir a organizações comunitárias se elas comprometem a integridade jornalística.— Deixar claro quando há conflitos inevitáveis.— Ser vigilantes e corajosos para manter a responsabilidade dos que têm o poder.— Negar tratamento favorável a anunciantes e a quem quer que tenha interesses especiais, resistindo a sua pressão para influenciar a cobertura da notícia.— Desconfiar de fontes que oferecem informação em troca de favores ou dinheiro; evitar fazer ofertas pela notícia.Agora em inglês:Act IndependentlyJournalists should be free of obligation to any interest other than the public's right to know.Journalists should:—Avoid conflicts of interest, real or perceived.— Remain free of associations and activities that may compromise integrity or damage credibility.— Refuse gifts, favors, fees, free travel and special treatment, and shun secondary employment, political involvement, public office and service in community organizations if they compromise journalistic integrity.— Disclose unavoidable conflicts.— Be vigilant and courageous about holding those with power accountable.— Deny favored treatment to advertisers and special interests and resist their pressure to influence news coverage.— Be wary of sources offering information for favors or money; avoid bidding for news.Todo o restante texto é interessante, mas destaquei este capítulo por uma razão simples. Logo na primeira alínea transporta-se para o código um conceito que ultimamente tem sido esquecido, propositadamente, na sociedade portuguesa e, logo, também entre os jornalistas. Falo do conceito do que é “percebido”, e que não tem que ser o que é real ou aquilo que se pode provar.O direito à privacidade, o direito à filiação, à convicção e até mesmo ao namoro é inabalável. Mas defender a "coisa pública", como também faz o jornalista, exige mais do que o formalismo do alegado e do não assumido. O que é “percebido” pelo público não é do domínio da Lei, mas é do domínio da deontologia, porque questiona a independência. E só a arrogância e a prepotência podem impedir alguém culto de reconhecer quer a situação de incompatibilidade quer o limite que isso lhe confere em termos de independência. É por isso que existem os códigos de ética política e de deontologia profissional. É para nos avisar de que, além da Lei e do que é real, existe a reponsabilidade individual de reconhecer que o que é "percebido" pelo público já nos pode ter roubado a legitimidade, a independência e a credibilidade, sem as quais não é possível exercer cargos públicos ou exercer jornalismo.Para dizer a verdade, até me sinto triste de ter que ir buscar um texto ao outro lado do Atlântico (aos tais “americanos” que têm os tais jornais), por tão óbvia me parecer esta questão ética e deontológica em Portugal. E entristesse-me, por isso, ter que explicá-la.


Nos últimos tempos, a questão da ética no jornalismo tem sido discutida na blogosfera e em alguma imprensa. E ainda bem. Há dias, no twitter, referi-me ao facto do código deontológico dos jornalistas portugueses caber nas costas de um calendário de bolso. Recebi uma resposta de uma jornalista que dizia o seguinte: “se pelo menos esse fosse cumprido, não havia problemas”. Sendo verdade, não deixo de considerar que tenho razão quando afirmo que não se perdia nada em melhorá-lo. O código actual foi elaborado em 1993, tem por isso 16 anos. Os tempos mudaram, as Leis mudaram várias vezes, as tecnologias de informação mudaram, a comunicação social evoluiu muito e as próprias estruturas que regulam a profissão são hoje diferentes. O público é mas exigente. A democracia cresceu.Esta recente discussão sobre a deontologia jornalística nasceu a propósito do que escreve uma jornalista tendo em conta as suas relações pessoais. Devo dizer que não tenho entrado muito nessa conversa, até ontem me despertarem ainda mais para ela, depois de um post que aqui escrevi.Depois de questionar a legitimidade de um jornalista para apelar ao voto em determinado candidato ou manifestar a sua própria intenção de voto em período pré-eleitoral nas páginas do próprio jornal onde é profissional, percebi de imediato a ira dos “controleiros” da blogosfera. De imediato atiraram-me à cara a América e os seus valores, procurando confundir aquilo que por lá é a posição de um jornal, em editorial, com a actividade que se quer independente dos seus jornalistas na cobertura da campanha.Dei-me por isso ao trabalho de procurar o código deontológico em vigor nos Estados Unidos.A Society of Professional Journalists, que o elaborou, tem cem anos de existência durante os quais foi evoluindo o texto que recebeu milhares de assinaturas de aprovação entre a classe.O documento, que pode ser descarregado em versão pdf ou lido em versão traduzida (tradução oficial para português) é bem mais completo e específico do que o código deontológico português. Contudo, embora diga basicamente a mesma coisa, vai um pouco mais além e é bem mais exacto e esclarecedor em matérias como a das incompatibilidades.Reproduzo aqui o capítulo que diz respeito à Independência dos jornalistas (negritos meus):Agir com IndependênciaOs jornalistas devem ser livres de obrigações com qualquer interesse além do direito do público a saber.Os jornalistas devem:— Evitar conflitos de interesse, reais ou percebidos.— Permanecer livres de associações e actividades que possam comprometer a integridade ou danificar a credibilidade.— Recusar presentes, favores, gratificações, viagens gratuitas e tratamento especial, e evitar segundos empregos, envolvimento político, cargos públicos e servir a organizações comunitárias se elas comprometem a integridade jornalística.— Deixar claro quando há conflitos inevitáveis.— Ser vigilantes e corajosos para manter a responsabilidade dos que têm o poder.— Negar tratamento favorável a anunciantes e a quem quer que tenha interesses especiais, resistindo a sua pressão para influenciar a cobertura da notícia.— Desconfiar de fontes que oferecem informação em troca de favores ou dinheiro; evitar fazer ofertas pela notícia.Agora em inglês:Act IndependentlyJournalists should be free of obligation to any interest other than the public's right to know.Journalists should:—Avoid conflicts of interest, real or perceived.— Remain free of associations and activities that may compromise integrity or damage credibility.— Refuse gifts, favors, fees, free travel and special treatment, and shun secondary employment, political involvement, public office and service in community organizations if they compromise journalistic integrity.— Disclose unavoidable conflicts.— Be vigilant and courageous about holding those with power accountable.— Deny favored treatment to advertisers and special interests and resist their pressure to influence news coverage.— Be wary of sources offering information for favors or money; avoid bidding for news.Todo o restante texto é interessante, mas destaquei este capítulo por uma razão simples. Logo na primeira alínea transporta-se para o código um conceito que ultimamente tem sido esquecido, propositadamente, na sociedade portuguesa e, logo, também entre os jornalistas. Falo do conceito do que é “percebido”, e que não tem que ser o que é real ou aquilo que se pode provar.O direito à privacidade, o direito à filiação, à convicção e até mesmo ao namoro é inabalável. Mas defender a "coisa pública", como também faz o jornalista, exige mais do que o formalismo do alegado e do não assumido. O que é “percebido” pelo público não é do domínio da Lei, mas é do domínio da deontologia, porque questiona a independência. E só a arrogância e a prepotência podem impedir alguém culto de reconhecer quer a situação de incompatibilidade quer o limite que isso lhe confere em termos de independência. É por isso que existem os códigos de ética política e de deontologia profissional. É para nos avisar de que, além da Lei e do que é real, existe a reponsabilidade individual de reconhecer que o que é "percebido" pelo público já nos pode ter roubado a legitimidade, a independência e a credibilidade, sem as quais não é possível exercer cargos públicos ou exercer jornalismo.Para dizer a verdade, até me sinto triste de ter que ir buscar um texto ao outro lado do Atlântico (aos tais “americanos” que têm os tais jornais), por tão óbvia me parecer esta questão ética e deontológica em Portugal. E entristesse-me, por isso, ter que explicá-la.

marcar artigo