Papéis de Alexandria*: No reino do desvario

16-07-2009
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Artigo de Vítor Diasno "Semanário" de 2 Maio 2003As condições de autêntica trapalhada e irresponsabilidade em que a Assembleia da República debateu e aprovou a nova lei de financiamento dos partidos, com os votos favoráveis do PSD e do CDS-PP e sem o apoio do PS apenas por causa do diferimento para 2005 do reforço das subvenções estatais, justificam ainda algumas observações sobre o tema.Comecemos por sublinhar que, em toda a produção legislativa portuguesa, não deve haver nenhum precedente comparável de uma lei em que, exceptuando um único artigo, os seus outros 33 artigos só entram em vigor passados vinte meses da sua aprovação pelo Parlamento. Mas, registado o absurdo técnico e político, adiantemos que ainda bem que assim é, porque haverá mais tempo para combater e lutar pela revogação de um conjunto de normas manifestamente estuporadas.Sublinhemos a seguir que a lei aprovada é em tudo filha legítima de uma concepção que trata tendencialmente os partidos como departamentos ou repartições do Estado com flagrante espezinhamento da sua natureza de associações voluntárias de cidadãos e em tudo cumpriu o objectivo crucial de aumentar (em 66,6%) as subvenções do Estado aos partidos e de criar extraordinárias dificuldades e limitações à sua angariação de receitas próprios, com as diferentes consequências que se calculam consoante se trate de partidos como o PSD, o CDS-PP e o PS que já hoje vivem sobretudo das subvenções estatais ou de partidos, como o PCP, que vivem predominantemente das suas receitas próprias.Acrescentemos também que a lei aprovada estimula desavergonhadamente o despesismo eleitoral ao subir generosamente os limites máximos para as diversas eleições, quando o que se impunha era restringir e travar a vertigem despesista que está na origem dos maiores problemas nesta matéria.Sublinhemos depois que os partidos que já estavam sujeitos a auditorias às suas contas decididas por uma entidade exterior (o Tribunal Constitucional), ou seja a uma situação que, salvo por razões fiscais, não se passa com nenhuma empresa privada, passariam agora a estar também sujeitas a inspecções «de qualquer tipo ou natureza a determinados actos, procedimentos e aspectos de gestão financeira» feitas por iniciativa de uma nova entidade, o que pode propiciar operações de devassa absolutamente inadmissíveis.Importa referir também que, no mesmo quadro conceptual de se tratar os partidos quase como associações de malfeitores ou, pelo menos, como os grandes e únicos suspeitos das coisas mais feias e corruptas da vida nacional, se estabelece a obrigação de, quando em numerário, um vastíssimo conjunto de receitas (incluindo até as quotas e outras contribuições dos militantes e dos eleitos), e que no caso do PCP ascendem a centenas de milhar de contos, terem de ser tituladas em cheque ou por outro meio bancário. Sendo de explicar que as excepções contempladas na lei agora aprovada são injustificadamente muito mais apertadas que o regime em vigor, na medida em que apenas isentam desta exigência as receitas de valor inferior a 20 contos e desde que, num ano, não ultrapassem cerca de 3.500 contos.Igualmente se tem de denunciar a enormidade que é os partidos da maioria terem liquidado a norma em vigor que, com boas e fundadas razões, não sujeitava a qualquer limite as receitas obtidas em «iniciativas especiais de angariação de fundos com oferta de bens e serviços» (leia-se a «Festa do Avante!») e terem sujeito a angariação de fundos (incluindo portanto aquela forma) a um limite máximo total de 125 mil contos, o que se traduz na repugnante atitude de quem, não tendo unhas para tocar certas guitarras, resolve tentar cortar as unhas a quem comprovadamente as tem.E, dito isto, só falta dizer que verá pouco quem não conseguir ver que, articulada com a chocante nova lei dos partidos, a nova lei do financiamento dos partidos é igualmente um clamoroso atentado à liberdade de actuação, à autonomia e à dignidade dos partidos ou, pelo menos, dos partidos que prezam esses valores.


Artigo de Vítor Diasno "Semanário" de 2 Maio 2003As condições de autêntica trapalhada e irresponsabilidade em que a Assembleia da República debateu e aprovou a nova lei de financiamento dos partidos, com os votos favoráveis do PSD e do CDS-PP e sem o apoio do PS apenas por causa do diferimento para 2005 do reforço das subvenções estatais, justificam ainda algumas observações sobre o tema.Comecemos por sublinhar que, em toda a produção legislativa portuguesa, não deve haver nenhum precedente comparável de uma lei em que, exceptuando um único artigo, os seus outros 33 artigos só entram em vigor passados vinte meses da sua aprovação pelo Parlamento. Mas, registado o absurdo técnico e político, adiantemos que ainda bem que assim é, porque haverá mais tempo para combater e lutar pela revogação de um conjunto de normas manifestamente estuporadas.Sublinhemos a seguir que a lei aprovada é em tudo filha legítima de uma concepção que trata tendencialmente os partidos como departamentos ou repartições do Estado com flagrante espezinhamento da sua natureza de associações voluntárias de cidadãos e em tudo cumpriu o objectivo crucial de aumentar (em 66,6%) as subvenções do Estado aos partidos e de criar extraordinárias dificuldades e limitações à sua angariação de receitas próprios, com as diferentes consequências que se calculam consoante se trate de partidos como o PSD, o CDS-PP e o PS que já hoje vivem sobretudo das subvenções estatais ou de partidos, como o PCP, que vivem predominantemente das suas receitas próprias.Acrescentemos também que a lei aprovada estimula desavergonhadamente o despesismo eleitoral ao subir generosamente os limites máximos para as diversas eleições, quando o que se impunha era restringir e travar a vertigem despesista que está na origem dos maiores problemas nesta matéria.Sublinhemos depois que os partidos que já estavam sujeitos a auditorias às suas contas decididas por uma entidade exterior (o Tribunal Constitucional), ou seja a uma situação que, salvo por razões fiscais, não se passa com nenhuma empresa privada, passariam agora a estar também sujeitas a inspecções «de qualquer tipo ou natureza a determinados actos, procedimentos e aspectos de gestão financeira» feitas por iniciativa de uma nova entidade, o que pode propiciar operações de devassa absolutamente inadmissíveis.Importa referir também que, no mesmo quadro conceptual de se tratar os partidos quase como associações de malfeitores ou, pelo menos, como os grandes e únicos suspeitos das coisas mais feias e corruptas da vida nacional, se estabelece a obrigação de, quando em numerário, um vastíssimo conjunto de receitas (incluindo até as quotas e outras contribuições dos militantes e dos eleitos), e que no caso do PCP ascendem a centenas de milhar de contos, terem de ser tituladas em cheque ou por outro meio bancário. Sendo de explicar que as excepções contempladas na lei agora aprovada são injustificadamente muito mais apertadas que o regime em vigor, na medida em que apenas isentam desta exigência as receitas de valor inferior a 20 contos e desde que, num ano, não ultrapassem cerca de 3.500 contos.Igualmente se tem de denunciar a enormidade que é os partidos da maioria terem liquidado a norma em vigor que, com boas e fundadas razões, não sujeitava a qualquer limite as receitas obtidas em «iniciativas especiais de angariação de fundos com oferta de bens e serviços» (leia-se a «Festa do Avante!») e terem sujeito a angariação de fundos (incluindo portanto aquela forma) a um limite máximo total de 125 mil contos, o que se traduz na repugnante atitude de quem, não tendo unhas para tocar certas guitarras, resolve tentar cortar as unhas a quem comprovadamente as tem.E, dito isto, só falta dizer que verá pouco quem não conseguir ver que, articulada com a chocante nova lei dos partidos, a nova lei do financiamento dos partidos é igualmente um clamoroso atentado à liberdade de actuação, à autonomia e à dignidade dos partidos ou, pelo menos, dos partidos que prezam esses valores.

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