Papéis de Alexandria*: Crónica de Ruben de Carvalho no «Público» de hoje

16-07-2009
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É naturalmente possível olhar e reflectir sobre a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos enquanto ritual contemporâneo nascido com a História do Homem, tipo de concelebração onde espectáculo e multifacetadas liturgias se cruzam para celebrarem, e simultaneamente procurarem consolidar, o universo em que se desenrolam. Inevitavelmente reflectindo e revelando os padrões ideológicos, políticos, estéticos em que se enquadram.Não foi porém desse ponto de vista que me sugeriram que olhasse a abertura: antes essencialmente enquanto espectáculo massivo de dimensões incomuns. Contudo, permitam-me opinar que falharam completamente as "previsões" que, por um lado, anunciavam uma liturgia totalitária e, por outro, uma expressão de agressivo nacionalismo. É claro que o espectáculo foi uma afirmação de capacidade criativa e de organização, mas, se a China organizadora não se ignorou a si própria e ao seu passado, a verdade é que, muito claramente, procurou transmitir valores de inteligência, do valor do saber, da comunicação e do entendimento entre os homens. Exactamente o contrário, portanto. E se houver alguém preocupado com a ausência de referências a algumas realidades históricas, recordaria, por exemplo, que a guerra do ópio ou os massacres da Manchúria nem sequer foram referidos...Quanto ao espectáculo, comecemos pelos aspectos menos conseguidos: alguns episódios completamente kitsch (o solo de piano, o casal cantando sobre a esfera do último quadro) ou outros mais expectáveis, embora espectaculares ou de estimável significado (os tambores iniciais, a frequente presença de crianças, o sublinhar da multietnicidade, etc).Refira-se também algum inevitável desencontro na segunda parte entre o ritmo televisivo e o ritmo do ao vivo. Por exemplo, do ponto de vista da TV, a espectacular corrida final da chama olímpica pode parecer uma sequência demasiado longa, mas a verdade é que, se o percurso não cobrisse todo o perímetro do estádio, grande parte da assistência nem a veria.Mas o todo é bem mais importante. Em primeiro lugar, o trabalho cénico em geral, com destaque para a riqueza e complexidade dos adereços. Mas, sobretudo, para a luminotecnia: o jogo de luzes e de cores, a definição de espaços dentro da gigantesca área usada (com ao vivo e filmagem) é um notável exercício estético e técnico de iluminação.Coreograficamente, a movimentação ao pormenor de enormes massas é notável, talvez com realce para a sequência de bailarinos de branco, com movimentos em corrida colectiva de uma elegância e rigor admiráveis.Do ponto de vista temático, a exploração da invenção do papel, da escrita, da imprensa, da comunicação, além do seu evidente carácter humanista, proporcionou momentos de especial beleza, como a escrita no chão dos bailarinos dançando, a criação do espaço cénico como um papel desenrolado ou a extraordinária sequência (também pela sua dimensão e final) que utiliza "elementos tipográficos" (com uma curiosa sugestão ao teclado de computador). Esta, seguramente das mais imaginativas e portentosamente produzidas e ensaiadas criações que já vi.Entretanto, devo confessar que ainda hoje tenho saudades das tipografias, do papel, dos tipos de chumbo, do cheiro a tinta... E talvez isso também tenha influenciado...


É naturalmente possível olhar e reflectir sobre a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos enquanto ritual contemporâneo nascido com a História do Homem, tipo de concelebração onde espectáculo e multifacetadas liturgias se cruzam para celebrarem, e simultaneamente procurarem consolidar, o universo em que se desenrolam. Inevitavelmente reflectindo e revelando os padrões ideológicos, políticos, estéticos em que se enquadram.Não foi porém desse ponto de vista que me sugeriram que olhasse a abertura: antes essencialmente enquanto espectáculo massivo de dimensões incomuns. Contudo, permitam-me opinar que falharam completamente as "previsões" que, por um lado, anunciavam uma liturgia totalitária e, por outro, uma expressão de agressivo nacionalismo. É claro que o espectáculo foi uma afirmação de capacidade criativa e de organização, mas, se a China organizadora não se ignorou a si própria e ao seu passado, a verdade é que, muito claramente, procurou transmitir valores de inteligência, do valor do saber, da comunicação e do entendimento entre os homens. Exactamente o contrário, portanto. E se houver alguém preocupado com a ausência de referências a algumas realidades históricas, recordaria, por exemplo, que a guerra do ópio ou os massacres da Manchúria nem sequer foram referidos...Quanto ao espectáculo, comecemos pelos aspectos menos conseguidos: alguns episódios completamente kitsch (o solo de piano, o casal cantando sobre a esfera do último quadro) ou outros mais expectáveis, embora espectaculares ou de estimável significado (os tambores iniciais, a frequente presença de crianças, o sublinhar da multietnicidade, etc).Refira-se também algum inevitável desencontro na segunda parte entre o ritmo televisivo e o ritmo do ao vivo. Por exemplo, do ponto de vista da TV, a espectacular corrida final da chama olímpica pode parecer uma sequência demasiado longa, mas a verdade é que, se o percurso não cobrisse todo o perímetro do estádio, grande parte da assistência nem a veria.Mas o todo é bem mais importante. Em primeiro lugar, o trabalho cénico em geral, com destaque para a riqueza e complexidade dos adereços. Mas, sobretudo, para a luminotecnia: o jogo de luzes e de cores, a definição de espaços dentro da gigantesca área usada (com ao vivo e filmagem) é um notável exercício estético e técnico de iluminação.Coreograficamente, a movimentação ao pormenor de enormes massas é notável, talvez com realce para a sequência de bailarinos de branco, com movimentos em corrida colectiva de uma elegância e rigor admiráveis.Do ponto de vista temático, a exploração da invenção do papel, da escrita, da imprensa, da comunicação, além do seu evidente carácter humanista, proporcionou momentos de especial beleza, como a escrita no chão dos bailarinos dançando, a criação do espaço cénico como um papel desenrolado ou a extraordinária sequência (também pela sua dimensão e final) que utiliza "elementos tipográficos" (com uma curiosa sugestão ao teclado de computador). Esta, seguramente das mais imaginativas e portentosamente produzidas e ensaiadas criações que já vi.Entretanto, devo confessar que ainda hoje tenho saudades das tipografias, do papel, dos tipos de chumbo, do cheiro a tinta... E talvez isso também tenha influenciado...

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