As ficções e a escrita de António TelmoVinculado ao que, desde o começo do século XIX, se chamou “tradição” ou, ainda, as “tradições esotéricas”, a obra de António Telmo (Almeida, 1927) associa-se ao pensar da finisterra. A palavra tradição, do latim traditione, traditio, significa o acto de entregar, transmitir, dar ou deixar em herança. Este filólogo e filósofo, kabbalista da noite - para empregar o termo de Moshe Idel – e, por conseguinte, poeta críptico, foi, primeiro, desconhecido, e tornou-se, de repente, com a célebre “História Secreta de Portugal” (1977) quase famoso demais, por demais na moda. É preciso fugir a qualquer generalização. Os seus escritos, que se reportam, sobretudo, à questão do esotérico - , que não é senão o oculto, o interior, o secreto, – e a hermenêutica espiritual da cultura portuguesa - abrigam pesquisas amplas e variadas. A obra fluindo em devir concentra-se num aspecto que é decisivo: o de uma poética que transporta consigo a chancela do hermetismo e da gnose. E é significativo, e ao mesmo tempo surpreendente, a sua vertente narrativa (de contista).Registros hetero(orto)doxosSomos levados aqui a pensar a amplitude e a relevância de uma obra -, sob o signo do Portugal arquétipo, secreto, - que já dura há mais de meio século. A focalização dos traços distintivos da cultura (filosofia) portuguesa é, a este respeito, muito instrutiva. Em todo o caso, o problema está posto: os seus registros hetero(orto)doxos. É a António Telmo, sem dúvida alguma, que compete o mérito de nos ter revelado (fenomenologicamente) algumas estruturas fundamentais da filosofia portuguesa, que expressa, em sua plenitude, uma enobrecida “tradição metafísica”. “Todo o segredo da hermenêutica – conforme observa António Telmo - está em dizer o outro” (Filosofia e Kabbalah, p. 8).Sabedoria herméticaO autor de “O desembarque dos maniqueus na Ilha de Camões” (1982) foi influenciado pelo magistério de José Marinho, Álvaro Ribeiro e Agostinho da Silva - , com os quais manteve, porém, uma decisiva amizade e compromisso (engagement). Poder-se-ia pois dizer que identifica-se - no sentido estrito - com a via propriamente filosófica inaugurada por Pitágoras. Pois aqui “filosofia” e sabedoria (sophia) e o arcano estão em casa desde o início. Dir-se-á que o seu pitagorismo é, de qualquer maneira, altamente eclético e combinado com uma tradição quase sufi: a herança da Pérsia. Este pensador de origem marrana (cristão novo) manifestou, desde os seus primeiros escritos, um vivo interesse (enfoque) pela sabedoria hermética. Foi mais além do que qualquer outro predecessor, tal como o apresentamos, no atentar para a kabbalah.Proto-universo, palimpsestosO interesse que sempre emprestou à literatura e ao ocultismo ficou patente em “Contos” (um belo álbum de 1999 – edição limitada - com 7 pinturas de Armando Alves). O livro agora reeditado intitulado “Contos Secretos” com capa e desenhos de Espiga Pinto (Chaves, 2007) constitui o centro gavitacional do mundo de António Telmo: a arte poética e a filosofia. Esta colectânea de 20 narrativas, singularmente complexas e ambíguas, que nos é dado analisar - , remete-nos à tese primacial da kabbalah: a realidade é conduzida pela palavra. Falamos de um proto-universo, de cartografias do eterno, do arqui-real, de palimpsestos, que se alimentam de um moto perpétuo: o plasma da meditação. Expliquemo-nos sobre este ponto. Talvez aqui viesse a propósito ressaltar o inbrincamento de poeticidade e o dialogismo por onde perpassa um ponto de vista técnicamente filosófico e as chamadas alusões autobiográficas que desafiam toda a tentativa de interpretação simples e directa.Philo-sophiaNão se trata aqui de discutir uma obra que – negando, aparentemente, o mandarinato universitário – afirma-se pregnante e transmutativa. Fazemos-lhe aqui referência para ilustrar melhor a sua relação com a tradição dos primeiros cristãos e gnósticos alexandrinos, a kabbalah da alma e o paracletismo de Joaquim de Fiore, a cultura árabo-islâmica-iraniana e a cultura judaica-sefardi. Somos levados, a este respeito, a pôr em evidência o rastro de um autor ligado à liberdade da philo-sophia. Os seus contos são, basicamente, um mosaico: devem ser lidos em chave transcendental. Referimo-nos apenas a estórias, numa linguagem sem paralelo entre nós, onde cabe, como atrás referimos, também o não-dito. Contudo, pese embora esta importante diferença, não devemos perder de vista a sua grande maestria: cada palavra, cada detalhe, é perscrutado e manuseado, de modo a atingir um efeito específico.Linguagem cifradaNão há distinção entre escrita ficta (ficção) e escrita ensaística (não-ficção) porque os elementos que fazem a legitimidade de cada género são utilizados também como recursos estilísticos de narração. A ficção se escreve como ensaio e a reflexão se escreve como ficção. António Telmo, tal como Jorge Luís Borges, enuncia as suas convicções em linguagem cifrada. Podemos situar os seus textos na literatura midráshica como sucessora da tradição e constitutiva da continuidade do povo judeu. O material midráshico encontra-se nas narrações, parábolas e metáforas. O próprio dizer de António Telmo funde-se com o seu anagramático guia - Tomé Natanael – como cripto-judeu inobjectivável (uma vez mais, sem dúvida, outra insinuação autobiográfica e, ao mesmo tempo, por seu próprio carácter de antiquário, artífice da diferença, sugestão de personalidade extravagante, quase anônima). Alguns contos mais bem sucedidos, convenhamos, não são apenas um fragmento do mundo, eles próprios são um pequeno mundo: Trabalho de Grupo, No Hades ou o antiquário de Estremoz, A Gaveta do Antiquário, Um conto exemplar, A primeira figura do tarot, As estranhas etimologias de Platão, As perplexidades do aprendiz, etc.Alexandre Teixeira Mendes
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As ficções e a escrita de António TelmoVinculado ao que, desde o começo do século XIX, se chamou “tradição” ou, ainda, as “tradições esotéricas”, a obra de António Telmo (Almeida, 1927) associa-se ao pensar da finisterra. A palavra tradição, do latim traditione, traditio, significa o acto de entregar, transmitir, dar ou deixar em herança. Este filólogo e filósofo, kabbalista da noite - para empregar o termo de Moshe Idel – e, por conseguinte, poeta críptico, foi, primeiro, desconhecido, e tornou-se, de repente, com a célebre “História Secreta de Portugal” (1977) quase famoso demais, por demais na moda. É preciso fugir a qualquer generalização. Os seus escritos, que se reportam, sobretudo, à questão do esotérico - , que não é senão o oculto, o interior, o secreto, – e a hermenêutica espiritual da cultura portuguesa - abrigam pesquisas amplas e variadas. A obra fluindo em devir concentra-se num aspecto que é decisivo: o de uma poética que transporta consigo a chancela do hermetismo e da gnose. E é significativo, e ao mesmo tempo surpreendente, a sua vertente narrativa (de contista).Registros hetero(orto)doxosSomos levados aqui a pensar a amplitude e a relevância de uma obra -, sob o signo do Portugal arquétipo, secreto, - que já dura há mais de meio século. A focalização dos traços distintivos da cultura (filosofia) portuguesa é, a este respeito, muito instrutiva. Em todo o caso, o problema está posto: os seus registros hetero(orto)doxos. É a António Telmo, sem dúvida alguma, que compete o mérito de nos ter revelado (fenomenologicamente) algumas estruturas fundamentais da filosofia portuguesa, que expressa, em sua plenitude, uma enobrecida “tradição metafísica”. “Todo o segredo da hermenêutica – conforme observa António Telmo - está em dizer o outro” (Filosofia e Kabbalah, p. 8).Sabedoria herméticaO autor de “O desembarque dos maniqueus na Ilha de Camões” (1982) foi influenciado pelo magistério de José Marinho, Álvaro Ribeiro e Agostinho da Silva - , com os quais manteve, porém, uma decisiva amizade e compromisso (engagement). Poder-se-ia pois dizer que identifica-se - no sentido estrito - com a via propriamente filosófica inaugurada por Pitágoras. Pois aqui “filosofia” e sabedoria (sophia) e o arcano estão em casa desde o início. Dir-se-á que o seu pitagorismo é, de qualquer maneira, altamente eclético e combinado com uma tradição quase sufi: a herança da Pérsia. Este pensador de origem marrana (cristão novo) manifestou, desde os seus primeiros escritos, um vivo interesse (enfoque) pela sabedoria hermética. Foi mais além do que qualquer outro predecessor, tal como o apresentamos, no atentar para a kabbalah.Proto-universo, palimpsestosO interesse que sempre emprestou à literatura e ao ocultismo ficou patente em “Contos” (um belo álbum de 1999 – edição limitada - com 7 pinturas de Armando Alves). O livro agora reeditado intitulado “Contos Secretos” com capa e desenhos de Espiga Pinto (Chaves, 2007) constitui o centro gavitacional do mundo de António Telmo: a arte poética e a filosofia. Esta colectânea de 20 narrativas, singularmente complexas e ambíguas, que nos é dado analisar - , remete-nos à tese primacial da kabbalah: a realidade é conduzida pela palavra. Falamos de um proto-universo, de cartografias do eterno, do arqui-real, de palimpsestos, que se alimentam de um moto perpétuo: o plasma da meditação. Expliquemo-nos sobre este ponto. Talvez aqui viesse a propósito ressaltar o inbrincamento de poeticidade e o dialogismo por onde perpassa um ponto de vista técnicamente filosófico e as chamadas alusões autobiográficas que desafiam toda a tentativa de interpretação simples e directa.Philo-sophiaNão se trata aqui de discutir uma obra que – negando, aparentemente, o mandarinato universitário – afirma-se pregnante e transmutativa. Fazemos-lhe aqui referência para ilustrar melhor a sua relação com a tradição dos primeiros cristãos e gnósticos alexandrinos, a kabbalah da alma e o paracletismo de Joaquim de Fiore, a cultura árabo-islâmica-iraniana e a cultura judaica-sefardi. Somos levados, a este respeito, a pôr em evidência o rastro de um autor ligado à liberdade da philo-sophia. Os seus contos são, basicamente, um mosaico: devem ser lidos em chave transcendental. Referimo-nos apenas a estórias, numa linguagem sem paralelo entre nós, onde cabe, como atrás referimos, também o não-dito. Contudo, pese embora esta importante diferença, não devemos perder de vista a sua grande maestria: cada palavra, cada detalhe, é perscrutado e manuseado, de modo a atingir um efeito específico.Linguagem cifradaNão há distinção entre escrita ficta (ficção) e escrita ensaística (não-ficção) porque os elementos que fazem a legitimidade de cada género são utilizados também como recursos estilísticos de narração. A ficção se escreve como ensaio e a reflexão se escreve como ficção. António Telmo, tal como Jorge Luís Borges, enuncia as suas convicções em linguagem cifrada. Podemos situar os seus textos na literatura midráshica como sucessora da tradição e constitutiva da continuidade do povo judeu. O material midráshico encontra-se nas narrações, parábolas e metáforas. O próprio dizer de António Telmo funde-se com o seu anagramático guia - Tomé Natanael – como cripto-judeu inobjectivável (uma vez mais, sem dúvida, outra insinuação autobiográfica e, ao mesmo tempo, por seu próprio carácter de antiquário, artífice da diferença, sugestão de personalidade extravagante, quase anônima). Alguns contos mais bem sucedidos, convenhamos, não são apenas um fragmento do mundo, eles próprios são um pequeno mundo: Trabalho de Grupo, No Hades ou o antiquário de Estremoz, A Gaveta do Antiquário, Um conto exemplar, A primeira figura do tarot, As estranhas etimologias de Platão, As perplexidades do aprendiz, etc.Alexandre Teixeira Mendes