#poesia: os paraísos artificiais, o vinho

01-07-2009
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A ALMA DO VINHOUma noite, a alma do vinho cantava nas garrafas:«Homem, vai de mim para ti, ó caro deserdado,Nesta prisão de vidro e de selos vermelhos,Um canto cheio de luz e de fraternidade!Sei quanto é preciso, sobre a colina em chamas,De esforço, de suor e de sol esbraseantePara engendrar-se a minha vida e ser-me dada alma;Mas não serei ingrato nem malfazejo,Pois é imensa a alegria que sinto quando caioNa garganta de um homem gasto pelo trabalho,E o seu cálido peito é um túmulo tranquiloOnde melhor me sinto do que nas frias caves.Ouves tu ressoar as canções dos domingos?E a esperança que ri no meu seio palpitante?De cotovelos na mesa e arregaçando as mangas,Tu me glorificarás e estarás radiante;Iluminarei os olhos de tua mulher encantada;A teu filho darei a cor e as forçasE serei para esse frágil atleta da vidaO óleo que reforça os músculos dos lutadores.Em ti cairei, vegetal ambrósia,Grão precioso lançado pelo eterno Semeador,Para que do nosso amor nasça a poesiaQue subirá a Deus como uma rara flor!»O VINHO DOS TRAPEIROSMuitas vezes, à luz vermelha de um candeeiroCuja chama o vento sacode e cujo vidro atormenta,No coração de um velho subúrbio, labirinto lodoso.Onde a humanidade se agita em fermentos tempestuosos,Vê-se um trapeiro que vem, meneando a cabeça,Tropeçando, e esbarrando nas paredes como um poeta,E, sem dar atenção aos espiões, seus súbditos,Expande todo o coração em gloriosos projectos.Presta juramentos, dita leis sublimes,Derruba os maus, ergue de novo as vítimas,E sob o firmamento como um dossel suspensoEnebria-se dos esplendores da sua própria virtude.Sim, estes seres fatigados de desgostos domésticos,Moídos do trabalho e atormentados pela idade,Extenuados e vergados sob um monte de restos,Vomitados confusos do enorme Paris,Regressam, perfumados de um odor de tonéisSeguidos de companheiros, encanecidos nas batalhas,Cujos bigodes pendem como os velhos estandartes.As bandeiras, as flores e os arcos triunfaisErguem-se diante deles, solene magia!E na estrondosa e luminosa orgiaDos clarins, do sol, dos gritos e do tambor,Trazem a glória ao povo ébrio de amor!Assim através da Humanidade frívolaO vinho rola ouro, deslumbrante Páctolo;Com a garganta do homem canta as suas proezasE reina por seus dons como os verdadeiros reis.Para afogar o rancor e embalar a indolênciaDe todos esses velhos malditos que morrem em silêncio,Deus, tocado de remorsos, fizera o sono;O Homem juntou-lhe o Vinho, filho sagrado do Sol.O VINHO DO ASSASSINOMinha mulher está morta, sou livre!Posso agora beber quanto quiser.Quando chegava a casa sem dinheiroRasgava-me as fibras aos gritos.Sou tão feliz como um rei;O ar é puro, o céu admirável...Tivemos um Verão assim!Quando me apaixonei por ela.A horrível sede que me dilaceraPrecisaria para se satisfazerDe tanto vinho quanto pode conterO túmulo dela; — e não é dizer pouco:Atirei-a ao fundo de um poço,E empurrei-lhe mesmo para cimaTodas as pedras do bucal.Hei-de esquecê-lo se puder!Em nome dos juramentos de ternura,De que nada pode desligar-nos,E para nos reconciliarmosComo nos bons tempos do nosso entusiasmo,Implorei-lhe um encontro,À noite, numa rua escura.Ela veio! — doida criatura!Todos somos mais ou menos doidos!Estava ainda bonita,Embora fatiga da! e eu,Amava-a de ‘mais! por issoLhe disse: Sai desta vida!Ninguém pode entender. Um sóDesses bêbedos estúpidosTerá pensado nas noites mórbidasFazer do vinho uma mortalha?Essa crápula invulnerávelComo as máquinas de ferroNunca, de Verão ou de Inverno,Conheceram o verdadeiro amor,Com os seus negros bruxedos,Seu cortejo infernal de alarmes,Seus frascos de veneno, suas lágrimas,Sem ruídos de grilhões e de ossadas!— Eis-me livre e solitário!Esta noite estarei bêbedo a cair;Depois, sem medo e sem remorso,Deitar-me-ei no chão,E dormirei como um cão!A galera de pesadas rodasCarregada de pedras e de lamas,O vagão desgarrado pode virEsmagar-me a cabeça culpadaOu cortar-me pelo meio,Rio-me de tudo como de Deus,Do Diabo ou da Santa Mesa!O VINHO DO SOLITÁRIOO olhar singular de uma mulher galanteQue desliza para nós como o raio brancoQue a lua ondulosa envia ao lago trémuloQuando quer banhar nele a beleza preguiçosa;O último saco de escudos nas mãos de um jogador;Um beijo libertino da magra Adeline;Os sons de uma música enervante e carinhosa,Semelhante ao grito distante da dor humana,Tudo isto não vale, ó garrafa profunda,Os bálsamos penetrantes que a tua pança fecundaReserva ao coração sedento do poeta piedoso;Tu deitas-lhe a esperança, a juventude e a vida,— E o orgulho, tesouro da indigência,Que nos torna triunfantes e iguais aos Deuses!O VINHO DOS AMANTESHoje o espaço é esplêndido!Sem freio, sem esporas, sem brida,Partamos a cavalo no vinhoPara um céu feérico e divino!Como dois anjos atormentadosPor calentura implacável,No azul cristal da manhãSigamos a miragem distante!Suavemente balouçados sobre a asaDo turbilhão inteligente,Em um delírio paralelo,Minha irmã, nadando lado a lado,Fugiremos sem descanso nem tréguasPara o paraíso dos meus sonhos!charles baudelaireos paraísos artificiaistrad. josé saramagolivros bestampa1978


A ALMA DO VINHOUma noite, a alma do vinho cantava nas garrafas:«Homem, vai de mim para ti, ó caro deserdado,Nesta prisão de vidro e de selos vermelhos,Um canto cheio de luz e de fraternidade!Sei quanto é preciso, sobre a colina em chamas,De esforço, de suor e de sol esbraseantePara engendrar-se a minha vida e ser-me dada alma;Mas não serei ingrato nem malfazejo,Pois é imensa a alegria que sinto quando caioNa garganta de um homem gasto pelo trabalho,E o seu cálido peito é um túmulo tranquiloOnde melhor me sinto do que nas frias caves.Ouves tu ressoar as canções dos domingos?E a esperança que ri no meu seio palpitante?De cotovelos na mesa e arregaçando as mangas,Tu me glorificarás e estarás radiante;Iluminarei os olhos de tua mulher encantada;A teu filho darei a cor e as forçasE serei para esse frágil atleta da vidaO óleo que reforça os músculos dos lutadores.Em ti cairei, vegetal ambrósia,Grão precioso lançado pelo eterno Semeador,Para que do nosso amor nasça a poesiaQue subirá a Deus como uma rara flor!»O VINHO DOS TRAPEIROSMuitas vezes, à luz vermelha de um candeeiroCuja chama o vento sacode e cujo vidro atormenta,No coração de um velho subúrbio, labirinto lodoso.Onde a humanidade se agita em fermentos tempestuosos,Vê-se um trapeiro que vem, meneando a cabeça,Tropeçando, e esbarrando nas paredes como um poeta,E, sem dar atenção aos espiões, seus súbditos,Expande todo o coração em gloriosos projectos.Presta juramentos, dita leis sublimes,Derruba os maus, ergue de novo as vítimas,E sob o firmamento como um dossel suspensoEnebria-se dos esplendores da sua própria virtude.Sim, estes seres fatigados de desgostos domésticos,Moídos do trabalho e atormentados pela idade,Extenuados e vergados sob um monte de restos,Vomitados confusos do enorme Paris,Regressam, perfumados de um odor de tonéisSeguidos de companheiros, encanecidos nas batalhas,Cujos bigodes pendem como os velhos estandartes.As bandeiras, as flores e os arcos triunfaisErguem-se diante deles, solene magia!E na estrondosa e luminosa orgiaDos clarins, do sol, dos gritos e do tambor,Trazem a glória ao povo ébrio de amor!Assim através da Humanidade frívolaO vinho rola ouro, deslumbrante Páctolo;Com a garganta do homem canta as suas proezasE reina por seus dons como os verdadeiros reis.Para afogar o rancor e embalar a indolênciaDe todos esses velhos malditos que morrem em silêncio,Deus, tocado de remorsos, fizera o sono;O Homem juntou-lhe o Vinho, filho sagrado do Sol.O VINHO DO ASSASSINOMinha mulher está morta, sou livre!Posso agora beber quanto quiser.Quando chegava a casa sem dinheiroRasgava-me as fibras aos gritos.Sou tão feliz como um rei;O ar é puro, o céu admirável...Tivemos um Verão assim!Quando me apaixonei por ela.A horrível sede que me dilaceraPrecisaria para se satisfazerDe tanto vinho quanto pode conterO túmulo dela; — e não é dizer pouco:Atirei-a ao fundo de um poço,E empurrei-lhe mesmo para cimaTodas as pedras do bucal.Hei-de esquecê-lo se puder!Em nome dos juramentos de ternura,De que nada pode desligar-nos,E para nos reconciliarmosComo nos bons tempos do nosso entusiasmo,Implorei-lhe um encontro,À noite, numa rua escura.Ela veio! — doida criatura!Todos somos mais ou menos doidos!Estava ainda bonita,Embora fatiga da! e eu,Amava-a de ‘mais! por issoLhe disse: Sai desta vida!Ninguém pode entender. Um sóDesses bêbedos estúpidosTerá pensado nas noites mórbidasFazer do vinho uma mortalha?Essa crápula invulnerávelComo as máquinas de ferroNunca, de Verão ou de Inverno,Conheceram o verdadeiro amor,Com os seus negros bruxedos,Seu cortejo infernal de alarmes,Seus frascos de veneno, suas lágrimas,Sem ruídos de grilhões e de ossadas!— Eis-me livre e solitário!Esta noite estarei bêbedo a cair;Depois, sem medo e sem remorso,Deitar-me-ei no chão,E dormirei como um cão!A galera de pesadas rodasCarregada de pedras e de lamas,O vagão desgarrado pode virEsmagar-me a cabeça culpadaOu cortar-me pelo meio,Rio-me de tudo como de Deus,Do Diabo ou da Santa Mesa!O VINHO DO SOLITÁRIOO olhar singular de uma mulher galanteQue desliza para nós como o raio brancoQue a lua ondulosa envia ao lago trémuloQuando quer banhar nele a beleza preguiçosa;O último saco de escudos nas mãos de um jogador;Um beijo libertino da magra Adeline;Os sons de uma música enervante e carinhosa,Semelhante ao grito distante da dor humana,Tudo isto não vale, ó garrafa profunda,Os bálsamos penetrantes que a tua pança fecundaReserva ao coração sedento do poeta piedoso;Tu deitas-lhe a esperança, a juventude e a vida,— E o orgulho, tesouro da indigência,Que nos torna triunfantes e iguais aos Deuses!O VINHO DOS AMANTESHoje o espaço é esplêndido!Sem freio, sem esporas, sem brida,Partamos a cavalo no vinhoPara um céu feérico e divino!Como dois anjos atormentadosPor calentura implacável,No azul cristal da manhãSigamos a miragem distante!Suavemente balouçados sobre a asaDo turbilhão inteligente,Em um delírio paralelo,Minha irmã, nadando lado a lado,Fugiremos sem descanso nem tréguasPara o paraíso dos meus sonhos!charles baudelaireos paraísos artificiaistrad. josé saramagolivros bestampa1978

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