Uguru errante: [23] A ler

24-03-2005
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[23] A ler

Mensageiros e irresponsáveis

Por José António Lima

PASSADA uma primeira fase, de reacções emocionais e corporativas, começa a surgir alguma razoabilidade de argumentos e lucidez de análise às violações e excessos que se têm multiplicado na cobertura jornalística do processo Casa Pia. Os principais dirigentes políticos e o próprio Durão Barroso rejeitaram a necessidade de nova legislação ou de maiores restrições à liberdade de imprensa, não dando eco à acalorada sugestão da deputada Assunção Esteves. E muitos jornalistas e responsáveis da comunicação social vieram admitir que, em muitos casos, se tem ido longe demais –preferindo, no entanto, generalizar, evitando o incómodo de apontar casos concretos e responsabilizar os maus exemplos...

Algumas conclusões e evidências tornaram-se praticamente consensuais. Como as cinco que se seguem.

1. A de que a tese do jornalista reduzido à condição de pobre e inimputável mensageiro, por ser tão primária e desresponsabilizadora, deixou rapidamente de ter quem a defendesse.

2. A de que, em muitas ocasiões, há um conflito entre o direito de informar e o interesse público, de um lado, e o respeito pelo segredo de Justiça, do outro lado. Cabe aos responsáveis de cada órgão de comunicação social decidir quando o primeiro se sobrepõe ao segundo, assumindo as consequências, e aos tribunais avaliar a legitimidade dessa decisão. E, sendo tantas as vezes que os jornalistas já responderam em tribunal por violação do segredo de Justiça e tamanha a ineficácia e a desadequação à realidade do actual clausulado, é há muito patente a necessidade de rever o âmbito e os limites de um segredo de Justiça que ninguém cumpre.

3. A de que não está em causa, ao contrário do que alguns quiseram fazer crer, o dever de protecção e confidencialidade das fontes pelos jornalistas. É um princípio inquestionável da liberdade de informação, que salvaguarda o direito e a obrigação de noticiar factos de interesse público, e não é dele que advêm os abusos e atropelos cometidos neste conturbado processo da Casa Pia.

4. A de que não existe qualquer organismo prestigiado e respeitado no sector da comunicação social que imponha a auto-regulação e o cumprimento dos princípios éticos e deontológicos. O esvaziado Sindicato dos Jornalistas e o seu apagado Conselho Deontológico, bem como a mais do que desacreditada Alta Autoridade para a Comunicação Social, não cumprem minimamente esse papel. O que, em tempos de concorrência feroz e de luta pela sobrevivência de jornais e televisões, na ânsia de aumentar vendas e fazer subir audiências, abre o terreno para que o sensacionalismo sem regras se transforme numa incontrolável bola de neve. Vejam-se os casos, exemplares no seu populismo grosseiro e degradante, do matutino «24 Horas» e dos noticiários da TVI.

5. A tudo isto soma-se uma outra evidência, bem sintetizada, há dias, por António Barreto no «Público»: a de que «há jornalistas bons e maus, sérios e viciosos, honestos e vendidos, verdadeiros e mentirosos. Há imprensa que se esforça por elevar a cultura e a decência dos cidadãos e há aquela que vive da sordidez». Acontece que esta última vive, sem regras e na maior das impunidades, um momento de expansão e tem o efeito colateral de influenciar e contagiar, em certos casos, a chamada imprensa de referência – como se viu nas últimas semanas.

Feito o retrato do ponto a que chegámos, convém esclarecer – a propósito da polémica sobre as capas do «JN» e da «Focus» – uma mistificação. E reafirmar o abuso e a irresponsabilidade de que revestiram.

A mistificação é de que, ao invés do que se pretendeu fazer crer, aquilo que estava em causa não era mais um entre tantos casos de violação o segredo de Justiça na comunicação social, nem sequer a preservação da confidencialidade das fontes. Mas sim a colisão entre o direito (que não é irrestrito) de informar e o direito, também consagrado na Constituição, à integridade moral, à imagem, ao bom nome e à reputação dos visados. No caso, Jorge Sampaio, António Vitorino, Mota Amaral, Mário Soares e o cardeal-patriarca, envolvidos à força, abusivamente e com estrépito público no processo de pedofilia.

Nenhum critério obrigava, à luz do direito e do dever de informar dos jornalistas, nenhum argumento autorizava que se escarrapachassem os seus nomes e fotografias nas primeiras páginas do «JN» e da «Focus» como estando ligados ao aviltante processo da Casa Pia.

É, por isso, estranho ver um comentador independente como Miguel Sousa Tavares subscrever, com enorme leveza, a tese de que «se confunde o mensageiro com a mensagem e atira-se para cima daquele as culpas pelo conteúdo da carta que transporta». Que transporta e divulga ao grande público em manchete, faça-se a precisão. Mesmo que o seu conteúdo não passe de calúnias gratuitas. Ou perguntar se «não será notícia relatar que a acusação andou a mostrar retratos de Mário Soares ou do cardeal-patriarca às vítimas da Casa Pia, para ver se elas os identificavam como pedófilos?» Entre mais de uma centena de outras fotos de políticos e figuras públicas, acrescente-se. E a resposta, natural e óbvia, é: não, não é notícia. É um procedimento normal das polícias. E uma especulação jornalística abusiva, gratuita e perigosa.

É, por isso, surpreendente ver um jornalista prestigiado como Vicente Jorge Silva, agora em funções de deputado, questionar se a solução «será esconder os factos – e factos de uma gravidade inusitada – em nome do segredo de justiça (que, aliás, não tem aqui qualquer relevância) e permitir a ocultação de situações de inexplicável e absurdo arbítrio judicial?». Factos de gravidade inusitada?! Como e porquê?! Apensar documentos a um processo com milhares de páginas ou constituir um álbum de fotos com figuras conhecidas para identificação pelas testemunhas são factos de gravidade inusitada à luz de quê? E arbítrio judicial, omitindo o arbítrio jornalístico de dar capa, empolar difamações e insinuar infâmias que não têm qualquer relevância ou consistência jornalística?

É, ainda por isso, intrigante ver um jornalista comedido como José Alberto Carvalho interrogar-se: «O que é grave é a notícia do facto ou a verdade do mesmo?» Se o facto não passa de uma calúnia anónima vertida em carta, há alguma dúvida? É grave noticiar e difundir calúnias, mesmo sendo uma verdade insofismável a sua existência factual, ainda para mais com destaque de primeira página. «Estão ou não os jornalistas – regra geral – a cumprir o que juram perante o seu código ético e deontológico? Na minha opinião, sim, estão», conclui José Alberto Carvalho com benevolência.

O sucinto Código Deontológico dos jornalistas portugueses estabelece, entre outras normas, que «o jornalista deve combater o sensacionalismo e considerar a acusação sem provas como grave falta profissional». Regra geral, com diria José Alberto Carvalho, esta norma está a cair em desuso.

Posted by hmscardoso at janeiro 15, 2004 10:32 PM

[23] A ler

Mensageiros e irresponsáveis

Por José António Lima

PASSADA uma primeira fase, de reacções emocionais e corporativas, começa a surgir alguma razoabilidade de argumentos e lucidez de análise às violações e excessos que se têm multiplicado na cobertura jornalística do processo Casa Pia. Os principais dirigentes políticos e o próprio Durão Barroso rejeitaram a necessidade de nova legislação ou de maiores restrições à liberdade de imprensa, não dando eco à acalorada sugestão da deputada Assunção Esteves. E muitos jornalistas e responsáveis da comunicação social vieram admitir que, em muitos casos, se tem ido longe demais –preferindo, no entanto, generalizar, evitando o incómodo de apontar casos concretos e responsabilizar os maus exemplos...

Algumas conclusões e evidências tornaram-se praticamente consensuais. Como as cinco que se seguem.

1. A de que a tese do jornalista reduzido à condição de pobre e inimputável mensageiro, por ser tão primária e desresponsabilizadora, deixou rapidamente de ter quem a defendesse.

2. A de que, em muitas ocasiões, há um conflito entre o direito de informar e o interesse público, de um lado, e o respeito pelo segredo de Justiça, do outro lado. Cabe aos responsáveis de cada órgão de comunicação social decidir quando o primeiro se sobrepõe ao segundo, assumindo as consequências, e aos tribunais avaliar a legitimidade dessa decisão. E, sendo tantas as vezes que os jornalistas já responderam em tribunal por violação do segredo de Justiça e tamanha a ineficácia e a desadequação à realidade do actual clausulado, é há muito patente a necessidade de rever o âmbito e os limites de um segredo de Justiça que ninguém cumpre.

3. A de que não está em causa, ao contrário do que alguns quiseram fazer crer, o dever de protecção e confidencialidade das fontes pelos jornalistas. É um princípio inquestionável da liberdade de informação, que salvaguarda o direito e a obrigação de noticiar factos de interesse público, e não é dele que advêm os abusos e atropelos cometidos neste conturbado processo da Casa Pia.

4. A de que não existe qualquer organismo prestigiado e respeitado no sector da comunicação social que imponha a auto-regulação e o cumprimento dos princípios éticos e deontológicos. O esvaziado Sindicato dos Jornalistas e o seu apagado Conselho Deontológico, bem como a mais do que desacreditada Alta Autoridade para a Comunicação Social, não cumprem minimamente esse papel. O que, em tempos de concorrência feroz e de luta pela sobrevivência de jornais e televisões, na ânsia de aumentar vendas e fazer subir audiências, abre o terreno para que o sensacionalismo sem regras se transforme numa incontrolável bola de neve. Vejam-se os casos, exemplares no seu populismo grosseiro e degradante, do matutino «24 Horas» e dos noticiários da TVI.

5. A tudo isto soma-se uma outra evidência, bem sintetizada, há dias, por António Barreto no «Público»: a de que «há jornalistas bons e maus, sérios e viciosos, honestos e vendidos, verdadeiros e mentirosos. Há imprensa que se esforça por elevar a cultura e a decência dos cidadãos e há aquela que vive da sordidez». Acontece que esta última vive, sem regras e na maior das impunidades, um momento de expansão e tem o efeito colateral de influenciar e contagiar, em certos casos, a chamada imprensa de referência – como se viu nas últimas semanas.

Feito o retrato do ponto a que chegámos, convém esclarecer – a propósito da polémica sobre as capas do «JN» e da «Focus» – uma mistificação. E reafirmar o abuso e a irresponsabilidade de que revestiram.

A mistificação é de que, ao invés do que se pretendeu fazer crer, aquilo que estava em causa não era mais um entre tantos casos de violação o segredo de Justiça na comunicação social, nem sequer a preservação da confidencialidade das fontes. Mas sim a colisão entre o direito (que não é irrestrito) de informar e o direito, também consagrado na Constituição, à integridade moral, à imagem, ao bom nome e à reputação dos visados. No caso, Jorge Sampaio, António Vitorino, Mota Amaral, Mário Soares e o cardeal-patriarca, envolvidos à força, abusivamente e com estrépito público no processo de pedofilia.

Nenhum critério obrigava, à luz do direito e do dever de informar dos jornalistas, nenhum argumento autorizava que se escarrapachassem os seus nomes e fotografias nas primeiras páginas do «JN» e da «Focus» como estando ligados ao aviltante processo da Casa Pia.

É, por isso, estranho ver um comentador independente como Miguel Sousa Tavares subscrever, com enorme leveza, a tese de que «se confunde o mensageiro com a mensagem e atira-se para cima daquele as culpas pelo conteúdo da carta que transporta». Que transporta e divulga ao grande público em manchete, faça-se a precisão. Mesmo que o seu conteúdo não passe de calúnias gratuitas. Ou perguntar se «não será notícia relatar que a acusação andou a mostrar retratos de Mário Soares ou do cardeal-patriarca às vítimas da Casa Pia, para ver se elas os identificavam como pedófilos?» Entre mais de uma centena de outras fotos de políticos e figuras públicas, acrescente-se. E a resposta, natural e óbvia, é: não, não é notícia. É um procedimento normal das polícias. E uma especulação jornalística abusiva, gratuita e perigosa.

É, por isso, surpreendente ver um jornalista prestigiado como Vicente Jorge Silva, agora em funções de deputado, questionar se a solução «será esconder os factos – e factos de uma gravidade inusitada – em nome do segredo de justiça (que, aliás, não tem aqui qualquer relevância) e permitir a ocultação de situações de inexplicável e absurdo arbítrio judicial?». Factos de gravidade inusitada?! Como e porquê?! Apensar documentos a um processo com milhares de páginas ou constituir um álbum de fotos com figuras conhecidas para identificação pelas testemunhas são factos de gravidade inusitada à luz de quê? E arbítrio judicial, omitindo o arbítrio jornalístico de dar capa, empolar difamações e insinuar infâmias que não têm qualquer relevância ou consistência jornalística?

É, ainda por isso, intrigante ver um jornalista comedido como José Alberto Carvalho interrogar-se: «O que é grave é a notícia do facto ou a verdade do mesmo?» Se o facto não passa de uma calúnia anónima vertida em carta, há alguma dúvida? É grave noticiar e difundir calúnias, mesmo sendo uma verdade insofismável a sua existência factual, ainda para mais com destaque de primeira página. «Estão ou não os jornalistas – regra geral – a cumprir o que juram perante o seu código ético e deontológico? Na minha opinião, sim, estão», conclui José Alberto Carvalho com benevolência.

O sucinto Código Deontológico dos jornalistas portugueses estabelece, entre outras normas, que «o jornalista deve combater o sensacionalismo e considerar a acusação sem provas como grave falta profissional». Regra geral, com diria José Alberto Carvalho, esta norma está a cair em desuso.

Posted by hmscardoso at janeiro 15, 2004 10:32 PM

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