Para uns churrasco, para outros esturro

22-10-2008
marcar artigo

Abertura do noticiário na SIC. O tema do dia com um fundo a condizer. Será que se enganaram e meteram a bobine da semana passada?... Será que alguém ia dar por isso? A vertigem do directo na TVI. "Fogo & Lágrimas", mas a ordem parece estar trocada. Ou será já a publicidade à telenovela que vem a seguir? A RTP faz pela vida, mas aqui há poucas chamas. Vamos para outro lado, antes que a gente perca a cabeça e chegue o fogo a isto tudo. O famoso Heli TVI, a "encher chouriços" nunca nos deixa ficar mal. Ou talvez seja só um novo modo de olhar para o problema. De cima, claro. SIC em Coimbra. Felizmente uns psicólogos que estavam de passagem também ajudaram aos baldes de água. A TVI não colabora nada ao enviar brasas para os locais dos incêndios... A SIC em directo. 277 pirómanos detidos, mas este repórter continua aqui a esquentar a cabeça às pessoas, impunemente. E "Portugal a arder"... de irritação! De manhã, à tarde, à noite... ou de madrugada, a TVI está lá! Como se isso fizesse alguma diferença. Ora cá está o mapa que todos os incendiários estavam à espera! Aproveitem, rapazes, que o dia hoje 'tá maravilha!

1. Eu não queria falar neste tema tão desinteressante, mas há coisas que há muito tempo já passaram os limites da decência e do bom-senso. Refiro-me à cobertura dada pelas televisões nacionais aos incêndios florestais. Reflexo de um ano extraordinariamente seco, as primeiras reportagens aconteceram logo em Janeiro ou Fevereiro, mas, nos últimos três ou quatro meses, poucos terão sido os dias em que não passou o mesmo filme na abertura dos noticiários da TV. Dia após dia embarcam naquelas reportagens sem assunto, sobre incêndios "circunscritos" e "por circunscrever", da contabilização da área ardida, dos "24 carros de bombeiros, 223 homens e 4 meios aéreos que combatem as chamas" (e eu estava convencido que os "meios" não se contavam; que só os aviões e helicópteros se podiam contar). Depois passam para outro ponto do país e mais uma variação das mesmas imagens e dos mesmos clichés: "o fogo que lavra", o "pasto das chamas", as "projecções de fogo", o "efeito de chaminé", os "soldados da paz" e outros que tais. Sempre que possível (normalmente quando o fogo cerca as aldeias) fazem questão de mostrar a dor das pessoas atingidas nos seus bens, as casas a arder, os animais carbonizados, os telhados a ruir no meio das labaredas. Só faltou mesmo a tradicional pergunta, "Então, o que é que sente?" E esta imbecilidade continua por 20, 30 ou mais minutos, preenchidos por imagens dantescas mas sempre iguais; enviados a reportar em directo o desespero das pessoas que tentam apagar um inferno com baldes de água; entrevistas com bombeiros exaustos que falam do incêndio que voltou a atear às 4 horas da madrugada, precisamente depois de ter sido declarado extinto e logo após os homens terem ido embora; do fogo com várias frentes que se iniciou com "focos simultâneos"; de "ignições", "rescaldos" e outros termos do jargão bombeirista, da possibilidade de "mão criminosa". O catálogo de horrores vai desfilando interminavelmente, semana após semana, num espectáculo televisivo de mau gosto que marca os noticiários. Uma das inovações, este ano, é mostrar-nos aquele mapa dividido em distritos coloridos de acordo com o risco de incêndio; "máximo", dizem eles, ou "muito elevado". E pergunto: significa isto que, se eu for incendiário, tenho mais hipóteses de ter um fogo bem sucedido naquelas regiões? Ou já não há dinheiro para enviar faxes ou telefonemas aos guardas florestais, que, imagino, se devem sentar frente ao televisor à espera daquele momento com a ansiedade de quem aguarda o sorteio do euromilhões... Em Espanha, as televisões deixaram de transmitir imagens de chamas. 2. Numa das últimas segundas-feiras em que o António Vitorino foi entrevistado depois do telejornal, José Rodrigues dos Santos, perguntou-lhe se não achava que o Governo devia proibir esse tipo de imagens na televisão. Vitorino, demasiado inteligente para se deixar apanhar na ratoeira, disse que essa questão devia ser debatida pelas próprias televisões, e que elas mesmas deviam tomar uma decisão sobre o problema, sem interferência alguma do Governo. Como não conseguiu arrastar a conversa para onde queria, JRS, antes de mudar de assunto, disse que não existiam estudos a provar que a não-transmissão de imagens do fogo levasse a uma diminuição do número de incêndios; (penso que também não existem estudos que apontem o contrário). Vitorino argumentou que qualquer psicólogo concordará que o exemplo visto na televisão pode servir de incentivo à prática de acções semelhantes por indivíduos que tenham essa predisposição. JRS disse também que, segundo as estastísticas, só 5% dos incêndios são ateados deliberadamente; os restantes 95% devem-se a descuidos (e a combustão espontânea, suponho, porque já me parece negligência a mais). Se estes números fossem reais, discutir se devem ou não passar imagens de fogo na TV seria uma questão puramente académica. Mas porquê este número cabalístico dos 5%? Porque não 15 ou 25? Ou talvez mais, bastante mais? Porquê tanto "descuido" apesar das coincidências suspeitas? Porque quando toca a receber dinheiro europeu do fundo destinado a calamidades, os danos causados por fogos de origem criminosa não são considerados - e cá a gente pode ser parola, mas não é estúpida... JRS recordou igualmente que em 1991 a RTP não deu imagens de incêndios. E como não resultou, em 1992 voltaram à tradição, certo? Errado. Em 1992 apareceu a SIC e no ano seguinte a TVI; com a lógica do "quanto mais pior, melhor" em movimento, a RTP não se podia deixar ficar para trás. 3. A pergunta que se coloca agora é, pura e simplesmente, esta: será isto inevitável? Se a resposta é sim, então deixem arder todas as florestas rapidamente, para ver se passamos ao próximo tema. Que o interior do país fique transformado num prado gigantesco, onde as vacas e as cabras possam pastar à vontade sem árvores a estorvar. Quantos metros quadrados de arvoredo se consegue vigiar por concelho, ou por corporação de bombeiros? Derrubem-se as árvores até esse limite, imprimam-se livros feitos com a sua celulose, trate-se bem dos jardins botânicos que restarem e não me falem mais em incêndios! Se a resposta é não, então o caso é diferente, porque temos de ver a quem aproveitam os fogos. Não partilho da teoria dos conspiradores e terroristas do tição, nem dos archotes caídos do céu, nem dos piromaníacos que atacam cada vez que voltamos as costas, a mando de interesses obscuros e inominados. Os indivíduos detidos pela polícia (e são muitos todos os anos, pelo que se pode definir um perfil do incendiário) são geralmente atrasados mentais, inimputáveis, bêbados ou vândalos que gostam de contemplar o espectáculo e os meios em acção, ou pequenos "orcs" movidos pela vingança ou outros sentimentos baixos; nunca os criminosos sofisticados dos mitos urbanos. Mas, depois do fogo pegar, faz-me impressão que os meios de combate sejam comercializados por empresas privadas, que as aeronaves sejam pagas à hora de voo, independentemente da sua eficácia. Sem pretender lançar suspeitas infundadas, nem generalizar injustamente, penso que seria vantajoso se só ao Estado fosse permitido comprar e vender material de combate a incêndios destinado a ser utilizado em território nacional e, obviamente, todas as aeronaves utilizadas para o mesmo fim teriam de pertencer à Força Aérea, a quem caberia exclusivamente essa missão. Constata-se afinal que, se (quase) não houvesse incêndios, determinadas empresas teriam talvez de fechar as portas. E recorda-se o lema do cangalheiro, "eu não quero que ninguém morra, mas quero que a vida me corra". A. Stonefield - 23.ago.2005 .

Abertura do noticiário na SIC. O tema do dia com um fundo a condizer. Será que se enganaram e meteram a bobine da semana passada?... Será que alguém ia dar por isso? A vertigem do directo na TVI. "Fogo & Lágrimas", mas a ordem parece estar trocada. Ou será já a publicidade à telenovela que vem a seguir? A RTP faz pela vida, mas aqui há poucas chamas. Vamos para outro lado, antes que a gente perca a cabeça e chegue o fogo a isto tudo. O famoso Heli TVI, a "encher chouriços" nunca nos deixa ficar mal. Ou talvez seja só um novo modo de olhar para o problema. De cima, claro. SIC em Coimbra. Felizmente uns psicólogos que estavam de passagem também ajudaram aos baldes de água. A TVI não colabora nada ao enviar brasas para os locais dos incêndios... A SIC em directo. 277 pirómanos detidos, mas este repórter continua aqui a esquentar a cabeça às pessoas, impunemente. E "Portugal a arder"... de irritação! De manhã, à tarde, à noite... ou de madrugada, a TVI está lá! Como se isso fizesse alguma diferença. Ora cá está o mapa que todos os incendiários estavam à espera! Aproveitem, rapazes, que o dia hoje 'tá maravilha!

1. Eu não queria falar neste tema tão desinteressante, mas há coisas que há muito tempo já passaram os limites da decência e do bom-senso. Refiro-me à cobertura dada pelas televisões nacionais aos incêndios florestais. Reflexo de um ano extraordinariamente seco, as primeiras reportagens aconteceram logo em Janeiro ou Fevereiro, mas, nos últimos três ou quatro meses, poucos terão sido os dias em que não passou o mesmo filme na abertura dos noticiários da TV. Dia após dia embarcam naquelas reportagens sem assunto, sobre incêndios "circunscritos" e "por circunscrever", da contabilização da área ardida, dos "24 carros de bombeiros, 223 homens e 4 meios aéreos que combatem as chamas" (e eu estava convencido que os "meios" não se contavam; que só os aviões e helicópteros se podiam contar). Depois passam para outro ponto do país e mais uma variação das mesmas imagens e dos mesmos clichés: "o fogo que lavra", o "pasto das chamas", as "projecções de fogo", o "efeito de chaminé", os "soldados da paz" e outros que tais. Sempre que possível (normalmente quando o fogo cerca as aldeias) fazem questão de mostrar a dor das pessoas atingidas nos seus bens, as casas a arder, os animais carbonizados, os telhados a ruir no meio das labaredas. Só faltou mesmo a tradicional pergunta, "Então, o que é que sente?" E esta imbecilidade continua por 20, 30 ou mais minutos, preenchidos por imagens dantescas mas sempre iguais; enviados a reportar em directo o desespero das pessoas que tentam apagar um inferno com baldes de água; entrevistas com bombeiros exaustos que falam do incêndio que voltou a atear às 4 horas da madrugada, precisamente depois de ter sido declarado extinto e logo após os homens terem ido embora; do fogo com várias frentes que se iniciou com "focos simultâneos"; de "ignições", "rescaldos" e outros termos do jargão bombeirista, da possibilidade de "mão criminosa". O catálogo de horrores vai desfilando interminavelmente, semana após semana, num espectáculo televisivo de mau gosto que marca os noticiários. Uma das inovações, este ano, é mostrar-nos aquele mapa dividido em distritos coloridos de acordo com o risco de incêndio; "máximo", dizem eles, ou "muito elevado". E pergunto: significa isto que, se eu for incendiário, tenho mais hipóteses de ter um fogo bem sucedido naquelas regiões? Ou já não há dinheiro para enviar faxes ou telefonemas aos guardas florestais, que, imagino, se devem sentar frente ao televisor à espera daquele momento com a ansiedade de quem aguarda o sorteio do euromilhões... Em Espanha, as televisões deixaram de transmitir imagens de chamas. 2. Numa das últimas segundas-feiras em que o António Vitorino foi entrevistado depois do telejornal, José Rodrigues dos Santos, perguntou-lhe se não achava que o Governo devia proibir esse tipo de imagens na televisão. Vitorino, demasiado inteligente para se deixar apanhar na ratoeira, disse que essa questão devia ser debatida pelas próprias televisões, e que elas mesmas deviam tomar uma decisão sobre o problema, sem interferência alguma do Governo. Como não conseguiu arrastar a conversa para onde queria, JRS, antes de mudar de assunto, disse que não existiam estudos a provar que a não-transmissão de imagens do fogo levasse a uma diminuição do número de incêndios; (penso que também não existem estudos que apontem o contrário). Vitorino argumentou que qualquer psicólogo concordará que o exemplo visto na televisão pode servir de incentivo à prática de acções semelhantes por indivíduos que tenham essa predisposição. JRS disse também que, segundo as estastísticas, só 5% dos incêndios são ateados deliberadamente; os restantes 95% devem-se a descuidos (e a combustão espontânea, suponho, porque já me parece negligência a mais). Se estes números fossem reais, discutir se devem ou não passar imagens de fogo na TV seria uma questão puramente académica. Mas porquê este número cabalístico dos 5%? Porque não 15 ou 25? Ou talvez mais, bastante mais? Porquê tanto "descuido" apesar das coincidências suspeitas? Porque quando toca a receber dinheiro europeu do fundo destinado a calamidades, os danos causados por fogos de origem criminosa não são considerados - e cá a gente pode ser parola, mas não é estúpida... JRS recordou igualmente que em 1991 a RTP não deu imagens de incêndios. E como não resultou, em 1992 voltaram à tradição, certo? Errado. Em 1992 apareceu a SIC e no ano seguinte a TVI; com a lógica do "quanto mais pior, melhor" em movimento, a RTP não se podia deixar ficar para trás. 3. A pergunta que se coloca agora é, pura e simplesmente, esta: será isto inevitável? Se a resposta é sim, então deixem arder todas as florestas rapidamente, para ver se passamos ao próximo tema. Que o interior do país fique transformado num prado gigantesco, onde as vacas e as cabras possam pastar à vontade sem árvores a estorvar. Quantos metros quadrados de arvoredo se consegue vigiar por concelho, ou por corporação de bombeiros? Derrubem-se as árvores até esse limite, imprimam-se livros feitos com a sua celulose, trate-se bem dos jardins botânicos que restarem e não me falem mais em incêndios! Se a resposta é não, então o caso é diferente, porque temos de ver a quem aproveitam os fogos. Não partilho da teoria dos conspiradores e terroristas do tição, nem dos archotes caídos do céu, nem dos piromaníacos que atacam cada vez que voltamos as costas, a mando de interesses obscuros e inominados. Os indivíduos detidos pela polícia (e são muitos todos os anos, pelo que se pode definir um perfil do incendiário) são geralmente atrasados mentais, inimputáveis, bêbados ou vândalos que gostam de contemplar o espectáculo e os meios em acção, ou pequenos "orcs" movidos pela vingança ou outros sentimentos baixos; nunca os criminosos sofisticados dos mitos urbanos. Mas, depois do fogo pegar, faz-me impressão que os meios de combate sejam comercializados por empresas privadas, que as aeronaves sejam pagas à hora de voo, independentemente da sua eficácia. Sem pretender lançar suspeitas infundadas, nem generalizar injustamente, penso que seria vantajoso se só ao Estado fosse permitido comprar e vender material de combate a incêndios destinado a ser utilizado em território nacional e, obviamente, todas as aeronaves utilizadas para o mesmo fim teriam de pertencer à Força Aérea, a quem caberia exclusivamente essa missão. Constata-se afinal que, se (quase) não houvesse incêndios, determinadas empresas teriam talvez de fechar as portas. E recorda-se o lema do cangalheiro, "eu não quero que ninguém morra, mas quero que a vida me corra". A. Stonefield - 23.ago.2005 .

marcar artigo