rui a.

29-09-2009
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Considero o filme Ninfomaníaca, vol. 1, de Lars von Trier, que ontem vi no cinema, de longe o filme mais admirável que vi em muitos anos. Esclareço, de imediato e para que não surjam quaisquer equívocos, que, para mim, a 7ª Arte é uma forma de simples entretenimento e que tenho um preconceito de princípio em relação aos filmes “de mensagem”, habitualmente vindos da Europa e muito especialmente de França, que costumo cautelosamente evitar. Com esta predisposição, com a campanha de marketing que tem vindo a promover o filme (e cuja ironia só se compreende depois de o ter visto, apesar do explícito aviso: “Forget about love”…) e com algumas críticas de cinema (que, felizmente, só li depois, mas para as quais advirto os leitores) que qualificam Ninfomaníaca, vol. 1 como “o filme erótico de von Trier”, quando nele não existe um só momento de erotismo, tudo levaria a crer que não permaneceria na sala de projecção muito mais do que o primeiro quarto de hora do filme, atitude a que a idade me aconselhou quando – quase sempre – percebo que nada justifica que permaneça mais tempo numa sala às escuras, cheia de ruidosos comedores de pipocas.

O filme de Lars von Trier é um filme sobre o mal. O mal mais profundo e diabólico que se pode conceber: a auto-destruição da pessoa, do seu eu interior e da sua humanidade, ou, se quiserem, a rejeição da alma e da esperança de redenção pela vontade explícita, consciente e incondicional da própria vítima. É, por conseguinte, um processo de diabolismo muito mais complexo do que, por exemplo, a simples venda da alma ao diabo em troca de compensações materiais, que encontramos no Fausto de Goethe. Aqui, no filme de Trier, a adesão ao mal é a entrega incondicional ao mal em si mesmo, sem qualquer compensação, sem negociação, sem promessa de vãs glórias terrenas ou de bens efémeros. É a destruição voluntária do próprio ser, sem nada em troca.

A história – da qual, note-se, ainda conhecemos apenas a primeira de duas partes – apresenta-nos uma mulher de cinquenta anos em estado de profunda decadência física – Joe -, que conta uma história pessoal de vida dedicada à prática constante de sexo, vício que a ciência médica rotula comumente de “ninfomanía”. Todavia, a própria Joe adverte o seu interlocutor que a história que vai contar é de natureza “moral” (e não exatamente um relato de peripécias sexuais) e que ela é “um ser horrível” (conclusão que carece da segunda parte do filme para verificação).

Ainda na adolescência, depois de, com apenas quinze anos, ter entregado a sua virgindade, a seu pedido, a um quase estranho, de uma forma absolutamente crua e integralmente isenta de qualquer sentimentalidade (“queria ver-me livre dela”), Joe e uma amiga iniciam uma odisseia sexual numa viagem de comboio, durante a qual provocam relações sexuais com um número infindável de homens. Os termos da competição, que ambas queriam que fosse, depois, um princípio orientador de vida, eram apenas dois: ter sexo sem amor e não repetir o acto sexual com qualquer um dos parceiros. O prémio para quem ganhasse o desafio era um saco de chocolates de duvidosa qualidade, que ambas partilharam desdenhosamente no fim da viagem.

Ao longo dos anos, Joe mantém-se fiel aos seus compromissos, melhor dizendo, aos seus votos, fazendo sexo com infindáveis parceiros, nunca repetindo nenhum. Quando o seu pai morre após um longo calvário de sacrifício, dor e isolamento hospitalar, que ela acompanhou (o que permite manter alguma esperança a seu respeito), Joe estupra dois ou três enfermeiros a sangue frio, ainda no hospital. Quando algum homem começa a manifestar sentimentos por ela, rapidamente o abandona. No dia em que a mulher de um seu amante e os seus três filhos crianças lhe comunicam pessoalmente a tragédia da separação que ela involuntariamente causou, Joe reage com frieza e desconsidera a todos. E, no momento em que a sua parceira de aventura no comboio, mais adulta e aparentemente envolvida sentimentalmente com alguém, lhe segreda que “o segredo do sexo é o amor”, Joe volta-lhe as costas, renega-lhe a amizade e não se dispõe a voltar a vê-la.

O caminho de Joe é, assim, o do desamor, o de renegar o princípio mais elementar da vida humana, que a mensagem cristã confirmou como o modo que os homens têm ao seu alcance para ascenderem a Deus. Joe escolheu, sem ter pedido nada em troca, nem sequer o prazer sexual comum, que ela nunca tem nem tenta conseguir, destruir a sua persona e o que há de humano e de divino em si mesma. E que melhor maneira de o fazer do que a utilização invertida da máxima expressão do amor que é a sexualidade, a que, de resto, o satanismo e o ocultismo se dedicam com as práticas de “magia sexual”, banalizando-a ao seu máximo expoente, retirando-lhe qualquer dimensão amorosa, de afecto, ou sequer lúdica?

O diabolismo funda-se, como é sabido, na exaltação do homem sem transcendência. No homem que se sobeja a si mesmo, e que, por isso, prescinde de Deus. Do homem que nega a sua própria alma e que se desumaniza pela exaltação absoluta de si próprio (por isto é que se torna necessária alguma cautela com certas leituras de Rand…), fonte ilimitada de potência e racionalidade iluminada, que não carece de Deus para se alcançar. No final, este “homem soberano” não é mais do que uma besta vulgar, consumando-se assim a destruição da obra maior de Deus: o Homem.

O diabolismo está, aliás, bem presente em todo o filme de Trier. Desde a música heavy metal de abertura e de encerramento do filme da banda Rammstein, passando por referências ao ocultismo das composições de Bach, ou ao significado esotérico, e também ocultista da sequência de Fibonnaci, o diabolus in musica que conduzia ao extâse que permitia chegar ao mestre. Ninfomaníaca, vol.1 não é, como disparatadamente se lê por aí, um filme sobre sexo ou sequer sobre a sexualidade descontrolada, mas uma obra que descreve a mais eficaz e tentadora via luciferina de destruição do amor.

Tudo isto está bem patente no filme de Trier (e julgo mesmo ter visto, logo no começo do filme, no canto inferior direito, um pequeno tridente luminoso, que julgo não ter sido sugestão, por não saber ainda, nessa altura, do que tratava o filme), e este é o caminho luciferino seguido por Joe. Na segunda parte do filme saberemos se ela se conseguiu desviar do abismo, se alguma vez pretendeu fazê-lo (a tentativa de envolvimento amoroso com o seu primeiro amante leva a crer que sim, embora o resultado tenha sido infrutífero, porque o filme termina com o seu grito de angústia e revolta, em plena relação carnal com ele, dizendo que nada estava a sentir), ou se, pelo contrário, ela é a encarnação do mal em si mesmo.

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Considero o filme Ninfomaníaca, vol. 1, de Lars von Trier, que ontem vi no cinema, de longe o filme mais admirável que vi em muitos anos. Esclareço, de imediato e para que não surjam quaisquer equívocos, que, para mim, a 7ª Arte é uma forma de simples entretenimento e que tenho um preconceito de princípio em relação aos filmes “de mensagem”, habitualmente vindos da Europa e muito especialmente de França, que costumo cautelosamente evitar. Com esta predisposição, com a campanha de marketing que tem vindo a promover o filme (e cuja ironia só se compreende depois de o ter visto, apesar do explícito aviso: “Forget about love”…) e com algumas críticas de cinema (que, felizmente, só li depois, mas para as quais advirto os leitores) que qualificam Ninfomaníaca, vol. 1 como “o filme erótico de von Trier”, quando nele não existe um só momento de erotismo, tudo levaria a crer que não permaneceria na sala de projecção muito mais do que o primeiro quarto de hora do filme, atitude a que a idade me aconselhou quando – quase sempre – percebo que nada justifica que permaneça mais tempo numa sala às escuras, cheia de ruidosos comedores de pipocas.

O filme de Lars von Trier é um filme sobre o mal. O mal mais profundo e diabólico que se pode conceber: a auto-destruição da pessoa, do seu eu interior e da sua humanidade, ou, se quiserem, a rejeição da alma e da esperança de redenção pela vontade explícita, consciente e incondicional da própria vítima. É, por conseguinte, um processo de diabolismo muito mais complexo do que, por exemplo, a simples venda da alma ao diabo em troca de compensações materiais, que encontramos no Fausto de Goethe. Aqui, no filme de Trier, a adesão ao mal é a entrega incondicional ao mal em si mesmo, sem qualquer compensação, sem negociação, sem promessa de vãs glórias terrenas ou de bens efémeros. É a destruição voluntária do próprio ser, sem nada em troca.

A história – da qual, note-se, ainda conhecemos apenas a primeira de duas partes – apresenta-nos uma mulher de cinquenta anos em estado de profunda decadência física – Joe -, que conta uma história pessoal de vida dedicada à prática constante de sexo, vício que a ciência médica rotula comumente de “ninfomanía”. Todavia, a própria Joe adverte o seu interlocutor que a história que vai contar é de natureza “moral” (e não exatamente um relato de peripécias sexuais) e que ela é “um ser horrível” (conclusão que carece da segunda parte do filme para verificação).

Ainda na adolescência, depois de, com apenas quinze anos, ter entregado a sua virgindade, a seu pedido, a um quase estranho, de uma forma absolutamente crua e integralmente isenta de qualquer sentimentalidade (“queria ver-me livre dela”), Joe e uma amiga iniciam uma odisseia sexual numa viagem de comboio, durante a qual provocam relações sexuais com um número infindável de homens. Os termos da competição, que ambas queriam que fosse, depois, um princípio orientador de vida, eram apenas dois: ter sexo sem amor e não repetir o acto sexual com qualquer um dos parceiros. O prémio para quem ganhasse o desafio era um saco de chocolates de duvidosa qualidade, que ambas partilharam desdenhosamente no fim da viagem.

Ao longo dos anos, Joe mantém-se fiel aos seus compromissos, melhor dizendo, aos seus votos, fazendo sexo com infindáveis parceiros, nunca repetindo nenhum. Quando o seu pai morre após um longo calvário de sacrifício, dor e isolamento hospitalar, que ela acompanhou (o que permite manter alguma esperança a seu respeito), Joe estupra dois ou três enfermeiros a sangue frio, ainda no hospital. Quando algum homem começa a manifestar sentimentos por ela, rapidamente o abandona. No dia em que a mulher de um seu amante e os seus três filhos crianças lhe comunicam pessoalmente a tragédia da separação que ela involuntariamente causou, Joe reage com frieza e desconsidera a todos. E, no momento em que a sua parceira de aventura no comboio, mais adulta e aparentemente envolvida sentimentalmente com alguém, lhe segreda que “o segredo do sexo é o amor”, Joe volta-lhe as costas, renega-lhe a amizade e não se dispõe a voltar a vê-la.

O caminho de Joe é, assim, o do desamor, o de renegar o princípio mais elementar da vida humana, que a mensagem cristã confirmou como o modo que os homens têm ao seu alcance para ascenderem a Deus. Joe escolheu, sem ter pedido nada em troca, nem sequer o prazer sexual comum, que ela nunca tem nem tenta conseguir, destruir a sua persona e o que há de humano e de divino em si mesma. E que melhor maneira de o fazer do que a utilização invertida da máxima expressão do amor que é a sexualidade, a que, de resto, o satanismo e o ocultismo se dedicam com as práticas de “magia sexual”, banalizando-a ao seu máximo expoente, retirando-lhe qualquer dimensão amorosa, de afecto, ou sequer lúdica?

O diabolismo funda-se, como é sabido, na exaltação do homem sem transcendência. No homem que se sobeja a si mesmo, e que, por isso, prescinde de Deus. Do homem que nega a sua própria alma e que se desumaniza pela exaltação absoluta de si próprio (por isto é que se torna necessária alguma cautela com certas leituras de Rand…), fonte ilimitada de potência e racionalidade iluminada, que não carece de Deus para se alcançar. No final, este “homem soberano” não é mais do que uma besta vulgar, consumando-se assim a destruição da obra maior de Deus: o Homem.

O diabolismo está, aliás, bem presente em todo o filme de Trier. Desde a música heavy metal de abertura e de encerramento do filme da banda Rammstein, passando por referências ao ocultismo das composições de Bach, ou ao significado esotérico, e também ocultista da sequência de Fibonnaci, o diabolus in musica que conduzia ao extâse que permitia chegar ao mestre. Ninfomaníaca, vol.1 não é, como disparatadamente se lê por aí, um filme sobre sexo ou sequer sobre a sexualidade descontrolada, mas uma obra que descreve a mais eficaz e tentadora via luciferina de destruição do amor.

Tudo isto está bem patente no filme de Trier (e julgo mesmo ter visto, logo no começo do filme, no canto inferior direito, um pequeno tridente luminoso, que julgo não ter sido sugestão, por não saber ainda, nessa altura, do que tratava o filme), e este é o caminho luciferino seguido por Joe. Na segunda parte do filme saberemos se ela se conseguiu desviar do abismo, se alguma vez pretendeu fazê-lo (a tentativa de envolvimento amoroso com o seu primeiro amante leva a crer que sim, embora o resultado tenha sido infrutífero, porque o filme termina com o seu grito de angústia e revolta, em plena relação carnal com ele, dizendo que nada estava a sentir), ou se, pelo contrário, ela é a encarnação do mal em si mesmo.

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