João Luís Pinto

23-05-2009
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Donald Trump afirmou famosamente que “poderia estar no meio da 5ª Avenida e matar alguém, que não perderia eleitores”. Na passada sexta-feira pudemos constatar que o sentimento de impunidade e de irresponsabilidade que trespassa a Justiça e que anima os seus actores sustenta nestes a mesma maneira de pensar.

Depois do que sucedeu na sexta-feira passada, a leitura do despacho instrutório da Operação Marquês, não sobrou nenhum actor da Justiça que tivémos incólume.

Não sobreviveu o Ministério Público, consubstanciando-se a constatação de longa data de que este prepara más acusações, sustentadas com recurso a indícios de fraco valor probatório, adquiridos muitas vezes em violação e desrespeito consciente dos direitos dos arguidos, e aparentemente não esclarecido de que a sua maneira de proceder inquina à partida os processos em que se envolve. Um Ministério Público que se eterniza nos inquéritos, que se considera superior a prazos estabelecidos e cuja actuação, que supostamente é vocacionada para o “apuramento” da Verdade – o que lhe vale aliás a prerrogativa de se sentar na bancada do juiz em tribunal – se pauta mais por uma acção de bully virada para uma vocação adversarial, sem que para tal se submeta ao conjunto de regras que dessa maneira lhe deveria ser imposto. Urge esclarecer qual é afinal o carácter e a vocação do Ministério Público: se é a de um inquisidor virado para o apuramento da verdade, afinal aquele papel que supostamente deveria ter de acordo com o ordenamento português, ou se quer ter uma vocação adversarial – que faria mais sentido tendo em conta a sua actuação – e quais serão as novas regras a que se terá que submeter por esse facto.

Não sobreviveu o juiz de instrução durante o inquérito. Este, supostamente o provedor do arguido durante o inquérito, parece ter sido mais um garante de cobertura às acções do MP do que propriamente alguém preocupado com o cumprimento das regras do Código de Processo Penal (CPP) e com os meios que foram utilizados para os fins da aquisição de prova. Importa se calhar pensar nos efeitos que a proximidade entre juízes de instrução e procuradores tem sobre a acção destes, a começar pela proximidade física.

Essa proximidade física é um sinal de mais uma das vítimas do processo, o Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), vulgo TICão. A existência de um tribunal de instrução vocacionada para um determinado conjunto de processos, caricaturalmente titulado por dois juízes de instrução, é um absurdo violador do princípio do juiz natural – com os seus brutalmente aleatórios sorteios entre duas pessoas – com os qual toda a estrutura da magistratura judicial parece conviver estranhamente bem. Toda não, já que os próprios juízes em causa parecem estar desavindos e particularmente empenhados em tomar iniciativas um contra o outro, nomeadamente através da sua participação nos processos.

Também não sobreviveu o juiz de Instrução Ivo Rosa. Não sobreviveu porque em primeiro lugar pareceu não compreender o papel que lhe é reservado pelo processo penal e não soube ocupar o seu devido lugar. A instrução, segundo o CPP, pressupõe uma análise da acusação numa fase em que a mesma se encontra sustentada por indícios – não por provas – , sendo que a produção destas últimas está reservada (a menos de excepções bem determinadas) para a audiência caso os arguidos sejam pronunciados. A instrução preocupa-se, ainda de acordo com o CPP, essencialmente em fazer um juízo probabilístico sobre se os indícios apurados poderão vir a redundar numa condenação em tribunal. O CPP nem sequer pressupõe que os indícios que são apresentados à instrução sejam completos, e tolera até um certo grau de erros e de vícios, sujeitos tão somente ao risco de não serem considerados suficientes para a pronúncia

Ora o Juiz de Instrução Ivo Rosa aparentemente entreteve-se durante os dois anos em que esteve a conduzir a instrução do processo e durante grande parte do próprio despacho de instrução a dissertar e a fazer uma análise substantiva da prova. Por alguma razão que com certeza lhe assiste ocupou-se a fazer uma análise dos indícios apresentados tal como se de prova se tratassem, julgando essa prova praticamente como se estivesse a analisar que factos é que eram segundo ele dados como provados ou não-provados. Para prova que teria que ser pela Lei feita novamente em audiência, e aí sim os factos dados como provados ou não e aferida a culpa dos arguidos, o juiz Ivo Rosa ocupou-se pelas suas razões a fazer um autêntico “pré-julgamento”, parecendo querer deixar somente para os seu colegas que viessem a julgar posteriormente o caso (por redundância) o tarefa de lavrarem a sentença. Entretanto, ocupou-se também durante o tempo em que demorou a instrução a alimentar as suas picardias pessoais com o seu colega de TCIC (como vimos, um de dois) e em aplicar na avaliação dos indícios, nomeadamente em termos de admissibilidade, critérios que revogavam decisões tomadas por tribunais superiores ou que já foram em situações passadas revertidos por estes em várias circunstâncias.

O que é comum a todos estes agentes? A total irresponsabilidade e impunidade em relação à sua actuação no processo no que toca às obrigações e ao papel que lhes é imputado pelo CPP. Pela legislação vigente, todos eles são inimputáveis pela qualidade e adequação das suas decisões e pela condução do processo, quer cível, quer disciplinarmente ou muito menos criminalmente. A latitude da sua intervenção é completa, sem nenhum meio que permita aos visados activá-los judicialmente pela sua conduta e pelos resultados desta. O Juiz Ivo Rosa e os procuradores do MP podem dormir com o descanso que somente está disponível aos que estão livres de qualquer responsabilidade no exercício da sua profissão.

Todos este processo e o seu presente estado obrigam inevitavelmente a repensar todo o sistema de Justiça. Obrigam a pensar sobre se faz algum sentido manter a instrução de processos quando os pressupostos que presidiram à sua criação já não parecem estar minimamente em vigor ou ser a razão para que existe. A pensar sobre se não faz sentido considerar prova a prova (nomeadamente a testemunhal) que é feita durante a investigação e o inquérito que é feita perante ou com a participação do juiz de instrução que acompanha o processo. Sobre quais são os tempos e os recursos disponíveis para os diversos incidentes processuais que podem ser levantados.

Estes problemas não se resolvem com petições absurdas como a que circula em relação ao juiz Ivo Rosa. Esse será mais um sintoma do que a solução. Um sintoma de que ou o estado faz por rever a Justiça de forma a torna-la entendível, eficiente e justa aos olhos do cidadão médio, ou corre-se seriamente o risco de que este comece a considerar mais “justa” a que é feita pelas suas próprias mãos e pelo entendimento da turba do que a que é outorgada ao estado para fazer em seu nome.

Donald Trump afirmou famosamente que “poderia estar no meio da 5ª Avenida e matar alguém, que não perderia eleitores”. Na passada sexta-feira pudemos constatar que o sentimento de impunidade e de irresponsabilidade que trespassa a Justiça e que anima os seus actores sustenta nestes a mesma maneira de pensar.

Depois do que sucedeu na sexta-feira passada, a leitura do despacho instrutório da Operação Marquês, não sobrou nenhum actor da Justiça que tivémos incólume.

Não sobreviveu o Ministério Público, consubstanciando-se a constatação de longa data de que este prepara más acusações, sustentadas com recurso a indícios de fraco valor probatório, adquiridos muitas vezes em violação e desrespeito consciente dos direitos dos arguidos, e aparentemente não esclarecido de que a sua maneira de proceder inquina à partida os processos em que se envolve. Um Ministério Público que se eterniza nos inquéritos, que se considera superior a prazos estabelecidos e cuja actuação, que supostamente é vocacionada para o “apuramento” da Verdade – o que lhe vale aliás a prerrogativa de se sentar na bancada do juiz em tribunal – se pauta mais por uma acção de bully virada para uma vocação adversarial, sem que para tal se submeta ao conjunto de regras que dessa maneira lhe deveria ser imposto. Urge esclarecer qual é afinal o carácter e a vocação do Ministério Público: se é a de um inquisidor virado para o apuramento da verdade, afinal aquele papel que supostamente deveria ter de acordo com o ordenamento português, ou se quer ter uma vocação adversarial – que faria mais sentido tendo em conta a sua actuação – e quais serão as novas regras a que se terá que submeter por esse facto.

Não sobreviveu o juiz de instrução durante o inquérito. Este, supostamente o provedor do arguido durante o inquérito, parece ter sido mais um garante de cobertura às acções do MP do que propriamente alguém preocupado com o cumprimento das regras do Código de Processo Penal (CPP) e com os meios que foram utilizados para os fins da aquisição de prova. Importa se calhar pensar nos efeitos que a proximidade entre juízes de instrução e procuradores tem sobre a acção destes, a começar pela proximidade física.

Essa proximidade física é um sinal de mais uma das vítimas do processo, o Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), vulgo TICão. A existência de um tribunal de instrução vocacionada para um determinado conjunto de processos, caricaturalmente titulado por dois juízes de instrução, é um absurdo violador do princípio do juiz natural – com os seus brutalmente aleatórios sorteios entre duas pessoas – com os qual toda a estrutura da magistratura judicial parece conviver estranhamente bem. Toda não, já que os próprios juízes em causa parecem estar desavindos e particularmente empenhados em tomar iniciativas um contra o outro, nomeadamente através da sua participação nos processos.

Também não sobreviveu o juiz de Instrução Ivo Rosa. Não sobreviveu porque em primeiro lugar pareceu não compreender o papel que lhe é reservado pelo processo penal e não soube ocupar o seu devido lugar. A instrução, segundo o CPP, pressupõe uma análise da acusação numa fase em que a mesma se encontra sustentada por indícios – não por provas – , sendo que a produção destas últimas está reservada (a menos de excepções bem determinadas) para a audiência caso os arguidos sejam pronunciados. A instrução preocupa-se, ainda de acordo com o CPP, essencialmente em fazer um juízo probabilístico sobre se os indícios apurados poderão vir a redundar numa condenação em tribunal. O CPP nem sequer pressupõe que os indícios que são apresentados à instrução sejam completos, e tolera até um certo grau de erros e de vícios, sujeitos tão somente ao risco de não serem considerados suficientes para a pronúncia

Ora o Juiz de Instrução Ivo Rosa aparentemente entreteve-se durante os dois anos em que esteve a conduzir a instrução do processo e durante grande parte do próprio despacho de instrução a dissertar e a fazer uma análise substantiva da prova. Por alguma razão que com certeza lhe assiste ocupou-se a fazer uma análise dos indícios apresentados tal como se de prova se tratassem, julgando essa prova praticamente como se estivesse a analisar que factos é que eram segundo ele dados como provados ou não-provados. Para prova que teria que ser pela Lei feita novamente em audiência, e aí sim os factos dados como provados ou não e aferida a culpa dos arguidos, o juiz Ivo Rosa ocupou-se pelas suas razões a fazer um autêntico “pré-julgamento”, parecendo querer deixar somente para os seu colegas que viessem a julgar posteriormente o caso (por redundância) o tarefa de lavrarem a sentença. Entretanto, ocupou-se também durante o tempo em que demorou a instrução a alimentar as suas picardias pessoais com o seu colega de TCIC (como vimos, um de dois) e em aplicar na avaliação dos indícios, nomeadamente em termos de admissibilidade, critérios que revogavam decisões tomadas por tribunais superiores ou que já foram em situações passadas revertidos por estes em várias circunstâncias.

O que é comum a todos estes agentes? A total irresponsabilidade e impunidade em relação à sua actuação no processo no que toca às obrigações e ao papel que lhes é imputado pelo CPP. Pela legislação vigente, todos eles são inimputáveis pela qualidade e adequação das suas decisões e pela condução do processo, quer cível, quer disciplinarmente ou muito menos criminalmente. A latitude da sua intervenção é completa, sem nenhum meio que permita aos visados activá-los judicialmente pela sua conduta e pelos resultados desta. O Juiz Ivo Rosa e os procuradores do MP podem dormir com o descanso que somente está disponível aos que estão livres de qualquer responsabilidade no exercício da sua profissão.

Todos este processo e o seu presente estado obrigam inevitavelmente a repensar todo o sistema de Justiça. Obrigam a pensar sobre se faz algum sentido manter a instrução de processos quando os pressupostos que presidiram à sua criação já não parecem estar minimamente em vigor ou ser a razão para que existe. A pensar sobre se não faz sentido considerar prova a prova (nomeadamente a testemunhal) que é feita durante a investigação e o inquérito que é feita perante ou com a participação do juiz de instrução que acompanha o processo. Sobre quais são os tempos e os recursos disponíveis para os diversos incidentes processuais que podem ser levantados.

Estes problemas não se resolvem com petições absurdas como a que circula em relação ao juiz Ivo Rosa. Esse será mais um sintoma do que a solução. Um sintoma de que ou o estado faz por rever a Justiça de forma a torna-la entendível, eficiente e justa aos olhos do cidadão médio, ou corre-se seriamente o risco de que este comece a considerar mais “justa” a que é feita pelas suas próprias mãos e pelo entendimento da turba do que a que é outorgada ao estado para fazer em seu nome.

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