A outra Varinha Mágica: Sobre o apelo à autocensura

20-05-2009
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"(...) Mas o caminho da ignorância é o mesmo caminho das ditaduras. Ao contrário do que parece ter sugerido, há dias, José Miguel Júdice, na RTP, a democracia e a liberdade constroem-se com a interrogação, com a dúvida, até mesmo com a suspeita e, finalmente, com a verdade.Não é ao contrário."ler post relacionadoA questão da censura não é um assunto do passado. Para mim, é um assunto do presente do qual tenho vindo a falar e a escrever há muito tempo. Evidentemente, não conheço hoje “lápis azuis”. Mas há pior do que o “lápis azul”: a autocensura. Essa existe, prolifera e é bem mais castradora do que a original.Permitam-me contar-lhes uma história que se passou comigo há mais de 10 anos, era eu chefe de redacção do jornal Motor, especializado em automobilismo, e tinha ido cobrir a realização de um rali do Campeonato da Europa – o Rali da Madeira.Tratava-se de uma das melhores provas realizadas em Portugal e mesmo na Europa, no que diz respeito aos ralis, sendo fortemente apoiada pelo Governo Regional da Madeira. Para quem não conhece a vida do arquipélago, o Rali da Madeira é um dos dois grandes acontecimentos locais.No automobilismo de estrada há sempre risco (ainda que possa ser calculado e minimizado) e haveria de acontecer, nesse ano, um acidente trágico, quando o Peugeot de Adruzilo Lopes perdeu uma roda e entrou em despiste, a alta velocidade. O descontrolo do carro fez com que a sua trajectória se tornasse imprevisível, vindo a atingir vários espectadores, provocando vários feridos e mortos. Ao contrário do que sucede muitas vezes, os espectadores estavam bem colocados e bem longe da pista. Mas a verdade é que o errático Peugeot entrou em capotamento já bem fora de estrada, matando várias pessoas.Eu estava no final dessa classificativa quando chegou o francês Gilles Pannizi, que se seguia a Adruzilo Lopes na estrada e deu conta da gravidade do acidente, pedindo intervenção imediata aos comissários. Contudo, essa intervenção apenas aconteceu muitos minutos depois. No local do acidente, jaziam corpos mutilados, alguns feridos e uma multidão que, depois do choque, tentava encontrar no piloto e no seu navegador (destroçados, também), o escape de uma fúria que começava a crescer.Valeu a ajuda de Pedro Matos Chaves, outro piloto português que retiraria do local os dois competidores. Mas a verdade é que se passaram mais de vinte minutos até que as ambulâncias chegassem ao palco do acidente.No meu papel de jornalista, tentei indagar porque razão a assistência tinha demorado tanto. Foi-me explicado que a organização não quis colocar dentro da pista as ambulâncias, antes que os carros que já tinham entrado para aquele troço terminassem a sua prova, por razões de segurança. O problema é que, além de saber escrever, também sei fazer contas. E por mais contas que fizesse, as minhas eram diferentes das da organização. Pelos meus cálculos, tinham entrado pelo menos mais quatro carros (que significaram 10 minutos) para a pista já depois de Pannizi ter avisado os organizadores e mesmo depois de um espectador/médico, munido de um telemóvel, ter pedido ajuda a partir do próprio local do acidente, como acabei por investigar.Confirmei os meus dados repetindo as contas e cruzando a informação com os testemunhos dos pilotos e dirigi-me para a conferência de imprensa entretanto marcada pela organização. Paulo Fontes era o presidente da Comissão Organizadora do rali e, simultaneamente, destacado dirigente do PSD da Madeira e pessoa próxima de Alberto João Jardim. Começou por lamentar, apresentar condolências e, finalmente, por explicar que a assistência foi pronta e imediata à fatalidade que tinha acontecido.Quando a conferência de imprensa foi aberta às perguntas, confrontei-o com os dados de que dispunha e que provavam que a assistência poderia ter sido mais pronta e que as razões de segurança invocadas não colhiam, pois tinha sido a própria organização quem tinha continuado a deixar entrar carros, mesmo depois do acidente. Paulo Fontes, contudo, em lugar de tentar perceber as minhas razões e a minha legítima dúvida, explicando-se, apenas retorquiu: “a assistência foi imediata e é isso que o senhor tem que escrever”.No final da conferência de imprensa dirigi-me pessoalmente a ele, tentando explicar o meu ponto de vista e compreender o que teria falhado para que em lugar de ambulâncias continuassem a entrar carros de corrida para a pista, mas de Paulo Fontes obtive respostas do género: “tem consciência que o simples facto de levantar essa questão coloca em risco o sucesso e o futuro desta prova e do próprio automobilismo? Mesmo que as ambulâncias entrassem mais cedo, nada adiantaria e fazer perguntas dessas só dá azo a que os detractores da modalidade ganhem razão. Foi um azar e vocês, jornalistas portugueses que gostam de automobilismo, têm que defender o que é nosso. Os que não gostam de automobilismo e querem acabar com isto é que ganham com esse tipo de questão”.Mais tarde, partilhei estes factos com alguns colegas jornalistas, especialistas em automobilismo. Mas quase todos me disseram a mesma coisa: “pois, isso é verdade. Temos que defender o que é nosso, além disso, o que ganhas em dizer a verdade? Que o rali saia do Europeu?”. Houve mesmo alguns que me fizeram questão de lembrar que “tens que pensar que é o Governo Regional que paga as viagens e as estadias aos nossos jornais para virmos cobrir a prova. Vê lá o que escreves, porque para o ano ficas no continente”. E houve mesmo um que me tentou desmotivar dizendo: “os que andam sempre a urdir contra o automobilismo é que te vão agradecer!”Escrevi a verdade, passei as contas ao papel e ilustrei com uma infografia, demonstrando que a assistência foi tardia e que, embora provavelmente não pudesse evitar nenhuma morte, a organização reagiu tarde. E dei aos meus leitores uma informação importante: a classificativa seguinte foi transmitida em directo pelas televisões. Se a anterior tivesse sido neutralizada, como deveria ter sido, não deixando mais nenhum carro entrar para a pista, o compromisso televisivo estaria comprometido.Fui o único jornalista a escrever sobre o assunto, que morreu por ali. Nunca ninguém desmentiu as minhas contas nem nenhum dos factos que publiquei. Mas nunca nenhum outro órgão de comunicação social voltou a pegar na história.O Rali da Madeira não acabou nem foi retirado do calendário europeu e continua hoje a ser o que era. Mas se a minha notícia tivesse ajudado a que a prova fosse penalizada pela Federação Internacional ou a que outro tipo de consequências tivesse tido lugar, nada me pesaria na consciência. Pelo contrário. Ao jornalista não cabe meditar sobre as consequências da sua notícia. Se a notícia é boa ou má para os seus leitores, para os governantes ou para o País, não lhe diz respeito. O único compromisso que o jornalista deve ter é com a verdade e com o interesse público. Aos outros (eventualmente aos que sofrem as consequências da verdade) cabe, depois, explicar e resolver, melhorar, modificar. Ou não, deixar tudo na mesma e serem escrutinados pela opinião pública que é sábia e a quem cabe avaliar se o melhor é repetir o erro ou arriscar com outros. Teria, contudo, ficado um enorme peso na minha consciência se o erro se voltasse a repetir, com consequências idênticas e sem que eu tivesse, alguma vez, escrito a verdade.Ao jornalista, ninguém deu o direito de decidir qual é a informação que melhor serve a coisa pública, a sua corporação, as vítimas ou os culpados ou mesmo, a sua Pátria.A autocensura é muitas vezes vestida de altruísmo e “serviço público”, para que “todos fiquemos melhor”. As “lápides” que se colocam em cima de notícias em nome do interesse nacional nunca podem ser coisas boas e coisas da democracia. Muito menos podem ser desígnios do jornalismo.A verdade é, portanto, a contribuição pura da comunicação social para uma sociedade democrática e moderna. Como nos provou Darwin, só a identificação do erro permite a selecção natural, único caminho para o são desenvolvimento das espécies.Conto esta longa experiência para dizer que anda por aí muito apelo à autocensura. E haverá, até, alguma autocensura. Seja pelo medo de perder “as viagens para a Madeira” ou de “chatear o chefe”, seja pela genuína ideia de que há uma pátria a defender e que a pátria se defende com a mentira ou com a ausência da verdade.Mas o caminho da ignorância é o mesmo caminho das ditaduras. Ao contrário do que parece ter sugerido, há dias, José Miguel Júdice, na RTP, a democracia e a liberdade constroem-se com a interrogação, com a dúvida, até mesmo com a suspeita e, finalmente, com a verdade.Não é ao contrário.


"(...) Mas o caminho da ignorância é o mesmo caminho das ditaduras. Ao contrário do que parece ter sugerido, há dias, José Miguel Júdice, na RTP, a democracia e a liberdade constroem-se com a interrogação, com a dúvida, até mesmo com a suspeita e, finalmente, com a verdade.Não é ao contrário."ler post relacionadoA questão da censura não é um assunto do passado. Para mim, é um assunto do presente do qual tenho vindo a falar e a escrever há muito tempo. Evidentemente, não conheço hoje “lápis azuis”. Mas há pior do que o “lápis azul”: a autocensura. Essa existe, prolifera e é bem mais castradora do que a original.Permitam-me contar-lhes uma história que se passou comigo há mais de 10 anos, era eu chefe de redacção do jornal Motor, especializado em automobilismo, e tinha ido cobrir a realização de um rali do Campeonato da Europa – o Rali da Madeira.Tratava-se de uma das melhores provas realizadas em Portugal e mesmo na Europa, no que diz respeito aos ralis, sendo fortemente apoiada pelo Governo Regional da Madeira. Para quem não conhece a vida do arquipélago, o Rali da Madeira é um dos dois grandes acontecimentos locais.No automobilismo de estrada há sempre risco (ainda que possa ser calculado e minimizado) e haveria de acontecer, nesse ano, um acidente trágico, quando o Peugeot de Adruzilo Lopes perdeu uma roda e entrou em despiste, a alta velocidade. O descontrolo do carro fez com que a sua trajectória se tornasse imprevisível, vindo a atingir vários espectadores, provocando vários feridos e mortos. Ao contrário do que sucede muitas vezes, os espectadores estavam bem colocados e bem longe da pista. Mas a verdade é que o errático Peugeot entrou em capotamento já bem fora de estrada, matando várias pessoas.Eu estava no final dessa classificativa quando chegou o francês Gilles Pannizi, que se seguia a Adruzilo Lopes na estrada e deu conta da gravidade do acidente, pedindo intervenção imediata aos comissários. Contudo, essa intervenção apenas aconteceu muitos minutos depois. No local do acidente, jaziam corpos mutilados, alguns feridos e uma multidão que, depois do choque, tentava encontrar no piloto e no seu navegador (destroçados, também), o escape de uma fúria que começava a crescer.Valeu a ajuda de Pedro Matos Chaves, outro piloto português que retiraria do local os dois competidores. Mas a verdade é que se passaram mais de vinte minutos até que as ambulâncias chegassem ao palco do acidente.No meu papel de jornalista, tentei indagar porque razão a assistência tinha demorado tanto. Foi-me explicado que a organização não quis colocar dentro da pista as ambulâncias, antes que os carros que já tinham entrado para aquele troço terminassem a sua prova, por razões de segurança. O problema é que, além de saber escrever, também sei fazer contas. E por mais contas que fizesse, as minhas eram diferentes das da organização. Pelos meus cálculos, tinham entrado pelo menos mais quatro carros (que significaram 10 minutos) para a pista já depois de Pannizi ter avisado os organizadores e mesmo depois de um espectador/médico, munido de um telemóvel, ter pedido ajuda a partir do próprio local do acidente, como acabei por investigar.Confirmei os meus dados repetindo as contas e cruzando a informação com os testemunhos dos pilotos e dirigi-me para a conferência de imprensa entretanto marcada pela organização. Paulo Fontes era o presidente da Comissão Organizadora do rali e, simultaneamente, destacado dirigente do PSD da Madeira e pessoa próxima de Alberto João Jardim. Começou por lamentar, apresentar condolências e, finalmente, por explicar que a assistência foi pronta e imediata à fatalidade que tinha acontecido.Quando a conferência de imprensa foi aberta às perguntas, confrontei-o com os dados de que dispunha e que provavam que a assistência poderia ter sido mais pronta e que as razões de segurança invocadas não colhiam, pois tinha sido a própria organização quem tinha continuado a deixar entrar carros, mesmo depois do acidente. Paulo Fontes, contudo, em lugar de tentar perceber as minhas razões e a minha legítima dúvida, explicando-se, apenas retorquiu: “a assistência foi imediata e é isso que o senhor tem que escrever”.No final da conferência de imprensa dirigi-me pessoalmente a ele, tentando explicar o meu ponto de vista e compreender o que teria falhado para que em lugar de ambulâncias continuassem a entrar carros de corrida para a pista, mas de Paulo Fontes obtive respostas do género: “tem consciência que o simples facto de levantar essa questão coloca em risco o sucesso e o futuro desta prova e do próprio automobilismo? Mesmo que as ambulâncias entrassem mais cedo, nada adiantaria e fazer perguntas dessas só dá azo a que os detractores da modalidade ganhem razão. Foi um azar e vocês, jornalistas portugueses que gostam de automobilismo, têm que defender o que é nosso. Os que não gostam de automobilismo e querem acabar com isto é que ganham com esse tipo de questão”.Mais tarde, partilhei estes factos com alguns colegas jornalistas, especialistas em automobilismo. Mas quase todos me disseram a mesma coisa: “pois, isso é verdade. Temos que defender o que é nosso, além disso, o que ganhas em dizer a verdade? Que o rali saia do Europeu?”. Houve mesmo alguns que me fizeram questão de lembrar que “tens que pensar que é o Governo Regional que paga as viagens e as estadias aos nossos jornais para virmos cobrir a prova. Vê lá o que escreves, porque para o ano ficas no continente”. E houve mesmo um que me tentou desmotivar dizendo: “os que andam sempre a urdir contra o automobilismo é que te vão agradecer!”Escrevi a verdade, passei as contas ao papel e ilustrei com uma infografia, demonstrando que a assistência foi tardia e que, embora provavelmente não pudesse evitar nenhuma morte, a organização reagiu tarde. E dei aos meus leitores uma informação importante: a classificativa seguinte foi transmitida em directo pelas televisões. Se a anterior tivesse sido neutralizada, como deveria ter sido, não deixando mais nenhum carro entrar para a pista, o compromisso televisivo estaria comprometido.Fui o único jornalista a escrever sobre o assunto, que morreu por ali. Nunca ninguém desmentiu as minhas contas nem nenhum dos factos que publiquei. Mas nunca nenhum outro órgão de comunicação social voltou a pegar na história.O Rali da Madeira não acabou nem foi retirado do calendário europeu e continua hoje a ser o que era. Mas se a minha notícia tivesse ajudado a que a prova fosse penalizada pela Federação Internacional ou a que outro tipo de consequências tivesse tido lugar, nada me pesaria na consciência. Pelo contrário. Ao jornalista não cabe meditar sobre as consequências da sua notícia. Se a notícia é boa ou má para os seus leitores, para os governantes ou para o País, não lhe diz respeito. O único compromisso que o jornalista deve ter é com a verdade e com o interesse público. Aos outros (eventualmente aos que sofrem as consequências da verdade) cabe, depois, explicar e resolver, melhorar, modificar. Ou não, deixar tudo na mesma e serem escrutinados pela opinião pública que é sábia e a quem cabe avaliar se o melhor é repetir o erro ou arriscar com outros. Teria, contudo, ficado um enorme peso na minha consciência se o erro se voltasse a repetir, com consequências idênticas e sem que eu tivesse, alguma vez, escrito a verdade.Ao jornalista, ninguém deu o direito de decidir qual é a informação que melhor serve a coisa pública, a sua corporação, as vítimas ou os culpados ou mesmo, a sua Pátria.A autocensura é muitas vezes vestida de altruísmo e “serviço público”, para que “todos fiquemos melhor”. As “lápides” que se colocam em cima de notícias em nome do interesse nacional nunca podem ser coisas boas e coisas da democracia. Muito menos podem ser desígnios do jornalismo.A verdade é, portanto, a contribuição pura da comunicação social para uma sociedade democrática e moderna. Como nos provou Darwin, só a identificação do erro permite a selecção natural, único caminho para o são desenvolvimento das espécies.Conto esta longa experiência para dizer que anda por aí muito apelo à autocensura. E haverá, até, alguma autocensura. Seja pelo medo de perder “as viagens para a Madeira” ou de “chatear o chefe”, seja pela genuína ideia de que há uma pátria a defender e que a pátria se defende com a mentira ou com a ausência da verdade.Mas o caminho da ignorância é o mesmo caminho das ditaduras. Ao contrário do que parece ter sugerido, há dias, José Miguel Júdice, na RTP, a democracia e a liberdade constroem-se com a interrogação, com a dúvida, até mesmo com a suspeita e, finalmente, com a verdade.Não é ao contrário.

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