angulo recto: «O» prefácio

02-10-2009
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Há uns dias atrás descobri, num alfarrabista de Campo de Ourique, este pequeno livro, editado em 1947, que contém excertos dos «Pensamentos» do imperador romano e filósofo estóico Marco Aurélio. Dei por ele cinco euros.Começa assim o prefácio, escrito por António Sérgio:«Eis-nos no limiar de uma nova Idade, nos momentos aurorais de uma revolução profunda. Mas, revolução de que espécie? Revolução com que intuitos? Com o objectivo de construir uma sociedade justa; com o de fazer-nos transitar da escravidão actual às necessidades imperiosas da vida física - para a assegurada liberdade em relação a elas; com o de lançar os alicerces de uma organização económica que nos permita prosperar sem competir com os demais, sem que um bem para um indivíduo seja um mal para outros; com o de erguer a estrutura de um regime social em que se torne possível a aplicação de um facto (e em todos os actos do nosso existir comum) das máximas de fraternidade e de amor do próximo, removendo os obstáculos à santificação das almas, desprendendo os indivíduos das preocupações pelo futuro, libertando-os do receio, assegurando a paz.A empresa, porém, leva visos talvez de não poder ultimar-se sem esbarrar com resistências que a tornarão impura, por se lhe oporem os que crêem que perderão com ela; e é de temer que não poucos dos seus melhores servidores se vão deixando contaminar pelas paixões da luta, pela obsessão da violência, pela superstição da força; sobretudo que confundam certas condições da justiça (as da organização social, as do regime económico) com a justiça em si mesma e propriamente dita, que é um estado mental e uma disposição do íntimo, uma atitude da consciência, uma harmonização do espírito: e ocorreu-nos a ideia (que muitos capitularão de quimérica, absurdamente ingénua) de que alguns dos seduzidos por esse sonho humano se deveriam consagrar a realizar em si, e em torno de si, o ambiente moral para a sociedade nova, auxiliando a acção dos reformadores políticos por um trabalho modesto de apostolado puro: e como as atitudes morais que cada um adopta estão na estrita dependência de uma orientação filosófica, considerámos oportuna uma colecção de textos a que se desse com propriedade este sobretítulo comum: "manuais de iniciação na vida do espírito". Tal a interpresa que se enceta agora, com uma antologia dos pensamentos de Marco Aurélio» .Li os primeiros parágrafos do prefácio e apaixonei-me pelo livro. Tenho andado com ele na mala, para ler nos «intervalos», rendida à quimera absurdamente ingénua que ele encerra, feliz por descobrir que antes de eu ser nascida existiram homens que assumiram o ridículo propósito de mudar o mundo. Faz-me sentir menos só, e tudo por uns míseros cinco euros.


Há uns dias atrás descobri, num alfarrabista de Campo de Ourique, este pequeno livro, editado em 1947, que contém excertos dos «Pensamentos» do imperador romano e filósofo estóico Marco Aurélio. Dei por ele cinco euros.Começa assim o prefácio, escrito por António Sérgio:«Eis-nos no limiar de uma nova Idade, nos momentos aurorais de uma revolução profunda. Mas, revolução de que espécie? Revolução com que intuitos? Com o objectivo de construir uma sociedade justa; com o de fazer-nos transitar da escravidão actual às necessidades imperiosas da vida física - para a assegurada liberdade em relação a elas; com o de lançar os alicerces de uma organização económica que nos permita prosperar sem competir com os demais, sem que um bem para um indivíduo seja um mal para outros; com o de erguer a estrutura de um regime social em que se torne possível a aplicação de um facto (e em todos os actos do nosso existir comum) das máximas de fraternidade e de amor do próximo, removendo os obstáculos à santificação das almas, desprendendo os indivíduos das preocupações pelo futuro, libertando-os do receio, assegurando a paz.A empresa, porém, leva visos talvez de não poder ultimar-se sem esbarrar com resistências que a tornarão impura, por se lhe oporem os que crêem que perderão com ela; e é de temer que não poucos dos seus melhores servidores se vão deixando contaminar pelas paixões da luta, pela obsessão da violência, pela superstição da força; sobretudo que confundam certas condições da justiça (as da organização social, as do regime económico) com a justiça em si mesma e propriamente dita, que é um estado mental e uma disposição do íntimo, uma atitude da consciência, uma harmonização do espírito: e ocorreu-nos a ideia (que muitos capitularão de quimérica, absurdamente ingénua) de que alguns dos seduzidos por esse sonho humano se deveriam consagrar a realizar em si, e em torno de si, o ambiente moral para a sociedade nova, auxiliando a acção dos reformadores políticos por um trabalho modesto de apostolado puro: e como as atitudes morais que cada um adopta estão na estrita dependência de uma orientação filosófica, considerámos oportuna uma colecção de textos a que se desse com propriedade este sobretítulo comum: "manuais de iniciação na vida do espírito". Tal a interpresa que se enceta agora, com uma antologia dos pensamentos de Marco Aurélio» .Li os primeiros parágrafos do prefácio e apaixonei-me pelo livro. Tenho andado com ele na mala, para ler nos «intervalos», rendida à quimera absurdamente ingénua que ele encerra, feliz por descobrir que antes de eu ser nascida existiram homens que assumiram o ridículo propósito de mudar o mundo. Faz-me sentir menos só, e tudo por uns míseros cinco euros.

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