Rotund@s E Encruzilhad@s: HÁ 61 ANOS NASCIA O “NOSSO” CINEMA PARAÍSO

10-10-2009
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Por: Ricardo Hipólito Corria o ano de 1944 e um amante da 7ª Arte, de nome Joaquim Gomes Prata, requeria a 28 de Março à Inspecção de Espectáculos, um organismo do então Ministério da Educação Nacional “autorização para apresentar os respectivos projectos” relativos à montagem de um cinema e esplanada, visto que “na vila de Alpiarça (...) não existe nenhuma casa ou recintos de espectáculos”.Sobre este interesse ou descoberta de Joaquim Prata (nascido para os lados de Aveiro e a viver em Lisboa) por Alpiarça, um pouco mais adiante se perceberá.Não havia uma sala criada de raíz para cinema mas isso não impedia que desde há bons anos o povo de Alpiarça não se deliciasse com as maravilhas que as fitas transmitiam.Logo no início de 1915 o “Correio da Extremadura” noticiava que em breve se inauguraria um “cine Pathé” em Alpiarça, pela empresa Júlio Carmona & Irmão. Na década de 30 do século passado Júlio Costa e Manuel José Coutinho criavam uma sociedade para “dar” cinema no “Club”, onde mais tarde funcionaria a sede d´Os Águias e antes mesmo deles, um comerciante que viveu cá, um tal Lindinho, também o fez. “A mulher dele ia para lá tocar piano nas fitas mudas. Depois, acabou, foi-se embora, não sei se foi por aquilo ter sido um falhanço ou coisa assim”, contou-nos uma vez Manuel Cadimas.Também no pátio de Raúl Duarte e num barracão do Barreira, próximo da Praça Velha, ambulantes projectavam cinema (para além de companhias de teatro que regularmente por cá apareciam). Diga-se, com grande sucesso. O povo acorria em massa.Um desses ambulantes era Joaquim Prata que, com um seu sobrinho, verificou que em Alpiarça se “faziam boas casas”. Então, por que não avançar para a construção de uma sala de cinema?Se o pensou, assim o fez.Logo no início de Abril de 1944, Óscar de Freitas, o Inspector dos Espectáculos deferia o tal pedido, solicitando a apresentação dos projectos. Passado menos de um ano, Joaquim Prata entregaria na Câmara Municipal o projecto de construção do Cine-Teatro de Alpiarça, de autoria do engenheiro Raúl Subtil e, a 9 de Março de 1945, a autarquia liderada por Manuel José Coutinho deliberava “não se opor à referida construção, por a mesma embelezar o local e este ser próprio para ela”.Iria, pois, o Cine-Teatro ser construído na rua José Relvas (ou Estrada Nacional 13), em propriedades que Manuel Duarte, procurador da sua esposa, Dª Maria da Silva Catarino Duarte, vende com escritura celebrada a 15 Janeiro de 1945.A edificação do recinto de espectáculos calhou em má época. Viviam-se os efeitos económicos da II Guerra Mundial, com a consequente escassez e encarecimento de materiais de construção. Joaquim Prata pretende inaugurá-lo em 31 de Janeiro de 1948, requerendo a respectiva vistoria técnica.A 30 de Janeiro, uma comissão de vistoria da Inspecção dos Espectáculos constituída pelo major de engenharia Luís Viana, vogal da Comissão Técnica daquele organismo, Dr. Mário Romão (subdelegado de saúde), António Gameiro (construtor civil) e António Bonito (dos Bombeiros Municipais de Santarém), era de parecer que poderia “ser franqueado ao público”.A lotação rondava os 500 lugares, divididos em plateias, balcões, frisas e camarotes. As cadeiras, usadas, viriam da Incrível Almadense.A fachada, considerava o autor do projecto, “sem ser grandiosa, (tem) aspecto harmonioso, simples, de linhas que se coadunam bem com a natureza do edifício e de fácil execução”.E assim, faz agora 61 anos, a vila de Alpiarça ficaria dotada de um equipamento cultural que, se é certo, serviria fundamentalmente para a exibição cinematográfica, também permitiu a representação teatral, quer por profissionais, quer por amadores, se bem que em condições que estavam bem longe das ideais.É que, apesar do projecto inicial ter previsto ambivalência (“com palco de dimensões razoáveis, corpo de camarins, instalações sanitárias para artistas de ambos os sexos e cabines de palco para bombeiros e electricista”), certo é que parte do previsto não se veio a concretizar e o palco tinha espaço limitado.Por Alpiarça começam a passar grandes filmes, nomeadamente de produção nacional e que ainda hoje estão na galeria dos sucessos, o que era natural, visto Joaquim Prata ser um grande cinéfilo e estar associado a distribuidores de filmes. Falamos, por exemplo, do “Pai Tirano”, exibido nesta vila ribatejana a 1 de Março de 1949 ou de “Camões”, no dia 26. Ainda naquele ano, o “Leão da Estrela” é por cá visto, assim como o “Ribatejo”, de Henrique Campos, com Vírgilio Teixeira, Eunice Muñoz, Vasco Santana e Hermínia Silva, entre outros. Faria três dias de “casa”, de 15 a 17 de Outubro de 1949, o seu ano de estreia.Logo no início do ano seguinte, seriam exibidos “A canção de Lisboa” e “Amor de Perdição”.Muitos anos depois, em 1972, novo filme de Henrique Campos, “Os Toiros De Mary Foster”, com cenas rodadas em Alpiarça (para as bandas da ponte do Casal Branco) e com figurantes alpiarcenses, nomeadamente elementos do rancho folclórico, era exibido durante uma semana.Para além dos referidos tipos de espectáculos, Joaquim Prata solicitava também licenciamento para variedades, o qual lhe é concedido a 20 de Fevereiro de 1956. É nesta década que Alpiarça recebe “Os Companheiros da Alegria”, formados por Igrejas Caieiro a propósito das chegadas da Volta a Portugal em Bicicleta.Em Alpiarça é criada uma réplica aos “Companheiros”. Foi baptizada como “Os Inimigos da tristeza”. Ao que se conseguiu apurar, tinha como encenador Tó Flor e intervieram, entre outros, Gabriel Pinhão Fidalgo, João Pestana Carlos e Hermes de Carvalho.O recinto ficaria também ligado a grandes espectáculos de ilusionismo, com os professores Âmbar e Ferrari.Ainda na década de 50, Joaquim Prata apresentou o pedido de licenciamento da esplanada, nas traseiras do edíficio, com a lotação de 300 lugares, distribuídos por 19 filas de cadeiras e bancadas. Aí, houve também sessões de cinema e a realização de bailes (abrilhantados por Armando Raya, Dário, Queijeiro, etc.).A tecnologia cinematográfica evoluía e em 1957 é instalado um écrã mais largo. São então retirados lugares e a lotação reduzida. A sala passa a ter apenas 402 assentos.Com a introdução do formato “cinemascope”, a gerência aumenta os bilhetes com a justificação da melhoria do visionamento das fitas (e os consequentes custos). É nessa altura que ocorre um daqueles muitos episódios que caracterizam este tipo de salas. Fernando Almirante recorda-se de um espectador da “geral”, com a fita a caminhar para o fim e num momento de silêncio, gritar alto e bom som, “já fui roubado”. Há grande expectativa na sala, para logo de seguida os presentes serem esclarecidos e ocorrer uma gargalhada geral.“Paguei mais e copos, nada!” É que para aquele espectador, o entendimento do novel formato mais não era que “cinema e copos”. Cinema estava ele a ver, agora copos é que não os avistava!!Ligado à 7ª Arte em Alpiarça esteve também António da Conceição Franco, o “Mouraria”. Começou como curioso, ajudando em tarefas menores Joaquim Prata aquando das suas passagens com cinema ambulante, por aquilo do Duarte. Apurou o gosto pelo cinema e anos mais tarde já projectava os filmes no Cine-Teatro (o primeiro, para além do proprietário, tinha sido António Freilão).Já ele exercia o seu míster quando o piquete dos Bombeiros de Alpiarça lhe pede a respectiva carta profissional. Como não a apresentou, apresentaram eles, a 7 de Março de 1960, uma queixa ao Sindicato Nacional dos Profissionais de Cinema. Viria a tê-la em Maio desse mesmo ano.Muitos leitores, dos projeccionistas, já só se lembram do “Mouraria”. E também das suas “tiradas” ao microfone. Como aquela que será, provavelmente, a mais célebre. Perante grande algazarra na sala, a que nem os soldados da Guarda conseguiam pôr cobro, sai-se com esta “subtil” ordem: “Oh seus cavalos, ou vocês se calam ou não vêem mais o resto do filme”. O “nosso” projeccionista, hoje acamado, ainda se ri com gosto daquela sua tirada.Mas também revelava preocupação em relação à “canalhada”. Eram constantes os seus avisos para se ter cuidado no atravessamento da “rua direita”. O intervalo era curto e, como tínhamos que nos despachar para não perdermos pitada no retomar da fita, parecíamos (e já que estamos numa de equinos) uns garranos doidos a correr para o bar d´Os Águias, para a Brasileira ou para o Café do Gregório, para comermos uma sandes ou um pires de berbigão (do “Sacode”, para mim o melhor que alguma vez comi), bebermos uma Laranjina C ou uma Rical. Alguns já se atiravam à Sumol, um bocado mais cara.Os dias alumiados, para os mais novos, eram uma festa. Começava logo durante a semana, com a correria para as portas do Cinema, para verem os cartazes dos filmes anunciados. Nesses tais dias tínhamos direito a uma ida ao cinema. Ver filmes do Zorro, “Música no Coração” ou o Joselito (“criado” para a arte cinematográfica no final da década de 50) e, alguns anos depois, a Marisol (Pepa Flores). Eram dois ícones do regime franquista. Mais tarde, já com a democracia instaurada em Espanha, Pepa seria militante do Partido Comunista e um dos seus casamentos era apadrinhado por Fidel Castro. Franco deu, concerteza, voltas no túmulo.Eram tempos em que até os documentários prévios ao filme tinham grande relevância. Desde os que, no Portugal “neutral”, enalteciam os feitos dos nazis na II Guerra Mundial, como testemunham cartazes expostos na recente Exposição realizada na “Música” sobre o “nosso” Cinema, até aos que os “irmãos brasileiros” enviavam para os irmãos lusos, com o enaltecimento das grandes obras realizadas no Brasil da ditadura militar, em que o lema oficial era “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Muitos eram obrigados a deixá-lo ... para o exílio.O pior foi quando Joaquim Prata começou a ter dificuldades financeiras e alguns dos referidos filmes de nuestros hermanos começavam a repetir-se Carnaval após Carnaval, Páscoa após Páscoa. Porque até aí a variedade era grande. Dos cómicos, do Charlot ao Bucha e Estica, passando pela dupla dos sicilianos Franco Franchi e Ciccio Ingrassia (décadas de 60 e 70), que assistidos junto ao meu primo Mário João Favas, eram um espectáculo dentro de outro espectáculo, até aos de acção ou westerns (não importava se eram feitos na vizinha Espanha ou em Itália, como o Trinitá, já na década de 70). Quem não se lembra ainda, e por exemplo, das fitas do mitológico Maciste, na Corte de Gran Khan, entre outros? Ou da maré dos filmes de Bruce Lee, com casas cheias (isto já no reinado do último explorador da sala)?Por falar em dificuldades, Albertino Queimadela, colaborador de Joaquim Prata, como marceneiro e, mais tarde, projeccionista ambulante, em recente Tertúlia ocorrida na “Música”, contou que o empresário ao alugar uma fita para uma noite em Alpiarça, conseguia, nessa mesma noite, fazer duas projecções.O esquema era simples. Começava a sessão na nossa terra com uma diferença de 30 a 45 minutos da das Fazendas de Almeirim. Logo que a primeira bobine acabava em Alpiarça, alguém saía “disparado” até às Fazendas para aí a começar a projectar e assim sucessivamente com as restantes.Para quem lidou com Joaquim Gomes Prata, como Albertino Almeirante ou António Franco, é unânime em reconhecer o mérito e o talento daquele homem. Para além de grande empresário do cinema ambulante e criador do Cine-Teatro de Alpiarça, teve ainda um estabelecimento comercial em Lisboa (o Pratafone) e uma habilidade nata para montar equipamentos de som e imagem. “Era uma jóia de homem, um barra em cinema”, assim o caracteriza “Mouraria”.Já no início dos anos 70, o Cine-Teatro de Alpiarça (explorado por António da Silva Diogo) e a actividade cultural ficariam marcados por representações teatrais do Grupo Amador de Teatro de Alpiarça (GATA), que levaria à cena, entre outras, peças de António Aleixo. O recinto enchia-se e Leocádio do Vale faria levantar dos seus assentos os cerca de 400 espectadores (menos o comandante do Posto de Alpiarça da G.N.R., mais ou menos imperturbável no seu camarote) num frenético aplauso, com a recitação do “Melro”, de Guerra Junqueiro. Os alpiarcenses estavam fartos de pássaros fechados em gaiolas.Sem de modo algum querermos ser exaustivos na listagem de outras representações, que fique o registo de, em 9 de Outubro de 1955, o Grupo Cénico Infantil de Alpiarça, tendo como mentor Tó Flor e, numa iniciativa da Conferência de S. Vicente de Paulo a favor da construção de moradias para famílias pobres, ter levado à cena um espectáculo de variedades, danças e cantares do Ribatejo e o “entreacto” cómico “A Tomázia”.Por sua vez, em Agosto de 1962, Aureliano Cravo, em representação da empresa Francisco dos Santos, Ldª, exploradora desde 1959 do Cine-Teatro, requeria à Inspecção de Espectáculos autorização para a realização, de duas sessões no dia 26, de uma récita por amadores infantis de Alpiarça, com um acto de variedades e uma comédia, num acto, da peça “Uma revolta em família”, a qual sofreria um pequeno corte da Comissão de Censura.Em meados da década de 80, o “nosso” Cine-Teatro cessa a actividade, agonizando. Sem que, e já em Democracia, não tivesse deixado de ter casa cheia com a exibição do filme “Chove Em Santiago”, sobre o brutal golpe militar de Pinochet. A pornografia (em determinado momento ainda foi um pequeno balão de oxigénio), a degradação da sala (em conforto e qualidade de exibição), a televisão e o advento do vídeo, ditaram-lhe a morte. Hoje, dezenas de municípios já recuperam os seus velhos “cine paraísos”.E em Alpiarça, uma terra sem uma sala de espectáculos ou de exposições (tal como em 1944), isso virá alguma vez a acontecer? Nota do Autor: Este artigo só foi possível graças à ajuda de várias pessoas e Instituições. Para além das citadas, há ainda a referir a Inspecção-Geral das Actividades Culturais, Torre do Tombo (Arquivo do SNI/DGE), Carlos Pires, Maria de Lurdes Casqueiro e Artur Carvalho. Todos aqueles que queiram partilhar outras vivências e testemunhos fotográficos à volta do Cine-teatro de Alpiarça, disponham.Publicado no Voz de Alpiarça / Janeiro /2009


Por: Ricardo Hipólito Corria o ano de 1944 e um amante da 7ª Arte, de nome Joaquim Gomes Prata, requeria a 28 de Março à Inspecção de Espectáculos, um organismo do então Ministério da Educação Nacional “autorização para apresentar os respectivos projectos” relativos à montagem de um cinema e esplanada, visto que “na vila de Alpiarça (...) não existe nenhuma casa ou recintos de espectáculos”.Sobre este interesse ou descoberta de Joaquim Prata (nascido para os lados de Aveiro e a viver em Lisboa) por Alpiarça, um pouco mais adiante se perceberá.Não havia uma sala criada de raíz para cinema mas isso não impedia que desde há bons anos o povo de Alpiarça não se deliciasse com as maravilhas que as fitas transmitiam.Logo no início de 1915 o “Correio da Extremadura” noticiava que em breve se inauguraria um “cine Pathé” em Alpiarça, pela empresa Júlio Carmona & Irmão. Na década de 30 do século passado Júlio Costa e Manuel José Coutinho criavam uma sociedade para “dar” cinema no “Club”, onde mais tarde funcionaria a sede d´Os Águias e antes mesmo deles, um comerciante que viveu cá, um tal Lindinho, também o fez. “A mulher dele ia para lá tocar piano nas fitas mudas. Depois, acabou, foi-se embora, não sei se foi por aquilo ter sido um falhanço ou coisa assim”, contou-nos uma vez Manuel Cadimas.Também no pátio de Raúl Duarte e num barracão do Barreira, próximo da Praça Velha, ambulantes projectavam cinema (para além de companhias de teatro que regularmente por cá apareciam). Diga-se, com grande sucesso. O povo acorria em massa.Um desses ambulantes era Joaquim Prata que, com um seu sobrinho, verificou que em Alpiarça se “faziam boas casas”. Então, por que não avançar para a construção de uma sala de cinema?Se o pensou, assim o fez.Logo no início de Abril de 1944, Óscar de Freitas, o Inspector dos Espectáculos deferia o tal pedido, solicitando a apresentação dos projectos. Passado menos de um ano, Joaquim Prata entregaria na Câmara Municipal o projecto de construção do Cine-Teatro de Alpiarça, de autoria do engenheiro Raúl Subtil e, a 9 de Março de 1945, a autarquia liderada por Manuel José Coutinho deliberava “não se opor à referida construção, por a mesma embelezar o local e este ser próprio para ela”.Iria, pois, o Cine-Teatro ser construído na rua José Relvas (ou Estrada Nacional 13), em propriedades que Manuel Duarte, procurador da sua esposa, Dª Maria da Silva Catarino Duarte, vende com escritura celebrada a 15 Janeiro de 1945.A edificação do recinto de espectáculos calhou em má época. Viviam-se os efeitos económicos da II Guerra Mundial, com a consequente escassez e encarecimento de materiais de construção. Joaquim Prata pretende inaugurá-lo em 31 de Janeiro de 1948, requerendo a respectiva vistoria técnica.A 30 de Janeiro, uma comissão de vistoria da Inspecção dos Espectáculos constituída pelo major de engenharia Luís Viana, vogal da Comissão Técnica daquele organismo, Dr. Mário Romão (subdelegado de saúde), António Gameiro (construtor civil) e António Bonito (dos Bombeiros Municipais de Santarém), era de parecer que poderia “ser franqueado ao público”.A lotação rondava os 500 lugares, divididos em plateias, balcões, frisas e camarotes. As cadeiras, usadas, viriam da Incrível Almadense.A fachada, considerava o autor do projecto, “sem ser grandiosa, (tem) aspecto harmonioso, simples, de linhas que se coadunam bem com a natureza do edifício e de fácil execução”.E assim, faz agora 61 anos, a vila de Alpiarça ficaria dotada de um equipamento cultural que, se é certo, serviria fundamentalmente para a exibição cinematográfica, também permitiu a representação teatral, quer por profissionais, quer por amadores, se bem que em condições que estavam bem longe das ideais.É que, apesar do projecto inicial ter previsto ambivalência (“com palco de dimensões razoáveis, corpo de camarins, instalações sanitárias para artistas de ambos os sexos e cabines de palco para bombeiros e electricista”), certo é que parte do previsto não se veio a concretizar e o palco tinha espaço limitado.Por Alpiarça começam a passar grandes filmes, nomeadamente de produção nacional e que ainda hoje estão na galeria dos sucessos, o que era natural, visto Joaquim Prata ser um grande cinéfilo e estar associado a distribuidores de filmes. Falamos, por exemplo, do “Pai Tirano”, exibido nesta vila ribatejana a 1 de Março de 1949 ou de “Camões”, no dia 26. Ainda naquele ano, o “Leão da Estrela” é por cá visto, assim como o “Ribatejo”, de Henrique Campos, com Vírgilio Teixeira, Eunice Muñoz, Vasco Santana e Hermínia Silva, entre outros. Faria três dias de “casa”, de 15 a 17 de Outubro de 1949, o seu ano de estreia.Logo no início do ano seguinte, seriam exibidos “A canção de Lisboa” e “Amor de Perdição”.Muitos anos depois, em 1972, novo filme de Henrique Campos, “Os Toiros De Mary Foster”, com cenas rodadas em Alpiarça (para as bandas da ponte do Casal Branco) e com figurantes alpiarcenses, nomeadamente elementos do rancho folclórico, era exibido durante uma semana.Para além dos referidos tipos de espectáculos, Joaquim Prata solicitava também licenciamento para variedades, o qual lhe é concedido a 20 de Fevereiro de 1956. É nesta década que Alpiarça recebe “Os Companheiros da Alegria”, formados por Igrejas Caieiro a propósito das chegadas da Volta a Portugal em Bicicleta.Em Alpiarça é criada uma réplica aos “Companheiros”. Foi baptizada como “Os Inimigos da tristeza”. Ao que se conseguiu apurar, tinha como encenador Tó Flor e intervieram, entre outros, Gabriel Pinhão Fidalgo, João Pestana Carlos e Hermes de Carvalho.O recinto ficaria também ligado a grandes espectáculos de ilusionismo, com os professores Âmbar e Ferrari.Ainda na década de 50, Joaquim Prata apresentou o pedido de licenciamento da esplanada, nas traseiras do edíficio, com a lotação de 300 lugares, distribuídos por 19 filas de cadeiras e bancadas. Aí, houve também sessões de cinema e a realização de bailes (abrilhantados por Armando Raya, Dário, Queijeiro, etc.).A tecnologia cinematográfica evoluía e em 1957 é instalado um écrã mais largo. São então retirados lugares e a lotação reduzida. A sala passa a ter apenas 402 assentos.Com a introdução do formato “cinemascope”, a gerência aumenta os bilhetes com a justificação da melhoria do visionamento das fitas (e os consequentes custos). É nessa altura que ocorre um daqueles muitos episódios que caracterizam este tipo de salas. Fernando Almirante recorda-se de um espectador da “geral”, com a fita a caminhar para o fim e num momento de silêncio, gritar alto e bom som, “já fui roubado”. Há grande expectativa na sala, para logo de seguida os presentes serem esclarecidos e ocorrer uma gargalhada geral.“Paguei mais e copos, nada!” É que para aquele espectador, o entendimento do novel formato mais não era que “cinema e copos”. Cinema estava ele a ver, agora copos é que não os avistava!!Ligado à 7ª Arte em Alpiarça esteve também António da Conceição Franco, o “Mouraria”. Começou como curioso, ajudando em tarefas menores Joaquim Prata aquando das suas passagens com cinema ambulante, por aquilo do Duarte. Apurou o gosto pelo cinema e anos mais tarde já projectava os filmes no Cine-Teatro (o primeiro, para além do proprietário, tinha sido António Freilão).Já ele exercia o seu míster quando o piquete dos Bombeiros de Alpiarça lhe pede a respectiva carta profissional. Como não a apresentou, apresentaram eles, a 7 de Março de 1960, uma queixa ao Sindicato Nacional dos Profissionais de Cinema. Viria a tê-la em Maio desse mesmo ano.Muitos leitores, dos projeccionistas, já só se lembram do “Mouraria”. E também das suas “tiradas” ao microfone. Como aquela que será, provavelmente, a mais célebre. Perante grande algazarra na sala, a que nem os soldados da Guarda conseguiam pôr cobro, sai-se com esta “subtil” ordem: “Oh seus cavalos, ou vocês se calam ou não vêem mais o resto do filme”. O “nosso” projeccionista, hoje acamado, ainda se ri com gosto daquela sua tirada.Mas também revelava preocupação em relação à “canalhada”. Eram constantes os seus avisos para se ter cuidado no atravessamento da “rua direita”. O intervalo era curto e, como tínhamos que nos despachar para não perdermos pitada no retomar da fita, parecíamos (e já que estamos numa de equinos) uns garranos doidos a correr para o bar d´Os Águias, para a Brasileira ou para o Café do Gregório, para comermos uma sandes ou um pires de berbigão (do “Sacode”, para mim o melhor que alguma vez comi), bebermos uma Laranjina C ou uma Rical. Alguns já se atiravam à Sumol, um bocado mais cara.Os dias alumiados, para os mais novos, eram uma festa. Começava logo durante a semana, com a correria para as portas do Cinema, para verem os cartazes dos filmes anunciados. Nesses tais dias tínhamos direito a uma ida ao cinema. Ver filmes do Zorro, “Música no Coração” ou o Joselito (“criado” para a arte cinematográfica no final da década de 50) e, alguns anos depois, a Marisol (Pepa Flores). Eram dois ícones do regime franquista. Mais tarde, já com a democracia instaurada em Espanha, Pepa seria militante do Partido Comunista e um dos seus casamentos era apadrinhado por Fidel Castro. Franco deu, concerteza, voltas no túmulo.Eram tempos em que até os documentários prévios ao filme tinham grande relevância. Desde os que, no Portugal “neutral”, enalteciam os feitos dos nazis na II Guerra Mundial, como testemunham cartazes expostos na recente Exposição realizada na “Música” sobre o “nosso” Cinema, até aos que os “irmãos brasileiros” enviavam para os irmãos lusos, com o enaltecimento das grandes obras realizadas no Brasil da ditadura militar, em que o lema oficial era “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Muitos eram obrigados a deixá-lo ... para o exílio.O pior foi quando Joaquim Prata começou a ter dificuldades financeiras e alguns dos referidos filmes de nuestros hermanos começavam a repetir-se Carnaval após Carnaval, Páscoa após Páscoa. Porque até aí a variedade era grande. Dos cómicos, do Charlot ao Bucha e Estica, passando pela dupla dos sicilianos Franco Franchi e Ciccio Ingrassia (décadas de 60 e 70), que assistidos junto ao meu primo Mário João Favas, eram um espectáculo dentro de outro espectáculo, até aos de acção ou westerns (não importava se eram feitos na vizinha Espanha ou em Itália, como o Trinitá, já na década de 70). Quem não se lembra ainda, e por exemplo, das fitas do mitológico Maciste, na Corte de Gran Khan, entre outros? Ou da maré dos filmes de Bruce Lee, com casas cheias (isto já no reinado do último explorador da sala)?Por falar em dificuldades, Albertino Queimadela, colaborador de Joaquim Prata, como marceneiro e, mais tarde, projeccionista ambulante, em recente Tertúlia ocorrida na “Música”, contou que o empresário ao alugar uma fita para uma noite em Alpiarça, conseguia, nessa mesma noite, fazer duas projecções.O esquema era simples. Começava a sessão na nossa terra com uma diferença de 30 a 45 minutos da das Fazendas de Almeirim. Logo que a primeira bobine acabava em Alpiarça, alguém saía “disparado” até às Fazendas para aí a começar a projectar e assim sucessivamente com as restantes.Para quem lidou com Joaquim Gomes Prata, como Albertino Almeirante ou António Franco, é unânime em reconhecer o mérito e o talento daquele homem. Para além de grande empresário do cinema ambulante e criador do Cine-Teatro de Alpiarça, teve ainda um estabelecimento comercial em Lisboa (o Pratafone) e uma habilidade nata para montar equipamentos de som e imagem. “Era uma jóia de homem, um barra em cinema”, assim o caracteriza “Mouraria”.Já no início dos anos 70, o Cine-Teatro de Alpiarça (explorado por António da Silva Diogo) e a actividade cultural ficariam marcados por representações teatrais do Grupo Amador de Teatro de Alpiarça (GATA), que levaria à cena, entre outras, peças de António Aleixo. O recinto enchia-se e Leocádio do Vale faria levantar dos seus assentos os cerca de 400 espectadores (menos o comandante do Posto de Alpiarça da G.N.R., mais ou menos imperturbável no seu camarote) num frenético aplauso, com a recitação do “Melro”, de Guerra Junqueiro. Os alpiarcenses estavam fartos de pássaros fechados em gaiolas.Sem de modo algum querermos ser exaustivos na listagem de outras representações, que fique o registo de, em 9 de Outubro de 1955, o Grupo Cénico Infantil de Alpiarça, tendo como mentor Tó Flor e, numa iniciativa da Conferência de S. Vicente de Paulo a favor da construção de moradias para famílias pobres, ter levado à cena um espectáculo de variedades, danças e cantares do Ribatejo e o “entreacto” cómico “A Tomázia”.Por sua vez, em Agosto de 1962, Aureliano Cravo, em representação da empresa Francisco dos Santos, Ldª, exploradora desde 1959 do Cine-Teatro, requeria à Inspecção de Espectáculos autorização para a realização, de duas sessões no dia 26, de uma récita por amadores infantis de Alpiarça, com um acto de variedades e uma comédia, num acto, da peça “Uma revolta em família”, a qual sofreria um pequeno corte da Comissão de Censura.Em meados da década de 80, o “nosso” Cine-Teatro cessa a actividade, agonizando. Sem que, e já em Democracia, não tivesse deixado de ter casa cheia com a exibição do filme “Chove Em Santiago”, sobre o brutal golpe militar de Pinochet. A pornografia (em determinado momento ainda foi um pequeno balão de oxigénio), a degradação da sala (em conforto e qualidade de exibição), a televisão e o advento do vídeo, ditaram-lhe a morte. Hoje, dezenas de municípios já recuperam os seus velhos “cine paraísos”.E em Alpiarça, uma terra sem uma sala de espectáculos ou de exposições (tal como em 1944), isso virá alguma vez a acontecer? Nota do Autor: Este artigo só foi possível graças à ajuda de várias pessoas e Instituições. Para além das citadas, há ainda a referir a Inspecção-Geral das Actividades Culturais, Torre do Tombo (Arquivo do SNI/DGE), Carlos Pires, Maria de Lurdes Casqueiro e Artur Carvalho. Todos aqueles que queiram partilhar outras vivências e testemunhos fotográficos à volta do Cine-teatro de Alpiarça, disponham.Publicado no Voz de Alpiarça / Janeiro /2009

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