Açores 2010: A luz das cidades

21-05-2009
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Sarphatistraat Offices” de Steven Holl, em AmsterdamSurgindo da posição geográfica, da orientação e da intensidade do sol, mas também do corpo e da matéria que existe num dado local, a luz difere de sítio para sítio.A luz do campo é diferente daquela da praia ou ainda da cidade. Numa cidade, o reflexo do sol numa parede de pedra é diferente antes e depois da chuva, se estivermos mais a norte ou mais a sul, mas também o é se em vez de pedra a parede for de azulejo, ou se em vez de azulejo a parede for de cal. Nos bairros históricos a coesão do edificado torna a luz mais homogénea, mesmo quando as ruas são apertadas e as sombras são profundas. Nas novas periferias, a luz dos sinais de trânsito, das placas reflectoras e dos anúncios de néon tem um pouco convidativo e esparso sabor metálico.Nos Açores, as nuvens constantes adensam o céu e escondem o sol e por isso o céu é quase sempre cinzento, no entanto, depois da chuva passar, o reboco branco destaca-se da pedra negra e a luz, com a sua forte e ocasional incidência, ganha uma expressão dramática que é por vezes quase religiosa. Cada cidade tem a sua própria luz, a de Paris é doce e amarela, a de Roma é mais baça e alaranjada (da cor dos pigmentos e da terra que a circunda) e a de Lisboa é branca e incisiva, assim como é única a luz de todos os outros locais.A luz de Lisboa é inusitada porque vive da absorção da pedra calcária, da reflexão do rio e do brilho dos azulejos. Quando chove, as pedras reflectem o céu e no ar paira um brilho cristalino. Quando não chove e o céu é azul, a luz espelha-se na água do rio e, branca e envolvente, define com maior acutilância os limites de cada esquina. Em Lisboa, no sol do meio-dia, a sombra é profunda e penetrante e talvez por isso os seus edifícios aparentam ter o contorno mais vincado e o vulto mais denso. De resto, são vários os escritores e os fotógrafos que disso nos falam, da maneira como a luz de Lisboa pode ter uma grande profundidade de sombras, ou como uma luz pode ser rica em cinzentos e ainda mais rica na intensidade dos contrastes que cria.Se a luz também é fruto da realidade construída do local, facilmente percebemos que mesma depende de um conjunto, mas também de cada parte ou de cada edifício. Se durante o dia essa percepção é mais subtil, é com a noite e com a luz artificial que essa verdade se torna evidente. Então, quando falamos na luz de uma cidade podemos de falar nas relações que se criam entre a luz que ela recebe e a luz que ela emana, seja esta natural (solar) ou artificial (eléctrica), mas também nas relações entre a luz do todo (da cidade no seu conjunto) com a luz de cada parte (da zona, do bairro e, no extremo, do edifício).Uma curiosa e fascinante experiência é, em cada cidade, assistir ao cruzar da luz do dia e da luz da noite, pois se há cidades que ao entardecer mergulham numa misteriosa obscuridade, outras há que, surpreendentemente, emanam o seu brilho a quilómetros de distância. Á noite, o brilho de Las Vegas ecoa pelo deserto e espalha-se pela planície americana e, em casos como este, a dimensão física da cidade é suplantada pela aura mágica que esta emana.Para além da cidade no seu todo podemo-nos também focar em algumas das suas zonas demarcadas que há muito, à noite, se pretendem valorizar por via de uma iluminação mais cuidada. Esse é um dos princípios adoptados para a revitalização, por vezes forçada, de muitos centros históricos mas também, com outros fins, no reanimar de zonas comerciais. Um exemplo inteligente é-nos dado pelo Ayuntamiento de Madrid que no final de cada ano, lança um concurso para a conceber a iluminação das suas ruas mais marcantes. Aí, mais do que pendurar as velhas luzes com o pai-natal, os sinos ou as figuras do presépio, o que se propõe é reinterpretar o acto de iluminar e, de forma mais ambiciosa, redesenhar estrategicamente o ambiente do local. E disso são bons exemplos algumas respostas do atelier “Brut-Deluxe” na Gran Via, na Calle de Alcalá ou na Plaza Mayor.Outro exemplo marcante é o evento “Luzboa – Bienal Internacional da Luz”, que desde de 2004 transforma algumas das ruas de Lisboa num campo de experimentação artística. Convocando criadores de vários campos (artistas plásticos, arquitectos, cineastas, músicos, etc.) e de vários países, o que se gera é uma plataforma de discussão com intervenções, conferências, espectáculos e publicações expressamente concebidas para aquela cidade, que contribuem para um debate em torno da luz, da arte pública e do seu expressivo papel na reabilitação do espaço urbano.Ambos os exemplos olham de forma mais ambiciosa e abrangente para o acto de iluminar e, como resultado, resolvendo e superando a mera questão funcional, o objecto que se ilumina ganha uma dimensão poética que recupera e qualifica o valor do próprio lugar.Se este é um olhar que abarca uma zona ou um local, é também possível trabalhá-lo à escala do próprio edifício. É o que o arquitecto americano Steven Holl faz ao construir a extensão de um antigo complexo de escritórios (Sarphatistraat Offices), num dos canais de Amesterdão. Neste novo edifício, a chapa de cobre microperfurada que forra o exterior assemelha-se a um véu que é permeável à luz. A “porosidade” da fachada solta as cores do interior e esbate os contornos da construção tornando o conjunto numa imagem nebulosa que se espelha na água do canal. Na verdade, à semelhança dos seus desenhos aguarelados, o edifício de Steven Holl ganha uma aura policromada ou uma qualidade atmosférica que destrói o volume (a construção) e torna feérica a sua presença. Feérica, mas marcante, próxima talvez das grandes pinturas de Mark Rothko.SFR..Publicado_Açoriano Oriental_2009.02.15


Sarphatistraat Offices” de Steven Holl, em AmsterdamSurgindo da posição geográfica, da orientação e da intensidade do sol, mas também do corpo e da matéria que existe num dado local, a luz difere de sítio para sítio.A luz do campo é diferente daquela da praia ou ainda da cidade. Numa cidade, o reflexo do sol numa parede de pedra é diferente antes e depois da chuva, se estivermos mais a norte ou mais a sul, mas também o é se em vez de pedra a parede for de azulejo, ou se em vez de azulejo a parede for de cal. Nos bairros históricos a coesão do edificado torna a luz mais homogénea, mesmo quando as ruas são apertadas e as sombras são profundas. Nas novas periferias, a luz dos sinais de trânsito, das placas reflectoras e dos anúncios de néon tem um pouco convidativo e esparso sabor metálico.Nos Açores, as nuvens constantes adensam o céu e escondem o sol e por isso o céu é quase sempre cinzento, no entanto, depois da chuva passar, o reboco branco destaca-se da pedra negra e a luz, com a sua forte e ocasional incidência, ganha uma expressão dramática que é por vezes quase religiosa. Cada cidade tem a sua própria luz, a de Paris é doce e amarela, a de Roma é mais baça e alaranjada (da cor dos pigmentos e da terra que a circunda) e a de Lisboa é branca e incisiva, assim como é única a luz de todos os outros locais.A luz de Lisboa é inusitada porque vive da absorção da pedra calcária, da reflexão do rio e do brilho dos azulejos. Quando chove, as pedras reflectem o céu e no ar paira um brilho cristalino. Quando não chove e o céu é azul, a luz espelha-se na água do rio e, branca e envolvente, define com maior acutilância os limites de cada esquina. Em Lisboa, no sol do meio-dia, a sombra é profunda e penetrante e talvez por isso os seus edifícios aparentam ter o contorno mais vincado e o vulto mais denso. De resto, são vários os escritores e os fotógrafos que disso nos falam, da maneira como a luz de Lisboa pode ter uma grande profundidade de sombras, ou como uma luz pode ser rica em cinzentos e ainda mais rica na intensidade dos contrastes que cria.Se a luz também é fruto da realidade construída do local, facilmente percebemos que mesma depende de um conjunto, mas também de cada parte ou de cada edifício. Se durante o dia essa percepção é mais subtil, é com a noite e com a luz artificial que essa verdade se torna evidente. Então, quando falamos na luz de uma cidade podemos de falar nas relações que se criam entre a luz que ela recebe e a luz que ela emana, seja esta natural (solar) ou artificial (eléctrica), mas também nas relações entre a luz do todo (da cidade no seu conjunto) com a luz de cada parte (da zona, do bairro e, no extremo, do edifício).Uma curiosa e fascinante experiência é, em cada cidade, assistir ao cruzar da luz do dia e da luz da noite, pois se há cidades que ao entardecer mergulham numa misteriosa obscuridade, outras há que, surpreendentemente, emanam o seu brilho a quilómetros de distância. Á noite, o brilho de Las Vegas ecoa pelo deserto e espalha-se pela planície americana e, em casos como este, a dimensão física da cidade é suplantada pela aura mágica que esta emana.Para além da cidade no seu todo podemo-nos também focar em algumas das suas zonas demarcadas que há muito, à noite, se pretendem valorizar por via de uma iluminação mais cuidada. Esse é um dos princípios adoptados para a revitalização, por vezes forçada, de muitos centros históricos mas também, com outros fins, no reanimar de zonas comerciais. Um exemplo inteligente é-nos dado pelo Ayuntamiento de Madrid que no final de cada ano, lança um concurso para a conceber a iluminação das suas ruas mais marcantes. Aí, mais do que pendurar as velhas luzes com o pai-natal, os sinos ou as figuras do presépio, o que se propõe é reinterpretar o acto de iluminar e, de forma mais ambiciosa, redesenhar estrategicamente o ambiente do local. E disso são bons exemplos algumas respostas do atelier “Brut-Deluxe” na Gran Via, na Calle de Alcalá ou na Plaza Mayor.Outro exemplo marcante é o evento “Luzboa – Bienal Internacional da Luz”, que desde de 2004 transforma algumas das ruas de Lisboa num campo de experimentação artística. Convocando criadores de vários campos (artistas plásticos, arquitectos, cineastas, músicos, etc.) e de vários países, o que se gera é uma plataforma de discussão com intervenções, conferências, espectáculos e publicações expressamente concebidas para aquela cidade, que contribuem para um debate em torno da luz, da arte pública e do seu expressivo papel na reabilitação do espaço urbano.Ambos os exemplos olham de forma mais ambiciosa e abrangente para o acto de iluminar e, como resultado, resolvendo e superando a mera questão funcional, o objecto que se ilumina ganha uma dimensão poética que recupera e qualifica o valor do próprio lugar.Se este é um olhar que abarca uma zona ou um local, é também possível trabalhá-lo à escala do próprio edifício. É o que o arquitecto americano Steven Holl faz ao construir a extensão de um antigo complexo de escritórios (Sarphatistraat Offices), num dos canais de Amesterdão. Neste novo edifício, a chapa de cobre microperfurada que forra o exterior assemelha-se a um véu que é permeável à luz. A “porosidade” da fachada solta as cores do interior e esbate os contornos da construção tornando o conjunto numa imagem nebulosa que se espelha na água do canal. Na verdade, à semelhança dos seus desenhos aguarelados, o edifício de Steven Holl ganha uma aura policromada ou uma qualidade atmosférica que destrói o volume (a construção) e torna feérica a sua presença. Feérica, mas marcante, próxima talvez das grandes pinturas de Mark Rothko.SFR..Publicado_Açoriano Oriental_2009.02.15

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