Açores 2010: A sedução do toque

29-09-2009
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Universidade de Évora - Pólo Universitário da Mitra (Arquitecto Vítor Figueiredo)O tacto é um dos mais interessantes sentidos na percepção da arquitectura. Todos os dias tocamos as casas e os objectos, muitas vezes sem grande noção ou consciência de tal.Pôr a mão num corrimão ou pisar um pavimento irregular são experiências onde o nosso corpo é confrontado com o corpo do edifício. Muitas vezes a mão que segura, acaricia, empurra e retém é um dos melhores veículos para experimentar e compreender um dado local. O arquitecto finlandês J. Pallasmaa diz que “o puxador da porta é o aperto de mão do edifício”. De facto, a firmeza com que este se nos dá, a forma como se deixa agarrar ou nos encaminha a mão, assegura-nos da solidez da construção mas também da “franqueza” e do “carácter” do próprio edifício.A maneira como tocamos o edifício pode transformar uma simples acção utilitária, o abrir ou fechar uma porta por exemplo, em algo mais interessante e ambicioso. Há portas que precisam de duas mãos para serem abertas, outras que deslizam com só um dedo. Há portas que deixam ver o que encerram e nos convidam a entrar, outras que se negam e não nos deixam sequer passar. Há portas que estão sempre abertas (especialmente no mediterrâneo) e que se dobram pela metade para, de dentro para fora, apoiar o corpo como o peitoril de uma janela. No Alentejo há portas profundas onde se demora a passagem e se desenha a sombra que nos esconde do sol. São portas que na sua espessura encerram os degraus onde, à noite, as pessoas se sentam a conversar.Nas séries de ficção científica há sempre uma porta que se abre sozinha de cada vez que alguém se aproxima. Nos filmes de terror também. Mas enquanto nas naves espaciais a porta desliza para o lado, nas casas assombradas a porta abre-se para a frente, numa espécie de convite ao mistério. Sempre preferi as segundas. A sua abertura lenta e ruidosa desoculta timidamente o local escuro e fechado que se esconde mais à frente. E isso, esse suspense, sempre me pareceu muito mais romântico que o asséptico deslizar de um painel sem peso, barulho, ou cheiro, sem toque e sem promessa daquilo que se esconde ou encerra mais além.Alguns hotéis têm portas salientes, giratórias, que nos cortam o vento, abafam o ruído e, atrasando o acesso, nos desligam do exterior. Portas que empurramos num suave movimento circular e que, sem esforço, com gentileza e glamour, nos encaminham ao átrio.O tempo que demoramos, o movimento que descrevemos, o esforço que empreendemos, o contacto com a matéria, tudo isso faz parte da forma como tocamos o edifício. Abrir uma porta que tem de ser puxada é diferente de abrir uma porta que tem de ser empurrada. Puxar uma porta é arrancar algo ao espaço que está diante de nós, empurrar pode implicar uma concordância ou uma suposta amabilidade no passar.A maneira como se abre uma janela de madeira, de par em par, é diferente do correr de uma janela de alumínio. Abrir uma janela de par em par, pela manhã, responde quase naturalmente ao movimento e à vontade de inspirar o ar exterior. Ninguém se imagina numa casa da montanha, querendo abarcar o ar fresco da manhã, correndo uma janela de alumínio. Assim, não haveria uma concordância entre a vontade e a forma como tocamos no edifício.Na verdade, mexendo nas coisas ou inconscientemente tacteando-as com o olhar, estamos continuamente a tocar nos edifícios. Na casa tradicional japonesa, o pavimento de madeira (dos alpendres) apresenta uma ligeira rugosidade. Aí, o toque do nosso corpo sente a natureza da madeira, percebendo a temperatura mas também a textura e o desenho implícito do material.Lembro-me saudosamente do arquitecto Vítor Figueiredo que no Pólo Universitário da Mitra, nos arredores de Évora, na esperança de anular qualquer estranheza, forrou um pátio com saibro branco. Falava disso dizendo que o barulho dos passos sobre a pedra e a lentidão do seu atravessar aproximava o edifício à memória dos antigos montes alentejanos. Hoje este edifício faz parte do local e, como ele diria, tornou-se paisagem.Há poucos dias visitei a recuperação de uma casa feita por dois amigos. As portas sobem à altura do tecto e a madeira forra, sem quebras, o pavimento de quase todas as divisões. A casa, que se tornou contínua, convida a andar descalço. Uma casa para andar descalço é uma casa amável onde a temperatura do pavimento encontra a temperatura do corpo e onde, por momentos, encontramos uma simbiose entre o que somos e onde estamos.Na verdade o tacto é um sentido indutor de intimidade. Se é pela visão que se observa e controla, mantendo a distância ao outro, é pelo tacto que encurtamos a separação e nos aproximamos às coisas. Assim, pensar no corpo do edifício, perceber como se projecta com essa dimensão, é talvez bastante mais complexo e aliciante do que pensar apenas nos materiais que o enformam. È certamente pensar qual é a matéria que o constrói, no desenho que isso implica, mas é também estar consciente que a sua percepção passa pelo encontro do seu corpo com o corpo de cada um.As janelas que Siza Vieira desenhou para algumas das suas casas, com as suas esguias e frágeis ferragens, são bonitas não só pelo desenho da forma (a geometria, o brilho, a esbelteza, etc.), mas sobretudo pelo uso a que induzem. A sua aparente fragilidade obriga a um contacto deliberadamente delicado, cuidadoso e quase contemplativo. Aqui, mais do que puxar ou abrir, a mão encontra, pousa e acompanha.È no desenho desse uso que se induz um contacto atencioso e as casa e os objectos, mais do que aliciar, podem seduzir.S.F.R.Publicado_Açoriano Oriental_26.08.2007


Universidade de Évora - Pólo Universitário da Mitra (Arquitecto Vítor Figueiredo)O tacto é um dos mais interessantes sentidos na percepção da arquitectura. Todos os dias tocamos as casas e os objectos, muitas vezes sem grande noção ou consciência de tal.Pôr a mão num corrimão ou pisar um pavimento irregular são experiências onde o nosso corpo é confrontado com o corpo do edifício. Muitas vezes a mão que segura, acaricia, empurra e retém é um dos melhores veículos para experimentar e compreender um dado local. O arquitecto finlandês J. Pallasmaa diz que “o puxador da porta é o aperto de mão do edifício”. De facto, a firmeza com que este se nos dá, a forma como se deixa agarrar ou nos encaminha a mão, assegura-nos da solidez da construção mas também da “franqueza” e do “carácter” do próprio edifício.A maneira como tocamos o edifício pode transformar uma simples acção utilitária, o abrir ou fechar uma porta por exemplo, em algo mais interessante e ambicioso. Há portas que precisam de duas mãos para serem abertas, outras que deslizam com só um dedo. Há portas que deixam ver o que encerram e nos convidam a entrar, outras que se negam e não nos deixam sequer passar. Há portas que estão sempre abertas (especialmente no mediterrâneo) e que se dobram pela metade para, de dentro para fora, apoiar o corpo como o peitoril de uma janela. No Alentejo há portas profundas onde se demora a passagem e se desenha a sombra que nos esconde do sol. São portas que na sua espessura encerram os degraus onde, à noite, as pessoas se sentam a conversar.Nas séries de ficção científica há sempre uma porta que se abre sozinha de cada vez que alguém se aproxima. Nos filmes de terror também. Mas enquanto nas naves espaciais a porta desliza para o lado, nas casas assombradas a porta abre-se para a frente, numa espécie de convite ao mistério. Sempre preferi as segundas. A sua abertura lenta e ruidosa desoculta timidamente o local escuro e fechado que se esconde mais à frente. E isso, esse suspense, sempre me pareceu muito mais romântico que o asséptico deslizar de um painel sem peso, barulho, ou cheiro, sem toque e sem promessa daquilo que se esconde ou encerra mais além.Alguns hotéis têm portas salientes, giratórias, que nos cortam o vento, abafam o ruído e, atrasando o acesso, nos desligam do exterior. Portas que empurramos num suave movimento circular e que, sem esforço, com gentileza e glamour, nos encaminham ao átrio.O tempo que demoramos, o movimento que descrevemos, o esforço que empreendemos, o contacto com a matéria, tudo isso faz parte da forma como tocamos o edifício. Abrir uma porta que tem de ser puxada é diferente de abrir uma porta que tem de ser empurrada. Puxar uma porta é arrancar algo ao espaço que está diante de nós, empurrar pode implicar uma concordância ou uma suposta amabilidade no passar.A maneira como se abre uma janela de madeira, de par em par, é diferente do correr de uma janela de alumínio. Abrir uma janela de par em par, pela manhã, responde quase naturalmente ao movimento e à vontade de inspirar o ar exterior. Ninguém se imagina numa casa da montanha, querendo abarcar o ar fresco da manhã, correndo uma janela de alumínio. Assim, não haveria uma concordância entre a vontade e a forma como tocamos no edifício.Na verdade, mexendo nas coisas ou inconscientemente tacteando-as com o olhar, estamos continuamente a tocar nos edifícios. Na casa tradicional japonesa, o pavimento de madeira (dos alpendres) apresenta uma ligeira rugosidade. Aí, o toque do nosso corpo sente a natureza da madeira, percebendo a temperatura mas também a textura e o desenho implícito do material.Lembro-me saudosamente do arquitecto Vítor Figueiredo que no Pólo Universitário da Mitra, nos arredores de Évora, na esperança de anular qualquer estranheza, forrou um pátio com saibro branco. Falava disso dizendo que o barulho dos passos sobre a pedra e a lentidão do seu atravessar aproximava o edifício à memória dos antigos montes alentejanos. Hoje este edifício faz parte do local e, como ele diria, tornou-se paisagem.Há poucos dias visitei a recuperação de uma casa feita por dois amigos. As portas sobem à altura do tecto e a madeira forra, sem quebras, o pavimento de quase todas as divisões. A casa, que se tornou contínua, convida a andar descalço. Uma casa para andar descalço é uma casa amável onde a temperatura do pavimento encontra a temperatura do corpo e onde, por momentos, encontramos uma simbiose entre o que somos e onde estamos.Na verdade o tacto é um sentido indutor de intimidade. Se é pela visão que se observa e controla, mantendo a distância ao outro, é pelo tacto que encurtamos a separação e nos aproximamos às coisas. Assim, pensar no corpo do edifício, perceber como se projecta com essa dimensão, é talvez bastante mais complexo e aliciante do que pensar apenas nos materiais que o enformam. È certamente pensar qual é a matéria que o constrói, no desenho que isso implica, mas é também estar consciente que a sua percepção passa pelo encontro do seu corpo com o corpo de cada um.As janelas que Siza Vieira desenhou para algumas das suas casas, com as suas esguias e frágeis ferragens, são bonitas não só pelo desenho da forma (a geometria, o brilho, a esbelteza, etc.), mas sobretudo pelo uso a que induzem. A sua aparente fragilidade obriga a um contacto deliberadamente delicado, cuidadoso e quase contemplativo. Aqui, mais do que puxar ou abrir, a mão encontra, pousa e acompanha.È no desenho desse uso que se induz um contacto atencioso e as casa e os objectos, mais do que aliciar, podem seduzir.S.F.R.Publicado_Açoriano Oriental_26.08.2007

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