FML2002: Zero Absoluto

12-10-2009
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Queria antes de mais, esclarecer que apesar de este post vir no seu nome, não sou o Manuel Neves. O texto que se segue será publicado na próxima edição do Ressonância. Zero Absoluto
Absorvemos qual a situação à nossa volta e verificamos qual a nossa posição. Às vezes fascinados, outras contemplativos, outras indignados, mas quase sempre resignados, no expoente máximo da nossa mímica cultural nacional que são o encolher de ombros e o levantar de sobrancelhas com ar fadista. Ricos e felizes. Ou talvez não... Mas, se é ponto assente, sagrado e inviolável que somos informados, com opinião formada e saber feito, cientes que em qualquer momento nos foi dada oportunidade para triunfar, cidadãos a quem é dado espaço para intervir no desenrolar democrático e ser reivindicativo q.b., o que terá então corrido mal?
Nascidos e já equipados com a fralda da moda ou de marca branca, seja no casebrezinho rústico de tijolo nu do Bairro de Sta. Cruz seja no T3+1 do Atlanta Park Laranjeiras, toda uma infinidade de trilhos de vida futura parece ser acessível a nós, ainda fofinhos rebentos.
Passamos infâncias condensadas nos sábados caseiros com os amigos Disneys, Looneys e os não menos divertidos Action-Man’s, Transformers, Nenucos papagueantes ou lanches saudáveis formato barra-de-chocolate, que saltam oportunamente da caixinha mágica para nos fazer salivar nos intervalos. O nosso espírito reivindicativo e anti-conformista, ex-libris de uma infância saudável, vem então ao de cima quando o nosso/a amigo/a tem aquela mochila do Mickey Pirata que os nossos papás pouco compreensivos e obsoletos não nos querem comprar nem mesmo depois do embaraço a que os submetemos com um festival de lágrimas no Hiper! Crescemos mais um pouco e, no meio de uns namoricos de formato inspirado no Riscos ou no Morangos com Açúcar, começamos a antever, com a promessa dos horários nobres televisivos absorvidos a partir do sofá onde digerimos o pré-fabricado requentado em micro-ondas, um de entre vários futuros radiosos como top-models, cantores de sucesso, Beckham’s (Vitoria’s ou David’s), milionários ou no mínimo gente gira. A idade do armário pode depois trazer o íman irresistível da perfeição, alvo da inveja dos/das compinchas, perfeitamente acessível ao virar da esquina nos tubinhos de clearasil ou nas montras da Bershka. Pode trazer, em alternativa, uma irreverência e talvez até uma revolta progressista mais forte mas também mais matura, nada que não possamos canalizar (sabiamente e sempre desconfiados de betos e caretas) com a ajuda de uma MTV que prontamente nos dá a conhecer uma estrela politicamente incorrecta na qual vemos espelhada a nossa individualidade e complexidade e nos dá a saber como reflectir isso nos trejeitos a ter, na roupa a usar e em onde a comprar…
Depois? Depois vem finalmente o triunfo! O triunfo que sabemos estar a jogar às escondidas por detrás dos 365,60 € ao mês, das 40 horas de trabalho à semana, das 3 horas de transportes ao dia, das irritantes prestações do crédito à habitação que nunca mais acabam, dos balúrdios dos livros dos miúdos, da conta do gás, da luz e da água e do quilo da carne, “Xiça que este mês a coisa ‘tá lixada!”, e o qual temos fé que a qualquer momento se dê a mostrar e nos arranque uns suspiros de anestesiado contentamento… Seja quando no comboio suburbano, onde somos apinhados e transportados como gado prontos a sermos engavetados para o dia seguinte num qualquer caixote de cimento, e submergimos nas paginadas cor-de-rosa onde lemos que X está de férias nas Seychelles ou que Y deu à luz de Z e “estamos muito felizes com o nosso filho. Era mesmo o que mais queríamos.” Seja nos almoços de domingo quando, sentados no trono patriarca da cabeceira da mesa, mastigamos e cuspimos os lugares-comuns debitados por pivots e comentadores nos respectivos tempos de antena para a nossa família, à falta de melhor audiência, ouvir atentamente. Seja na miragem do novo 16 válvulas com jantes desportivas de série, perfeitamente acessível e exequível bastando para isso endividarmo-nos só (mais) um bocadinho. Seja até nas tardes de fim-de-semana em que fugimos que nem ratazanas do Sol lusitano para nos deliciarmos e salivarmos num qualquer fórum, shopping, retail shopping ou outlet shopping em que fazemos uso do que cremos ser os nossos extraordinários dotes de consumidores esclarecidos, de gosto refinado e independente, absolutamente invulneráveis ao aliciamento publicitário e nunca aldrabáveis pela charlatanice comercial.
Trabalha! Consome! Morre…
Fabuloso como acreditamos, com a devida chucha açucarada nas bocas, na justiça de cada um ser e ter o que é e o que tem, e que, com trabalho árduo e submisso todos (sem excepção) podemos um dia trepar à pirâmide da bonança, até mesmo se servirmos cafés, atendermos telefones, colocarmos tijolos, ou tivermos sido despedidos da Sorefame. Fabuloso como veneramos os que se encontram no cimo dela, empresários, empreendedores, investidores, CEO’s, accionistas, businessmen, magnatas e todos os sábios que dia após dia criam riqueza, e que são de facto os únicos a quem é atribuído esse poder sobre-natural. Fabuloso como esse poder (o económico), esse condão que faz girar todo este magnífico cosmos de formigas obreiras, cria a dita riqueza a partir do músculo e da cabeça de outros bichinhos, aos quais se destina uma lasca do produto do seu próprio trabalho (a necessária para a sua manutenção e propagação) e obtém o grosso do bolo para si mesmo, alimentando ainda mais esse seu prodigioso dom. Fabuloso como acreditamos e nos empenhamos orgulhosos no outro poder que nos é a nós atribuído através da dádiva da democracia (Demo = povo; kratos = poder) que nos dá a escolher quais os indivíduos inteligentes, diplomados e capazes para pensar e tomar as decisões por nós. Fabuloso como esse poder (o político) não é mais do que um inevitável subordinado ao poder económico, ou mesmo, (pasme-se na capacidade e na versatilidade dos ditos iluminados) como estes dois poderes muitas vezes coincidem nos mesmos indivíduos, sem sombra de dúvida íntegros ao ponto de zelarem digna e responsavelmente pela nossa sorte ao invés de se auto-beneficiarem, como poderiam, com a tranquilidade legal que lhes é concedida, fazer.
Ah! Glorioso final da História! Para trás a tirania e o totalitarismo! Agora a liberdade! Extraordinária civilização do século XXI em que um quinto do planeta é responsável por 90% do consumo de recursos e onde 358 beneméritos possuem tanto como metade da população mundial. Notável estufa à beira-mar plantada em que os 10% mais pobres detêm 2% do rendimento nacional e os 10% mais ricos concentram 29%, e onde, uma em cada cinco pessoas vive abaixo do limiar da pobreza.
Acreditemos pois no que os homens asseados e engravatados que nos invadem a casa pela janela hertziana nos dizem das suas entrevistas, conferências de imprensa, conselhos e cimeiras, seja da Casa Branca, de São Bento ou do Portugal Fashion. Acreditemos pois que somos nós os únicos e verdadeiros culpados por esta situação e que eles trabalham incansáveis para levar a cabo a retoma que nos fará arrancar de novo deste pântano onde nós próprios nos fizemos atolar. Acreditemos pois na competitividade, na dinamização, na flexibilização, na descentralização e na reestruturação. Eles sabem! Eles preocupam-se! Eles não precisam de mais nada para eles próprios mas dedicam-se afincadamente a construir o nosso bem-estar! Até nos tempos livres se vê a sua dedicação ao reunirem-se à volta de mesas relpetas de caviar, fois-gras e espumante Moët et Chandon para que daí possam tirar proveito as criancinhas desfavorecidas.
Contemos então com os media, na sua maior parte propriedade e instrumento dos que mais propriedades e instrumentos detêm. Conversemos então com ar sensato partilhando as nossas elaboradas e moderadas opiniões e posições, por sua vez elaboradas e moderadas por estes opinion-makers que tratam de seleccionar, filtrar e dar expressividade avaliadora nas reportagens, quadraturas e debates em directo com que nos bombardeiam diariamente, para que andemos sempre na crista da onda. Aconcheguemo-nos então nas nossas camisolas com bandeiras dos States sem imaginarmos como seria a Alemanha ter ganho a segunda guerra mundial e andarmos, ao invés, com suásticas, não descurando obviamente a postura sensata e moderada. Lancemo-nos então para o mundo, catequizados pelo Vaticano ou pela TVGlobo e resignemo-nos e tranquilizemo-nos pois se nesta vida “vai dando para a bucha” na próxima há de ser bem melhor, ou mesmo nesta ainda há a possibilidade de virmos a casar com o príncipe/fazendeiro encantado.
Trabalha! Consome! Morre… Eles agradecem!
Apenas uma coisa lhes rói, de tempos a tempos, a serenidade: iremos sempre continuar a funcionar impecavelmente, ainda e sempre inofensivas engrenagens acéfalas da máquina, ou, será que um dia algo falha e para além de nos apercebemos da máquina que somos também nos lembramos que se somos a máquina também a podemos parar?
André Almeida

Queria antes de mais, esclarecer que apesar de este post vir no seu nome, não sou o Manuel Neves. O texto que se segue será publicado na próxima edição do Ressonância. Zero Absoluto
Absorvemos qual a situação à nossa volta e verificamos qual a nossa posição. Às vezes fascinados, outras contemplativos, outras indignados, mas quase sempre resignados, no expoente máximo da nossa mímica cultural nacional que são o encolher de ombros e o levantar de sobrancelhas com ar fadista. Ricos e felizes. Ou talvez não... Mas, se é ponto assente, sagrado e inviolável que somos informados, com opinião formada e saber feito, cientes que em qualquer momento nos foi dada oportunidade para triunfar, cidadãos a quem é dado espaço para intervir no desenrolar democrático e ser reivindicativo q.b., o que terá então corrido mal?
Nascidos e já equipados com a fralda da moda ou de marca branca, seja no casebrezinho rústico de tijolo nu do Bairro de Sta. Cruz seja no T3+1 do Atlanta Park Laranjeiras, toda uma infinidade de trilhos de vida futura parece ser acessível a nós, ainda fofinhos rebentos.
Passamos infâncias condensadas nos sábados caseiros com os amigos Disneys, Looneys e os não menos divertidos Action-Man’s, Transformers, Nenucos papagueantes ou lanches saudáveis formato barra-de-chocolate, que saltam oportunamente da caixinha mágica para nos fazer salivar nos intervalos. O nosso espírito reivindicativo e anti-conformista, ex-libris de uma infância saudável, vem então ao de cima quando o nosso/a amigo/a tem aquela mochila do Mickey Pirata que os nossos papás pouco compreensivos e obsoletos não nos querem comprar nem mesmo depois do embaraço a que os submetemos com um festival de lágrimas no Hiper! Crescemos mais um pouco e, no meio de uns namoricos de formato inspirado no Riscos ou no Morangos com Açúcar, começamos a antever, com a promessa dos horários nobres televisivos absorvidos a partir do sofá onde digerimos o pré-fabricado requentado em micro-ondas, um de entre vários futuros radiosos como top-models, cantores de sucesso, Beckham’s (Vitoria’s ou David’s), milionários ou no mínimo gente gira. A idade do armário pode depois trazer o íman irresistível da perfeição, alvo da inveja dos/das compinchas, perfeitamente acessível ao virar da esquina nos tubinhos de clearasil ou nas montras da Bershka. Pode trazer, em alternativa, uma irreverência e talvez até uma revolta progressista mais forte mas também mais matura, nada que não possamos canalizar (sabiamente e sempre desconfiados de betos e caretas) com a ajuda de uma MTV que prontamente nos dá a conhecer uma estrela politicamente incorrecta na qual vemos espelhada a nossa individualidade e complexidade e nos dá a saber como reflectir isso nos trejeitos a ter, na roupa a usar e em onde a comprar…
Depois? Depois vem finalmente o triunfo! O triunfo que sabemos estar a jogar às escondidas por detrás dos 365,60 € ao mês, das 40 horas de trabalho à semana, das 3 horas de transportes ao dia, das irritantes prestações do crédito à habitação que nunca mais acabam, dos balúrdios dos livros dos miúdos, da conta do gás, da luz e da água e do quilo da carne, “Xiça que este mês a coisa ‘tá lixada!”, e o qual temos fé que a qualquer momento se dê a mostrar e nos arranque uns suspiros de anestesiado contentamento… Seja quando no comboio suburbano, onde somos apinhados e transportados como gado prontos a sermos engavetados para o dia seguinte num qualquer caixote de cimento, e submergimos nas paginadas cor-de-rosa onde lemos que X está de férias nas Seychelles ou que Y deu à luz de Z e “estamos muito felizes com o nosso filho. Era mesmo o que mais queríamos.” Seja nos almoços de domingo quando, sentados no trono patriarca da cabeceira da mesa, mastigamos e cuspimos os lugares-comuns debitados por pivots e comentadores nos respectivos tempos de antena para a nossa família, à falta de melhor audiência, ouvir atentamente. Seja na miragem do novo 16 válvulas com jantes desportivas de série, perfeitamente acessível e exequível bastando para isso endividarmo-nos só (mais) um bocadinho. Seja até nas tardes de fim-de-semana em que fugimos que nem ratazanas do Sol lusitano para nos deliciarmos e salivarmos num qualquer fórum, shopping, retail shopping ou outlet shopping em que fazemos uso do que cremos ser os nossos extraordinários dotes de consumidores esclarecidos, de gosto refinado e independente, absolutamente invulneráveis ao aliciamento publicitário e nunca aldrabáveis pela charlatanice comercial.
Trabalha! Consome! Morre…
Fabuloso como acreditamos, com a devida chucha açucarada nas bocas, na justiça de cada um ser e ter o que é e o que tem, e que, com trabalho árduo e submisso todos (sem excepção) podemos um dia trepar à pirâmide da bonança, até mesmo se servirmos cafés, atendermos telefones, colocarmos tijolos, ou tivermos sido despedidos da Sorefame. Fabuloso como veneramos os que se encontram no cimo dela, empresários, empreendedores, investidores, CEO’s, accionistas, businessmen, magnatas e todos os sábios que dia após dia criam riqueza, e que são de facto os únicos a quem é atribuído esse poder sobre-natural. Fabuloso como esse poder (o económico), esse condão que faz girar todo este magnífico cosmos de formigas obreiras, cria a dita riqueza a partir do músculo e da cabeça de outros bichinhos, aos quais se destina uma lasca do produto do seu próprio trabalho (a necessária para a sua manutenção e propagação) e obtém o grosso do bolo para si mesmo, alimentando ainda mais esse seu prodigioso dom. Fabuloso como acreditamos e nos empenhamos orgulhosos no outro poder que nos é a nós atribuído através da dádiva da democracia (Demo = povo; kratos = poder) que nos dá a escolher quais os indivíduos inteligentes, diplomados e capazes para pensar e tomar as decisões por nós. Fabuloso como esse poder (o político) não é mais do que um inevitável subordinado ao poder económico, ou mesmo, (pasme-se na capacidade e na versatilidade dos ditos iluminados) como estes dois poderes muitas vezes coincidem nos mesmos indivíduos, sem sombra de dúvida íntegros ao ponto de zelarem digna e responsavelmente pela nossa sorte ao invés de se auto-beneficiarem, como poderiam, com a tranquilidade legal que lhes é concedida, fazer.
Ah! Glorioso final da História! Para trás a tirania e o totalitarismo! Agora a liberdade! Extraordinária civilização do século XXI em que um quinto do planeta é responsável por 90% do consumo de recursos e onde 358 beneméritos possuem tanto como metade da população mundial. Notável estufa à beira-mar plantada em que os 10% mais pobres detêm 2% do rendimento nacional e os 10% mais ricos concentram 29%, e onde, uma em cada cinco pessoas vive abaixo do limiar da pobreza.
Acreditemos pois no que os homens asseados e engravatados que nos invadem a casa pela janela hertziana nos dizem das suas entrevistas, conferências de imprensa, conselhos e cimeiras, seja da Casa Branca, de São Bento ou do Portugal Fashion. Acreditemos pois que somos nós os únicos e verdadeiros culpados por esta situação e que eles trabalham incansáveis para levar a cabo a retoma que nos fará arrancar de novo deste pântano onde nós próprios nos fizemos atolar. Acreditemos pois na competitividade, na dinamização, na flexibilização, na descentralização e na reestruturação. Eles sabem! Eles preocupam-se! Eles não precisam de mais nada para eles próprios mas dedicam-se afincadamente a construir o nosso bem-estar! Até nos tempos livres se vê a sua dedicação ao reunirem-se à volta de mesas relpetas de caviar, fois-gras e espumante Moët et Chandon para que daí possam tirar proveito as criancinhas desfavorecidas.
Contemos então com os media, na sua maior parte propriedade e instrumento dos que mais propriedades e instrumentos detêm. Conversemos então com ar sensato partilhando as nossas elaboradas e moderadas opiniões e posições, por sua vez elaboradas e moderadas por estes opinion-makers que tratam de seleccionar, filtrar e dar expressividade avaliadora nas reportagens, quadraturas e debates em directo com que nos bombardeiam diariamente, para que andemos sempre na crista da onda. Aconcheguemo-nos então nas nossas camisolas com bandeiras dos States sem imaginarmos como seria a Alemanha ter ganho a segunda guerra mundial e andarmos, ao invés, com suásticas, não descurando obviamente a postura sensata e moderada. Lancemo-nos então para o mundo, catequizados pelo Vaticano ou pela TVGlobo e resignemo-nos e tranquilizemo-nos pois se nesta vida “vai dando para a bucha” na próxima há de ser bem melhor, ou mesmo nesta ainda há a possibilidade de virmos a casar com o príncipe/fazendeiro encantado.
Trabalha! Consome! Morre… Eles agradecem!
Apenas uma coisa lhes rói, de tempos a tempos, a serenidade: iremos sempre continuar a funcionar impecavelmente, ainda e sempre inofensivas engrenagens acéfalas da máquina, ou, será que um dia algo falha e para além de nos apercebemos da máquina que somos também nos lembramos que se somos a máquina também a podemos parar?
André Almeida

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