O valor das ideias: G20: O Sorriso de Obama no fim do laissez-faire

30-09-2009
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1. Introdução: o sorriso de ObamaO documento de síntese da Cimeira do G20, que teve lugar ontem em Londres, é em si mesmo um sinal do espírito com que os líderes dos países responsáveis por mais de 80% da produção mundial chegaram a esta reunião: confuso, omisso e contraditório, nos 29 pontos em que está estruturado. Daí, muito provavelmente, as contradições e erros na melhor imprensa mundial. Alguns números, como se suspeitava, foram simplesmente agregados sem nexo particular, de forma a parecerem bem em conjunto. E a produzirem uma sequência impressionante de verbas, que Gordon Brown debitou de forma o mais convincente possível na conferência de imprensa final. E de tal forma se preparou para aquele papel, que toda a sequência confusa de números soava a falso.Num gesto de enorme elegância, Nicholas Sarkozy dava, em simultâneo a sua própria conferência de imprensa. E daí até chegar a Paris, dizem fontes próximas, que não mais se absteve de enunciar a forma como tinha saído vitorioso de Londres, numa espécie de vingança histórica de Napoleão. Chegando mesmo a comentar, num primor de delicadeza, que Barack Obama estava impreparado para a cimeira em matéria de regulação financeira. Tomando Sarkozy a sério, seria de sentir arrepios se pensássemos que no lugar de Obama tinha estado hoje John MacCain: o homem que há um ano e três meses dizia num debate no New Hampshire, que numa economia pujante as taxas de juro deveriam ser zero. Elas aí estão, e a pujança da economia também! Pelo menos dos seus fundamentals…Se de Mohammed Singh, Dmitry Medvedev e Angela Merkel não seria de esperar grande expressividade facial – o primeiro devido às eleições que se avizinham, o segundo porque tenta emular o seu PM, e a terceira porque tinha razões de preocupação – já o exultante Presidente da Comissão Europeia quase fazia, não se cansava de distribuir elogios por todos e pelo grande trabalho que se tinha feito: um esforço de união sem paralelo! O que é compreensível vindo de quem está habituado a lidar diariamente com uma figura de retórica conhecida por União.Hu Jintao tinha todos os motivos para estar satisfeito. E da sua forma peculiar, ia-o deixando transparecer. Mas verdadeiramente igual a si mesmo, com aquela inata capacidade para encher de esperança uma sala vazia, estava Barack Obama. Não tanto pelo show de charme diplomático que passeou por Londres, com Michelle a cumprir brilhantemente a sua parte, dando aulas aos que duvidavam da sua aptidão para a política externa. Os Obama tornaram-se numa espécie de David e Victoria Beckham da diplomacia internacional. E com mais uns dias, Michelle era eleita a “Primeira-Dama do Povo”. O Presidente americano transbordava de satisfação no final da cimeira, e trocava piadas com os jornalistas europeus, mas porque tinha genuínas razões para estar satisfeito! A viagem a Londres valeu-lhe a maçada da constipação.Manipulação de números e omissões à parte, o documento de 29 pontos produzido pela Cimeira do G20, transparecia em muitas construções frásicas, e em muitos temas, o estilo Obama. Alguns de nós, ocidentais, podíamos não saber o que ele esperava de Londres (desde logo, a esmagadora maioria dos media americanos não fazia ideia). Mas depois do sucesso estrondoso do encontro de ontem com Hu Jintao, a declaração da cimeira dos G20 podia ter título claro: Yes, we Can! Em homenagem ao homem que mais contribuiu para a escrever. O mais engraçado é que nem a própria Katie Couric, da CBS News, que reconheceu o entusiasmo de Obama no final, se deu ao trabalho de ler aquela declaração. E teria percebido, no final das sete páginas, a boa disposição do seu presidente.2) O FMI ou a Fénix renascida, e o poder do PacíficoA declaração estruturada em 5 pontos, tem alguns temas surpreendentes, alguns temas vencedores, e algumas teses vencidas. No essencial, a versa sobre as Instituições Financeiras Internacionais, a Regulação Financeira, o Crescimento, o Comércio Internacional, e uma recuperação sustentável e para todos.A atenção mediática recaiu fortemente sobre os números. E por isso importa começar pelas Instituições Financeiras Internacionais. Em particular, pelo herdeiro mais directo de Bretton Woods, o FMI, que, como se dizia recentemente, parecia estar moribundo antes da crise. E esse carácter fúnebre tinha-se materializado nos últimos tempos nas maciças reduções do seu staff técnico especializado.De facto, no início de 2008, o então G7 decidiu-se a promover uma campanha para cortar as despesas do FMI. Alemães, Franceses, Britânicos, uma complacente Administração Bush, e outros países europeus, promoveram uma redução de pessoal no FMI na ordem dos 20%, incluindo uma vastidão de economistas experimentados em situações de crise. Quando os problemas eclodiram em força, no último quadrimestre de 2008, o FMI viu-se sem capacidade de resposta às múltiplas situações que lhe eram apresentadas. Essa situação mantém-se até hoje, com um fundo a trabalhar, em parte à custa de estagiários. Que razões presidiram a esta opção política? Simon Johnson argumentava recentemente no The New Republic, que o facto de o FMI ter em 2007 proferido diversas declarações públicas avisando da crise iminente no sistema financeiro, terá desagradado a europeus e americanos.No essencial, esta realidade permanece imutável. Mas o FMI, recuperado das suas precoces cinzas, é claramente o primeiro vencedor desta reunião magna. Tal como era pretensão de Timothy Geithner, o polémico Secretário do Tesouro norte-americano, as verbas do FMI para auxílio a economias em dificuldade, em particular países em vias de desenvolvimento e países emergentes com problemas de liquidez e solvabilidade, não duplicaram, como parecia que iria suceder, na sequência de reunião de 14 de Março, mas triplicaram! Isto é, de 250 mil milhões de dólares para auxílio a essas economias, o FMI passou a dispor de 750 mil milhões. E estes 500 mil milhões adicionais dividem-se em duas parcelas. Serão de imediato disponibilizados 250 mil milhões de dólares, provenientes quer de 100 mil milhões que o Japão tinha avançado, quer de 100 mil milhões que uma relutante UE, percebendo que a fronteira da crise está neste momento na Europa de Leste e em alguns países da Europa Ocidental, avançou na semana passada, quer de 40 mil milhões que a China terá disponibilizado na Cimeira.Subsequentemente, e na medida das necessidades de ajuda que forem surgindo, o FMI poderá receber até mais 250 mil milhões de dólares, quer pedindo-os aos países abrangidos pelo New Arrangements to Borrow ou NAB, a modalidade de financiamento mais flexível ao dispor do FMI, e na qual entram presentemente 26 países e instituições. Não integrando a China esta lista, será de supor que não será à China que o FMI poderá pedir auxílio para esta verba.O FMI poderá ainda, se necessário para satisfazer constrangimentos de liquidez em PVDs ou emergentes, recorrer à emissão de Direitos Especiais de Saque, até um montante de 250 mil milhões de dólares. Como é sabido, os DES foram criados originariamente para substituir os movimentos de ouro e prata associados ao comércio internacional. Os países aderentes tinham um depósito de reservas de divisas junto do FMI, o que lhes conferia um crédito sobre a instituição, que assumia a forma de DES. Em caso de uma transacção comercial entre os países A (exportador) e B (importador), o FMI limita-se a efectuar uma operação contabilística em que uma parte dos DSE (ou SDR) do país importador é afecta ao exportador. O montante inicial de SDR (Special Drawing Rights) de cada país depende da sua quota de divisas. O valor dos SDR é actualmente função de um cabaz de moedas em já entra o Euro.O que é inovador aqui é a possibilidade que está a ser dada ao FMI de emitir novos DES, até um máximo de 250.000 milhões, sem ter que existir um depósito real de divisas. Isto é, o FMI passa a poder valer-se de um instrumento semelhante ao Quantitative Easing dos Bancos Centrais. O FMI emitirá SDR nesse montante e irá distribuí-los pelos diversos países, aumentando portanto os direitos de cada um em reservas em divisas, sem qualquer contrapartida real para o fundo.O objectivo desta forma desta forma de criação monetária é claro: com maiores créditos sobre divisas no FMI, os países deficitários nas transacções internacionais (ou mais genericamente, em situações de crise de balança de pagamentos) mais dificilmente entram em incumprimento, dado este recurso adicional.Ainda a nível de instituições financeiras internacionais, a cimeira do G20 decidiu atribuir aos Bancos Multilaterais de Desenvolvimento, como o Asian Development Bank, 100 mil milhões de dólares.Em resumo, as instituições financeiras internacionais recebem potencialmente 850 mil milhões de dólares (Japão + EU + China + SDR + BMD) para auxílio a países emergentes e PVDs que necessitem de financiar despesa pública contra cíclica (pacotes de estímulos), recapitalização bancária, dívida externa, etc.No que toca aos países mais pobres, o FMI deverá proceder com as vendas já autorizadas de reservas de ouro, revertendo os ganhos dessas vendas para auxílio a esses países.Os países com fundamentos económicos sólidos poderão fazer uso do novo instrumento do FMI, as Flexible Credit Lines, para fazer face a crises de balanças de pagamentos, sobretudo as despoletadas por repatriamento de capital estrangeiro, motivado pela crise do crédito. A ideia deste instrumento recente é mais preventiva: evitar a ocorrência de uma provável crise. E não está ligado aos constrangimentos clássicos das políticas do FMI sobre a política interna. O México foi o primeiro país a solicitar este instrumento.Em relação, às instituições financeiras internacionais, foi ainda acordada a revisão do seu modo de governação, com uma realocação de direitos de voto, quotas e voz em função de uma nova ordem económica que, face à tradicional claramente subrepresenta os países emergentes. Assim, a revisão de direitos acordada em Abril de 2008, deverá entrar de imediato em vigor, enquanto uma nova revisão deverá estar pronta o mais tardar em Janeiro de 2011.A representatividade a nível do Banco Mundial deverá também ser revista e ainda mais cedo. As presidências do FMI e do BM deixarão de ser coutadas da Europa e dos EUA, passando a ser exclusivamente baseadas em critérios de meritocracia.Dito de outra forma, o estatuto de superpotência económica da China passará a ser reconhecido mesmo na ausência de um contributo maciço para o FMI, dando corpo à tese do PM adjunto Wang Qishan que defendia há dias que não tinha sentido o contributo de cada país passar apenas pelo montante de divisas disponíveis. Dadas as necessidades internas chinesas, tendo em mente o tal crescimento anual de 8%, o alto nível de desemprego e a ausência de uma rede social de apoio, este não era entendido por Pequim como o momento indicado para responder a um pedido deste tipo. Ainda assim, o peso económico e geopolítico da China levou adiante as suas pretensões junto do FMI.Uma nota final nesta matéria para a falácia dos tais números em alguma imprensa e em algumas partes do comunicado. O FMI não será o recipiente líquido de 1 biliões de dólares, como, por exemplo podia ser lido no Wall Street Journal, neste artigo. Quando muito, receberá 500 mil milhões de dólares, podendo “criar moeda”, concedendo liquidez no montante de 250 mil milhões de dólares, contra a emissão de SDR. Contudo, isto totaliza 750 mil milhões. Não sendo conhecido o resultado das vendas de ouro, é apenas isto que seriamente se pode dizer.3) Comércio Internacional mas não tanto A confusão deliberadamente provocada aos jornalistas por Gordon Brown passou por somar a esta verba uma outra que tem um destino totalmente diferente. Como ainda se observava ontem, um dos problemas actuais do comércio internacional passa pela ausência de crédito à exportação (seguros, transportes, atrasos de entrega, atrasos de recebimentos, etc.). Como se constata no gráfico abaixo, desde 2007, 70% dos bancos dizem que o preço das cartas de crédito aumentou, 90% afirmam que os empréstimos para exportação estão mais elevados. As cartas de crédito são uma ferramenta comum que os importadores usam para demonstrar aos exportadores que têm capacidade de pagamento. A OMC revelava há dias outro inquérito aos bancos que davam conta de um decréscimo de 47% nos pedidos de cartas de crédito de exportação, e de 43% no valor monetário agregado a que essas cartas diziam respeito.O G20 procurou atender a esta questão com a libertação de 250 mil milhões de dólares para trade finance. Não é claro quem financiará estas verbas, mas especula-se numa colaboração da China.Convirá dizer que em matéria de comércio internacional, este foi o único resultado da cimeira. Não é de todo negligenciável para PMEs exportadoras. É certo que se reafirmou o compromisso da Cimeira de Washington, mas também é certo que 17 dos 20 países acabaram por erguer algum tipo de proteccionismo. Por isso, a política do “name and shame” baseado na inspecção trimestral com denúncia pública dos países que ergueram algum tipo de barreira parece-me inconsequente. Ninguém se preocupou em ser apontado como proteccionista nos últimos 6 meses. E apesar da declaração final incluir uma menção ao desejo de vir a terminar as rondas de Doha, fica-se por esse wishful thinking.Em suma, para os que esperavam uma resolução clara a favor do comércio livre, os G20 não a produziram. A que relevava mais a Hu Jintao e Obama tinha sido acordada no encontro bilateral. A esse respeito notar que o texto nomeia as desvalorizações competitivas como prática proteccionista, mas, como não poderia deixar de ser não nomeava a China.4) Regulação e Paraísos Fiscais: o consenso de Obama entre Jintao e SarkozyA nível de regulação financeira produziram-se avanços significativos, ainda que não aindo tão longe como defendia Sarkozy. O Financial Stability Forum foi rebaptizado de Financial Stability Board, e viu as suas competências aumentadas. Mas prevaleceu a tese sino-americana de uma entidade supranacional não se substituir aos reguladores nacionais.A lista final de países com paraísos fiscais merecedores de sanções por não estarem em processo de divulgação de informação acabou por incluir quatro nomes apenas: Uruguai, Malásia, Filipinas e Costa Rica.Essa listagem acaba por incluir duas outras categorias além dos incumpridores: os países que cumprem; os países que assumiram compromissos de revelar informação mas ainda não os cumprem completamente. A China conseguiu ser incluída no primeiro grupo, com um nota de rodapé (!!) a dizer que as Regiões Administrativas Especiais (leia-se HK e Macau) estão no grupo II, isto é, assumiram o compromisso de divulgar informação. Esta questão levantou acesa discussão entre Hu Jintao e Sarkozy, mas a mediação de Barack Obama permitiu sanar o conflito. O que não o deve ter prejudicado aos olhos de Jintao.Em matéria de regulação foram ainda assumidos uma série de princípios genéricos, mas cujos detalhes precisam de ser especificados pelos órgãos próprios como o FSB. O avanço mais significativo deu-se ao nível da regulação dos hedge funds que representem risco sistémico. Subscritos como princípios genéricos foram: a regulação das agências de rating; a necessidade de, após a crise, exigir maior solvabilidade aos bancos, que actue como buffer contra défices de liquidez em tempos de crise; a procura de soluções contabilísticas que não amplifiquem os ciclos, entre outras sem particular discussão. Em todo o caso, merece ser dito que a hipótese aventada pela França de banir os credit default swaps e instituir uma clearing house para derivados não foi em frente.5) Políticas de Estímulos e a ortodoxia da Senhora Merkel Em matérias de política orçamental e fiscal, o impasse entre Merkel e Obama foi o que se previa. Mesmo com o Der Spiegel a entrevistar ontem um conceituado economista que afirmava categoricamente que Merkel não compreendia os mecanismos de combate a esta crise. Aliás a solução referida atrás de o FMI poder injectar mais liquidez provocou, segundo os presentes, um nervosismo claro em Merkel, que não deixou de ver ali um fantasma inflacionista.6) Obamanomics no documento: direitos sociais, laborais e investimento verdeComo notas finais importa dizer que o documento incluía uma explicação de que como os pacotes de estímulos, envolvendo sectores estratégicos e de futuro poderão gerar receitas fiscais que venham a amortizar grande parte do défice – o que claramente deve ter custado a Merkel assinar; incentivava os investimentos nos sectores energéticos e ambientais; assumia que os países deviam estar preparados para a cimeira de Copenhaga, em matéria ambiental (no que a posição chinesa, após o diálogo de ontem com Obama) não levantava obstáculos.E porventura mais surpreendentemente, mas muito louvável, incluía a menção ao Social Summit que decorreu em Roma: apostando nas medidas de protecção social, de assistência aos desempregados, rendimento de inserção, etc. E incluía menção à necessidade de uma cooperação estreita com a Organização Internacional do Trabalho, para defesa da estabilidade dos trabalhadores e das suas famílias, apelando à responsabilidade social das empresas e à aposta na formação profissional.7) Conclusão: Obama ria-se da Reagonomics que extinguiu e do princípio do mercado justo que aterrou em HeathrowDe que se ria Obama? Do show diplomático. Do sucesso da reunião com Jintao e de ter hoje salvaguardado todos os interesses dos EUA e da China. E da ilusão da dupla Merkel-Sarkozy de terem terminado com o neoliberalismo individualista. Porque verdadeiramente, foi Obama o construtor de consensos, e nesse domínio fica sempre melhor ter sido um americano a enterrar os 30 anos de Reaganomics! O modelo de mercado regulado e com direitos laborais chegou hoje, e aterrou em Londres. Pela minha parte, saúdo-o!


1. Introdução: o sorriso de ObamaO documento de síntese da Cimeira do G20, que teve lugar ontem em Londres, é em si mesmo um sinal do espírito com que os líderes dos países responsáveis por mais de 80% da produção mundial chegaram a esta reunião: confuso, omisso e contraditório, nos 29 pontos em que está estruturado. Daí, muito provavelmente, as contradições e erros na melhor imprensa mundial. Alguns números, como se suspeitava, foram simplesmente agregados sem nexo particular, de forma a parecerem bem em conjunto. E a produzirem uma sequência impressionante de verbas, que Gordon Brown debitou de forma o mais convincente possível na conferência de imprensa final. E de tal forma se preparou para aquele papel, que toda a sequência confusa de números soava a falso.Num gesto de enorme elegância, Nicholas Sarkozy dava, em simultâneo a sua própria conferência de imprensa. E daí até chegar a Paris, dizem fontes próximas, que não mais se absteve de enunciar a forma como tinha saído vitorioso de Londres, numa espécie de vingança histórica de Napoleão. Chegando mesmo a comentar, num primor de delicadeza, que Barack Obama estava impreparado para a cimeira em matéria de regulação financeira. Tomando Sarkozy a sério, seria de sentir arrepios se pensássemos que no lugar de Obama tinha estado hoje John MacCain: o homem que há um ano e três meses dizia num debate no New Hampshire, que numa economia pujante as taxas de juro deveriam ser zero. Elas aí estão, e a pujança da economia também! Pelo menos dos seus fundamentals…Se de Mohammed Singh, Dmitry Medvedev e Angela Merkel não seria de esperar grande expressividade facial – o primeiro devido às eleições que se avizinham, o segundo porque tenta emular o seu PM, e a terceira porque tinha razões de preocupação – já o exultante Presidente da Comissão Europeia quase fazia, não se cansava de distribuir elogios por todos e pelo grande trabalho que se tinha feito: um esforço de união sem paralelo! O que é compreensível vindo de quem está habituado a lidar diariamente com uma figura de retórica conhecida por União.Hu Jintao tinha todos os motivos para estar satisfeito. E da sua forma peculiar, ia-o deixando transparecer. Mas verdadeiramente igual a si mesmo, com aquela inata capacidade para encher de esperança uma sala vazia, estava Barack Obama. Não tanto pelo show de charme diplomático que passeou por Londres, com Michelle a cumprir brilhantemente a sua parte, dando aulas aos que duvidavam da sua aptidão para a política externa. Os Obama tornaram-se numa espécie de David e Victoria Beckham da diplomacia internacional. E com mais uns dias, Michelle era eleita a “Primeira-Dama do Povo”. O Presidente americano transbordava de satisfação no final da cimeira, e trocava piadas com os jornalistas europeus, mas porque tinha genuínas razões para estar satisfeito! A viagem a Londres valeu-lhe a maçada da constipação.Manipulação de números e omissões à parte, o documento de 29 pontos produzido pela Cimeira do G20, transparecia em muitas construções frásicas, e em muitos temas, o estilo Obama. Alguns de nós, ocidentais, podíamos não saber o que ele esperava de Londres (desde logo, a esmagadora maioria dos media americanos não fazia ideia). Mas depois do sucesso estrondoso do encontro de ontem com Hu Jintao, a declaração da cimeira dos G20 podia ter título claro: Yes, we Can! Em homenagem ao homem que mais contribuiu para a escrever. O mais engraçado é que nem a própria Katie Couric, da CBS News, que reconheceu o entusiasmo de Obama no final, se deu ao trabalho de ler aquela declaração. E teria percebido, no final das sete páginas, a boa disposição do seu presidente.2) O FMI ou a Fénix renascida, e o poder do PacíficoA declaração estruturada em 5 pontos, tem alguns temas surpreendentes, alguns temas vencedores, e algumas teses vencidas. No essencial, a versa sobre as Instituições Financeiras Internacionais, a Regulação Financeira, o Crescimento, o Comércio Internacional, e uma recuperação sustentável e para todos.A atenção mediática recaiu fortemente sobre os números. E por isso importa começar pelas Instituições Financeiras Internacionais. Em particular, pelo herdeiro mais directo de Bretton Woods, o FMI, que, como se dizia recentemente, parecia estar moribundo antes da crise. E esse carácter fúnebre tinha-se materializado nos últimos tempos nas maciças reduções do seu staff técnico especializado.De facto, no início de 2008, o então G7 decidiu-se a promover uma campanha para cortar as despesas do FMI. Alemães, Franceses, Britânicos, uma complacente Administração Bush, e outros países europeus, promoveram uma redução de pessoal no FMI na ordem dos 20%, incluindo uma vastidão de economistas experimentados em situações de crise. Quando os problemas eclodiram em força, no último quadrimestre de 2008, o FMI viu-se sem capacidade de resposta às múltiplas situações que lhe eram apresentadas. Essa situação mantém-se até hoje, com um fundo a trabalhar, em parte à custa de estagiários. Que razões presidiram a esta opção política? Simon Johnson argumentava recentemente no The New Republic, que o facto de o FMI ter em 2007 proferido diversas declarações públicas avisando da crise iminente no sistema financeiro, terá desagradado a europeus e americanos.No essencial, esta realidade permanece imutável. Mas o FMI, recuperado das suas precoces cinzas, é claramente o primeiro vencedor desta reunião magna. Tal como era pretensão de Timothy Geithner, o polémico Secretário do Tesouro norte-americano, as verbas do FMI para auxílio a economias em dificuldade, em particular países em vias de desenvolvimento e países emergentes com problemas de liquidez e solvabilidade, não duplicaram, como parecia que iria suceder, na sequência de reunião de 14 de Março, mas triplicaram! Isto é, de 250 mil milhões de dólares para auxílio a essas economias, o FMI passou a dispor de 750 mil milhões. E estes 500 mil milhões adicionais dividem-se em duas parcelas. Serão de imediato disponibilizados 250 mil milhões de dólares, provenientes quer de 100 mil milhões que o Japão tinha avançado, quer de 100 mil milhões que uma relutante UE, percebendo que a fronteira da crise está neste momento na Europa de Leste e em alguns países da Europa Ocidental, avançou na semana passada, quer de 40 mil milhões que a China terá disponibilizado na Cimeira.Subsequentemente, e na medida das necessidades de ajuda que forem surgindo, o FMI poderá receber até mais 250 mil milhões de dólares, quer pedindo-os aos países abrangidos pelo New Arrangements to Borrow ou NAB, a modalidade de financiamento mais flexível ao dispor do FMI, e na qual entram presentemente 26 países e instituições. Não integrando a China esta lista, será de supor que não será à China que o FMI poderá pedir auxílio para esta verba.O FMI poderá ainda, se necessário para satisfazer constrangimentos de liquidez em PVDs ou emergentes, recorrer à emissão de Direitos Especiais de Saque, até um montante de 250 mil milhões de dólares. Como é sabido, os DES foram criados originariamente para substituir os movimentos de ouro e prata associados ao comércio internacional. Os países aderentes tinham um depósito de reservas de divisas junto do FMI, o que lhes conferia um crédito sobre a instituição, que assumia a forma de DES. Em caso de uma transacção comercial entre os países A (exportador) e B (importador), o FMI limita-se a efectuar uma operação contabilística em que uma parte dos DSE (ou SDR) do país importador é afecta ao exportador. O montante inicial de SDR (Special Drawing Rights) de cada país depende da sua quota de divisas. O valor dos SDR é actualmente função de um cabaz de moedas em já entra o Euro.O que é inovador aqui é a possibilidade que está a ser dada ao FMI de emitir novos DES, até um máximo de 250.000 milhões, sem ter que existir um depósito real de divisas. Isto é, o FMI passa a poder valer-se de um instrumento semelhante ao Quantitative Easing dos Bancos Centrais. O FMI emitirá SDR nesse montante e irá distribuí-los pelos diversos países, aumentando portanto os direitos de cada um em reservas em divisas, sem qualquer contrapartida real para o fundo.O objectivo desta forma desta forma de criação monetária é claro: com maiores créditos sobre divisas no FMI, os países deficitários nas transacções internacionais (ou mais genericamente, em situações de crise de balança de pagamentos) mais dificilmente entram em incumprimento, dado este recurso adicional.Ainda a nível de instituições financeiras internacionais, a cimeira do G20 decidiu atribuir aos Bancos Multilaterais de Desenvolvimento, como o Asian Development Bank, 100 mil milhões de dólares.Em resumo, as instituições financeiras internacionais recebem potencialmente 850 mil milhões de dólares (Japão + EU + China + SDR + BMD) para auxílio a países emergentes e PVDs que necessitem de financiar despesa pública contra cíclica (pacotes de estímulos), recapitalização bancária, dívida externa, etc.No que toca aos países mais pobres, o FMI deverá proceder com as vendas já autorizadas de reservas de ouro, revertendo os ganhos dessas vendas para auxílio a esses países.Os países com fundamentos económicos sólidos poderão fazer uso do novo instrumento do FMI, as Flexible Credit Lines, para fazer face a crises de balanças de pagamentos, sobretudo as despoletadas por repatriamento de capital estrangeiro, motivado pela crise do crédito. A ideia deste instrumento recente é mais preventiva: evitar a ocorrência de uma provável crise. E não está ligado aos constrangimentos clássicos das políticas do FMI sobre a política interna. O México foi o primeiro país a solicitar este instrumento.Em relação, às instituições financeiras internacionais, foi ainda acordada a revisão do seu modo de governação, com uma realocação de direitos de voto, quotas e voz em função de uma nova ordem económica que, face à tradicional claramente subrepresenta os países emergentes. Assim, a revisão de direitos acordada em Abril de 2008, deverá entrar de imediato em vigor, enquanto uma nova revisão deverá estar pronta o mais tardar em Janeiro de 2011.A representatividade a nível do Banco Mundial deverá também ser revista e ainda mais cedo. As presidências do FMI e do BM deixarão de ser coutadas da Europa e dos EUA, passando a ser exclusivamente baseadas em critérios de meritocracia.Dito de outra forma, o estatuto de superpotência económica da China passará a ser reconhecido mesmo na ausência de um contributo maciço para o FMI, dando corpo à tese do PM adjunto Wang Qishan que defendia há dias que não tinha sentido o contributo de cada país passar apenas pelo montante de divisas disponíveis. Dadas as necessidades internas chinesas, tendo em mente o tal crescimento anual de 8%, o alto nível de desemprego e a ausência de uma rede social de apoio, este não era entendido por Pequim como o momento indicado para responder a um pedido deste tipo. Ainda assim, o peso económico e geopolítico da China levou adiante as suas pretensões junto do FMI.Uma nota final nesta matéria para a falácia dos tais números em alguma imprensa e em algumas partes do comunicado. O FMI não será o recipiente líquido de 1 biliões de dólares, como, por exemplo podia ser lido no Wall Street Journal, neste artigo. Quando muito, receberá 500 mil milhões de dólares, podendo “criar moeda”, concedendo liquidez no montante de 250 mil milhões de dólares, contra a emissão de SDR. Contudo, isto totaliza 750 mil milhões. Não sendo conhecido o resultado das vendas de ouro, é apenas isto que seriamente se pode dizer.3) Comércio Internacional mas não tanto A confusão deliberadamente provocada aos jornalistas por Gordon Brown passou por somar a esta verba uma outra que tem um destino totalmente diferente. Como ainda se observava ontem, um dos problemas actuais do comércio internacional passa pela ausência de crédito à exportação (seguros, transportes, atrasos de entrega, atrasos de recebimentos, etc.). Como se constata no gráfico abaixo, desde 2007, 70% dos bancos dizem que o preço das cartas de crédito aumentou, 90% afirmam que os empréstimos para exportação estão mais elevados. As cartas de crédito são uma ferramenta comum que os importadores usam para demonstrar aos exportadores que têm capacidade de pagamento. A OMC revelava há dias outro inquérito aos bancos que davam conta de um decréscimo de 47% nos pedidos de cartas de crédito de exportação, e de 43% no valor monetário agregado a que essas cartas diziam respeito.O G20 procurou atender a esta questão com a libertação de 250 mil milhões de dólares para trade finance. Não é claro quem financiará estas verbas, mas especula-se numa colaboração da China.Convirá dizer que em matéria de comércio internacional, este foi o único resultado da cimeira. Não é de todo negligenciável para PMEs exportadoras. É certo que se reafirmou o compromisso da Cimeira de Washington, mas também é certo que 17 dos 20 países acabaram por erguer algum tipo de proteccionismo. Por isso, a política do “name and shame” baseado na inspecção trimestral com denúncia pública dos países que ergueram algum tipo de barreira parece-me inconsequente. Ninguém se preocupou em ser apontado como proteccionista nos últimos 6 meses. E apesar da declaração final incluir uma menção ao desejo de vir a terminar as rondas de Doha, fica-se por esse wishful thinking.Em suma, para os que esperavam uma resolução clara a favor do comércio livre, os G20 não a produziram. A que relevava mais a Hu Jintao e Obama tinha sido acordada no encontro bilateral. A esse respeito notar que o texto nomeia as desvalorizações competitivas como prática proteccionista, mas, como não poderia deixar de ser não nomeava a China.4) Regulação e Paraísos Fiscais: o consenso de Obama entre Jintao e SarkozyA nível de regulação financeira produziram-se avanços significativos, ainda que não aindo tão longe como defendia Sarkozy. O Financial Stability Forum foi rebaptizado de Financial Stability Board, e viu as suas competências aumentadas. Mas prevaleceu a tese sino-americana de uma entidade supranacional não se substituir aos reguladores nacionais.A lista final de países com paraísos fiscais merecedores de sanções por não estarem em processo de divulgação de informação acabou por incluir quatro nomes apenas: Uruguai, Malásia, Filipinas e Costa Rica.Essa listagem acaba por incluir duas outras categorias além dos incumpridores: os países que cumprem; os países que assumiram compromissos de revelar informação mas ainda não os cumprem completamente. A China conseguiu ser incluída no primeiro grupo, com um nota de rodapé (!!) a dizer que as Regiões Administrativas Especiais (leia-se HK e Macau) estão no grupo II, isto é, assumiram o compromisso de divulgar informação. Esta questão levantou acesa discussão entre Hu Jintao e Sarkozy, mas a mediação de Barack Obama permitiu sanar o conflito. O que não o deve ter prejudicado aos olhos de Jintao.Em matéria de regulação foram ainda assumidos uma série de princípios genéricos, mas cujos detalhes precisam de ser especificados pelos órgãos próprios como o FSB. O avanço mais significativo deu-se ao nível da regulação dos hedge funds que representem risco sistémico. Subscritos como princípios genéricos foram: a regulação das agências de rating; a necessidade de, após a crise, exigir maior solvabilidade aos bancos, que actue como buffer contra défices de liquidez em tempos de crise; a procura de soluções contabilísticas que não amplifiquem os ciclos, entre outras sem particular discussão. Em todo o caso, merece ser dito que a hipótese aventada pela França de banir os credit default swaps e instituir uma clearing house para derivados não foi em frente.5) Políticas de Estímulos e a ortodoxia da Senhora Merkel Em matérias de política orçamental e fiscal, o impasse entre Merkel e Obama foi o que se previa. Mesmo com o Der Spiegel a entrevistar ontem um conceituado economista que afirmava categoricamente que Merkel não compreendia os mecanismos de combate a esta crise. Aliás a solução referida atrás de o FMI poder injectar mais liquidez provocou, segundo os presentes, um nervosismo claro em Merkel, que não deixou de ver ali um fantasma inflacionista.6) Obamanomics no documento: direitos sociais, laborais e investimento verdeComo notas finais importa dizer que o documento incluía uma explicação de que como os pacotes de estímulos, envolvendo sectores estratégicos e de futuro poderão gerar receitas fiscais que venham a amortizar grande parte do défice – o que claramente deve ter custado a Merkel assinar; incentivava os investimentos nos sectores energéticos e ambientais; assumia que os países deviam estar preparados para a cimeira de Copenhaga, em matéria ambiental (no que a posição chinesa, após o diálogo de ontem com Obama) não levantava obstáculos.E porventura mais surpreendentemente, mas muito louvável, incluía a menção ao Social Summit que decorreu em Roma: apostando nas medidas de protecção social, de assistência aos desempregados, rendimento de inserção, etc. E incluía menção à necessidade de uma cooperação estreita com a Organização Internacional do Trabalho, para defesa da estabilidade dos trabalhadores e das suas famílias, apelando à responsabilidade social das empresas e à aposta na formação profissional.7) Conclusão: Obama ria-se da Reagonomics que extinguiu e do princípio do mercado justo que aterrou em HeathrowDe que se ria Obama? Do show diplomático. Do sucesso da reunião com Jintao e de ter hoje salvaguardado todos os interesses dos EUA e da China. E da ilusão da dupla Merkel-Sarkozy de terem terminado com o neoliberalismo individualista. Porque verdadeiramente, foi Obama o construtor de consensos, e nesse domínio fica sempre melhor ter sido um americano a enterrar os 30 anos de Reaganomics! O modelo de mercado regulado e com direitos laborais chegou hoje, e aterrou em Londres. Pela minha parte, saúdo-o!

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