O valor das ideias: A maioria absoluta numa versão estranha do modelo de Hotelling

30-09-2009
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A Ciência Política tem-se valido por vezes de uma metáfora inspirada no modelo de concorrência espacial numa cidade linear desenvolvido por Hotelling (1929). Supondo dois vendedores de gelados numa praia como a da figura acima, assumindo que os consumidores estão uniformemente distribuídos ao longo da praia e que, na medida em que suportam um custo de transporte fixo por unidade de distância percorrida preferem o vendedor que estiver mais perto, e que os vendedores só competem pela localização - isto é, praticam o mesmo preço e vendem gelados idênticos - a previsão do modelo é clara: ambos os vendedores se vão colocar no centro, isto é, no ponto B. A intuição é facilmente perceptível se imaginarmos que os vendores começam por se colocar em A e em C (correspondendo A a um ponto que está a 1/3 do extemo esquerdo da figura e C a um ponto que está a 1/3 do extremo direito). Apesar de dividirem o mercado em quotas iguais, não havendo coordenação entre A e C, este equilíbrio não é estável: cada um deles tem um incentivo a deslocar-se para B, assumindo que o outro não reage, esperando manter os seus 50% e roubar quota de mercado ao rival. Por isso se localizam ambos em B.A analogia política é clara, em sistemas bipartidários (como seja, simplificadamente, o caso norte-americano), os dois candidatos presidenciais emergentes das primárias vão deslocar-se ideologicamente antes da eleição geral: o candidato republicano tipicamente desloca-se para a esquerda, e o candidato democrata para a direita. No final da campanha, as posições dos candidatos numa série de assuntos são praticamente indistinguíveis. A chamada luta pelo centro político, ou a ideia de que as eleições se ganham ao centro, resulta de um modelo deste tipo. O que torna curioso o caso português na actualidade: se há em geral um confronto pelo centro entre o PS e o PSD, o sistema está longe de ser bipartidário. O chamado equilíbrio de Nash em estratégias puras, nome com que a teoria dos jogos veio a baptizar o ponto B, depende desse bipartidarismo.É simples perceber com um terceiro vendedor de gelados, ou um terceiro partido no espectro político, altera o problema anterior. Se num terceiro momento em que os dois primeiros vendedores não podem saír de B mas um terceiro pode entrar e escolher a localização, o potencial entrante pode colocar-se num dos extremos da praia. Suponhamos que se coloca no extremo direito da praia. Terá 25% dos consumidores, enquanto os vendedores em B têm a sua quota reduzida a 37,5%. A lição política desta variante do modelo da cidade linear, claramente mais heterodoxa, é que se dois partidos são percepcionados pelo eleitorado quase como substitutos, indistinguíveis, há uma faixa suficientemente atractiva de eleitores para justificar o surgimento de partidos no extremo do espectro político. Não estou a dizer que a entrada para um extremo seja a melhor estratégia: se o terceiro partido também se posicionasse ao centro, todos teriam 33, 67% de eleitores. Mas a realidade política difere do modelo simplista da cidade linear: os custos de transporte podem não ser constantes, a distribuição dos eleitores não ser uniforme ao longo da praia, etc. Em política, é difícil o surgimento, num sistema bipartidário, com dois incumbentes solidificados, um terceiro surgir a contestar esse centro. A efémera vida política do PRD eanista de Hermínio Martinho pode ser entendida neste contexto.O que resulta destas considerações para o actual posicionamento dos partidos coincide com a intuição comum. Não no que diz respeito ao CDS e ao PSD, porque o problema aí é outro. Mas no que diz respeito à maioria absoluta que o PS de José Sócrates aspira reeditar. E às dificuldades que o surgimento com uma crescente força eleitoral de uma esquerda assumida e refrescante de um ponto de vista das ortodoxias, materializada no BE, levanta a esse desiderato. Mais a mais, num contexto de crise económica e social profunda que revitaliza as bases mais proletárias e sindicais da CDU, que surge também com bons resultados em sondagens recentes. Se em conjunto, o BE e a CDU vierem a representar, em Setembro, mais de 20% dos votos expressos pareceria, em circunstâncias normais, impossível ao PS alcançar a meta ambicionada. Bastava para isso (as tais circunstâncias normais) que o PSD voltasse ao seu núcleo, simbolicamente representado pelos 33% de Fernando Nogueira. Com o CDS a valer um mínimo de 5% (a votação do taxi), o PS aspiraria a 42% dos votos, o que constuma ser insuficiente para mais de 115 deputados.No quadro acima, desempenhando sempre bem José Sócrates o papel de aglutinador de votos de centro, geralmente menos ideologicamente conotados, e muitas vezes votando em função da percepção de credibilidade dos líderes políticos, seria fundamental que a estratégia de Sócrates tivesse em conta as figuras da chamada ala esquerda do partido, procurando uma convergência, em que essa ala esquerda se batesse sobretudo com o eleitorado mais urbanizado do BE. O próprio Sócrates parece ter a percepção disso com algum condimento adicional de esquerda no seu discurso. Esse condimento não é passível de assustar o eleitorado que vai buscar ao centro, porque votando em função do pragmatismo das circunstâncias, é-lhe fácil reconhecer no PS um bastião de estabilidade, que não vê noutras paragens.Em síntese, com um PSD ao nível de Fernando Nogueira em 94, e com um CDS com um mínimo de 5% de expressividade, parece totalmente adequada a actual estratégia eleitoral do PS, envolvendo um olhar mais atento às realidades sociais da esquerda em tempos de crise, e com uma pluralidade de vozes capazes de se bater pelo mesmo eleitorado que o Bloco. Seria contudo sempre uma estratégia de grande risco, dado que Paulo Portas tem, por diversas vezes, batido as expectativas. E dado que não é implausível que BE e CDU somem 25% dos votos. Esse desempenho da esquerda seria demolidor para qualquer ambição de maioria.A estratégia actual seria, no contexto do cenário em cima da mesa, bastante exigente para o equilíbrio que o PS necessitaria de realizar. Foi nesse sentido que me questionei sobre a oportunidade dos ataques a Louçã e ao BE no congresso socialista. Por um lado, porque lhes concedeu mais palco, por outro porque torna difícil a construção de uma maioria pós eleitoral com o BE. É um erro estratégico óbvio tomar Louçã por Paulo Portas no que toca à vontade de integrar o tal arco de governabilidade a qualquer custo.Francisco Louçã é uma figura marcante da história política portuguesa. Porque se bateu durante anos, sem baixar os braços, pelo seu PSR e estive a milímetros de ser eleito deputado. Chegou até aqui com um discurso coerente e rodeado de pessoas que no geral passam uma imagem de fidelidade aos princípios doutrinários do partido. Se Portas cortava os pulsos por uma aliança pós eleitoral, fosse com quem fosse, o BE não cederia com algum tipo de compromisso mínimo.É isto um verdadeiro problema para o PS? Errou Sócrates ao disparar sobre a esquerda quando precisa de minorar o seu protagonismo, e ter uma relação não conflituosa com a liderança do bloco? Parece-me que o PM está totalmene ciente desses aspectos, e situações como a da próxima Quinta, em que o PS poderá validar os projectos de lei do BE e votar contra o do PSD, servem já esse objectivo de apaziguamento. O que é ademais o que parece conforme um Estado de Direito democrático: a proposta do PSD assenta numa inversão do ónus da prova, o que é um dos maiores exercícios de demagogia concebíveis.Só não me parece, dentro da tal diferença entre Louçã e Portas, que isso chegue para comover o líder do Bloco. Até ao final da legislatura outras convergências e sinais terão de existir. Estando a legislatura perto do seu fim e havendo um confronto eleitoral pelo meio, a tarefa não se afigura simples.Há contudo uma hipótese errada neste cenário. E que terá de ser objecto de análise em post seguinte. No essencial, o PSD dificilmente vale esses 33% hoje em dia. E isso nada tem a ver com condicionantes fortes que agiram sobre a “cidade linear” no que toca ao seu posicionamento, que geram tensões internas óbvias. Essa reflexão fica para este Domingo. A sua consequência prática é que buffer de segurança de Sócrates à Direita é muito superior do que à Esquerda.


A Ciência Política tem-se valido por vezes de uma metáfora inspirada no modelo de concorrência espacial numa cidade linear desenvolvido por Hotelling (1929). Supondo dois vendedores de gelados numa praia como a da figura acima, assumindo que os consumidores estão uniformemente distribuídos ao longo da praia e que, na medida em que suportam um custo de transporte fixo por unidade de distância percorrida preferem o vendedor que estiver mais perto, e que os vendedores só competem pela localização - isto é, praticam o mesmo preço e vendem gelados idênticos - a previsão do modelo é clara: ambos os vendedores se vão colocar no centro, isto é, no ponto B. A intuição é facilmente perceptível se imaginarmos que os vendores começam por se colocar em A e em C (correspondendo A a um ponto que está a 1/3 do extemo esquerdo da figura e C a um ponto que está a 1/3 do extremo direito). Apesar de dividirem o mercado em quotas iguais, não havendo coordenação entre A e C, este equilíbrio não é estável: cada um deles tem um incentivo a deslocar-se para B, assumindo que o outro não reage, esperando manter os seus 50% e roubar quota de mercado ao rival. Por isso se localizam ambos em B.A analogia política é clara, em sistemas bipartidários (como seja, simplificadamente, o caso norte-americano), os dois candidatos presidenciais emergentes das primárias vão deslocar-se ideologicamente antes da eleição geral: o candidato republicano tipicamente desloca-se para a esquerda, e o candidato democrata para a direita. No final da campanha, as posições dos candidatos numa série de assuntos são praticamente indistinguíveis. A chamada luta pelo centro político, ou a ideia de que as eleições se ganham ao centro, resulta de um modelo deste tipo. O que torna curioso o caso português na actualidade: se há em geral um confronto pelo centro entre o PS e o PSD, o sistema está longe de ser bipartidário. O chamado equilíbrio de Nash em estratégias puras, nome com que a teoria dos jogos veio a baptizar o ponto B, depende desse bipartidarismo.É simples perceber com um terceiro vendedor de gelados, ou um terceiro partido no espectro político, altera o problema anterior. Se num terceiro momento em que os dois primeiros vendedores não podem saír de B mas um terceiro pode entrar e escolher a localização, o potencial entrante pode colocar-se num dos extremos da praia. Suponhamos que se coloca no extremo direito da praia. Terá 25% dos consumidores, enquanto os vendedores em B têm a sua quota reduzida a 37,5%. A lição política desta variante do modelo da cidade linear, claramente mais heterodoxa, é que se dois partidos são percepcionados pelo eleitorado quase como substitutos, indistinguíveis, há uma faixa suficientemente atractiva de eleitores para justificar o surgimento de partidos no extremo do espectro político. Não estou a dizer que a entrada para um extremo seja a melhor estratégia: se o terceiro partido também se posicionasse ao centro, todos teriam 33, 67% de eleitores. Mas a realidade política difere do modelo simplista da cidade linear: os custos de transporte podem não ser constantes, a distribuição dos eleitores não ser uniforme ao longo da praia, etc. Em política, é difícil o surgimento, num sistema bipartidário, com dois incumbentes solidificados, um terceiro surgir a contestar esse centro. A efémera vida política do PRD eanista de Hermínio Martinho pode ser entendida neste contexto.O que resulta destas considerações para o actual posicionamento dos partidos coincide com a intuição comum. Não no que diz respeito ao CDS e ao PSD, porque o problema aí é outro. Mas no que diz respeito à maioria absoluta que o PS de José Sócrates aspira reeditar. E às dificuldades que o surgimento com uma crescente força eleitoral de uma esquerda assumida e refrescante de um ponto de vista das ortodoxias, materializada no BE, levanta a esse desiderato. Mais a mais, num contexto de crise económica e social profunda que revitaliza as bases mais proletárias e sindicais da CDU, que surge também com bons resultados em sondagens recentes. Se em conjunto, o BE e a CDU vierem a representar, em Setembro, mais de 20% dos votos expressos pareceria, em circunstâncias normais, impossível ao PS alcançar a meta ambicionada. Bastava para isso (as tais circunstâncias normais) que o PSD voltasse ao seu núcleo, simbolicamente representado pelos 33% de Fernando Nogueira. Com o CDS a valer um mínimo de 5% (a votação do taxi), o PS aspiraria a 42% dos votos, o que constuma ser insuficiente para mais de 115 deputados.No quadro acima, desempenhando sempre bem José Sócrates o papel de aglutinador de votos de centro, geralmente menos ideologicamente conotados, e muitas vezes votando em função da percepção de credibilidade dos líderes políticos, seria fundamental que a estratégia de Sócrates tivesse em conta as figuras da chamada ala esquerda do partido, procurando uma convergência, em que essa ala esquerda se batesse sobretudo com o eleitorado mais urbanizado do BE. O próprio Sócrates parece ter a percepção disso com algum condimento adicional de esquerda no seu discurso. Esse condimento não é passível de assustar o eleitorado que vai buscar ao centro, porque votando em função do pragmatismo das circunstâncias, é-lhe fácil reconhecer no PS um bastião de estabilidade, que não vê noutras paragens.Em síntese, com um PSD ao nível de Fernando Nogueira em 94, e com um CDS com um mínimo de 5% de expressividade, parece totalmente adequada a actual estratégia eleitoral do PS, envolvendo um olhar mais atento às realidades sociais da esquerda em tempos de crise, e com uma pluralidade de vozes capazes de se bater pelo mesmo eleitorado que o Bloco. Seria contudo sempre uma estratégia de grande risco, dado que Paulo Portas tem, por diversas vezes, batido as expectativas. E dado que não é implausível que BE e CDU somem 25% dos votos. Esse desempenho da esquerda seria demolidor para qualquer ambição de maioria.A estratégia actual seria, no contexto do cenário em cima da mesa, bastante exigente para o equilíbrio que o PS necessitaria de realizar. Foi nesse sentido que me questionei sobre a oportunidade dos ataques a Louçã e ao BE no congresso socialista. Por um lado, porque lhes concedeu mais palco, por outro porque torna difícil a construção de uma maioria pós eleitoral com o BE. É um erro estratégico óbvio tomar Louçã por Paulo Portas no que toca à vontade de integrar o tal arco de governabilidade a qualquer custo.Francisco Louçã é uma figura marcante da história política portuguesa. Porque se bateu durante anos, sem baixar os braços, pelo seu PSR e estive a milímetros de ser eleito deputado. Chegou até aqui com um discurso coerente e rodeado de pessoas que no geral passam uma imagem de fidelidade aos princípios doutrinários do partido. Se Portas cortava os pulsos por uma aliança pós eleitoral, fosse com quem fosse, o BE não cederia com algum tipo de compromisso mínimo.É isto um verdadeiro problema para o PS? Errou Sócrates ao disparar sobre a esquerda quando precisa de minorar o seu protagonismo, e ter uma relação não conflituosa com a liderança do bloco? Parece-me que o PM está totalmene ciente desses aspectos, e situações como a da próxima Quinta, em que o PS poderá validar os projectos de lei do BE e votar contra o do PSD, servem já esse objectivo de apaziguamento. O que é ademais o que parece conforme um Estado de Direito democrático: a proposta do PSD assenta numa inversão do ónus da prova, o que é um dos maiores exercícios de demagogia concebíveis.Só não me parece, dentro da tal diferença entre Louçã e Portas, que isso chegue para comover o líder do Bloco. Até ao final da legislatura outras convergências e sinais terão de existir. Estando a legislatura perto do seu fim e havendo um confronto eleitoral pelo meio, a tarefa não se afigura simples.Há contudo uma hipótese errada neste cenário. E que terá de ser objecto de análise em post seguinte. No essencial, o PSD dificilmente vale esses 33% hoje em dia. E isso nada tem a ver com condicionantes fortes que agiram sobre a “cidade linear” no que toca ao seu posicionamento, que geram tensões internas óbvias. Essa reflexão fica para este Domingo. A sua consequência prática é que buffer de segurança de Sócrates à Direita é muito superior do que à Esquerda.

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