O valor das ideias: A falácia neoliberal do repouso nos estabilizadores automáticos como forma de combate à crise

30-09-2009
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Nas vésperas da cimeira do G20, Adam Posen, um dos mais conhecidos e reputados economistas norte-americanos foi entrevistado pelo Der Spiegel. O interesse do periódico germânico passava por tentar compreender o que pensava Posen sobre a posição da Administração Obama, quanto à relutância germânica em implementar um pacote de estímulos de grande escala. A entrevista está disponível online, mas vale sobretudo por dois aspectos. O mais hilariante passa pela forma frontal como Posen respondeu ao jornalista, quando questionado sobre os motivos de alguns economistas americanos manifestarem reservas quanto à condução económica de Angela Merkel. Da forma mais crua e directa possível Posen respondeu: “She does not get Basic Economics!”. E explicitou, que Merkel não compreendia os efeitos de curto prazo de uma política de estímulos, nem compreendia a necessidade presente de um enorme esforço global nesses estímulos, para aumentar a procura agregada. O jornalista germânico, com certeza pouco satisfeito com a resposta, fez-lhe uma nova pergunta, que em si mesmo é o segundo ponto de interesse da entrevista: queria saber se Posen não concordava que a dimensão da protecção social na Europa tornava os estados menos dependentes de gastos públicos, porque parte da recuperação da procura vinha dos estabilizadores automáticos, que seriam claramente mais fortes que nos EUA.Já discuti aqui a questão dos estabilizadores automáticos, e a forma como o neoliberalismo foi minorando a protecção social europeia, até ao ponto em que não é viável continuar a reclamar que os estabilizadores sejam bastante mais expressivos que nos EUA. Não é sequer isso que me interessa agora. Antes, importa salientar que a própria noção de que a estabilização pode ser feita pela via automática, tão do agrado da forma como a UEM encara a política orçamental, é profundamente errada, quer numa óptica económica de promoção da procura agregada para recuperação da crise, quer numa óptica social, que tenha em conta a duração do desemprego.Para o efeito, e para manter a discussão sem tecnicismos exagerados vamos considerar que o saldo orçamental do Estado é simplesmente a diferença entre um tipo de receitas apenas (impostos directos e indirectos) e dois tipos de despesas (transferências sociais para as famílias e gastos públicos). Os impostos directos incidem como sabemos sobre a obtenção do rendimento. Os impostos indirectos incidem sobre o consumo final, vamos supor que se trata apenas de IVA a uma taxa única. Nas transferências para as famílias consideremos somente subsídios de desemprego e nos gastos públicos entendamos estar o investimento público. Partindo de um endividamento nulo, não há serviço da dívida, para simplificar.O tradicional argumento em prol da não intervenção do Estado passa por considerar que o saldo orçamental tem a tal natureza contracíclica de estabilizador automático: quando se está numa fase expansiva do ciclo económico o desemprego é baixo, e os rendimentos individuais são elevados, bem como as receitas de IVA. É possível gerar até superávites orçamentais. Já numa situação de crise, o Estado nada deve fazer porque o saldo actua por si mesmo, qual mão invisível: diminuindo receita fiscal, porque as pessoas ganham menos no agregado, e como tal consomem também menos, ao mesmo tempo que o disparar dos subsídios de desemprego vai aumentar a componente de transferências. O argumento tradicional, a que o Der Spiegel dá eco, é estas transferências são mais generosas na Europa, sendo por isso, no limite, desnecessário agir nos gastos públicos.Deve ser das poucas situações em que a passagem a um défice orçamental dava alguma alegria aos neoliberais, porque sendo um processo automático de colocar mais rendimento nas mãos das famílias, o investimento público não tinha que ser manipulado para contrariar o ciclo depressivo. Para azar da macroeconomia mais do agrado dessa corrente, o argumento está fatalmente viciado. Por um lado, o subsídio de desemprego tem um montante máximo e uma duração máxima. Nesse sentido, em caso de recessão prolongada, podendo mesmo tornar-se em depressão, como pode, na Europa, ser o caso desta crise, não é inimaginável que essa rede social de apoio se esgote, podendo os indivíduos cair em situações onde não podem mais auferir do subsídio. Existindo algum mecanismo que ainda assim assegure um rendimento a desempregados de longa duração, todo o seu leque de competências profissionais, particularmente as decorrentes da experiência e de acompanhamento do progresso tecnológico, irão sendo sujeitas a uma depreciação. A generalidade da evidência mostra que o desemprego tem dependência de duração, exibindo o que em econometria se chamaria de um hazard decrescente: a probabilidade de sair do desemprego estando lá há n períodos de tempo, diminui com esse número de períodos de tempo.Não há nada nos estabilizadores automáticos que compense a depreciação do capital humano dos indivíduos. E essa perda de conhecimento produtivo imbuída nas pessoas é manifestamente uma perda para a sociedade como um todo. Se algum dia se voltar a empregar, o indivíduo será menos produtivo, e tanto mais quanto maior for a sofisticação técnica ocorrida enquanto esteve fora do mercado. Alguém poderá ainda gritar que se pode fazer formação profissional. Mas será sempre genérica. O equipamento específico com que operário trabalhasse, não está facilmente disponível nesse tipo de formações. E o desemprego de longa duração envolve também custos psicológicos e de auto estima, podendo traduzir-se facilmente em conflituosidade familiar e social. Eu sei, porque já alguns absolutistas do mercado livre me disserem neste blogue, que a ideia de custos sociais, que não passem pelo mercado, é uma mistificação. Mas pelo facto de ser difícil quantificá-los, isso não invalida que os custos existam.Mas existe uma segunda falácia na ideia de estabilizadores automáticos. Receber um subsídio de desemprego não cria emprego para ninguém. Isto é, se num cenário de uma crise como esta, com todos os traços de armadilha de liquidez, em que os empresários produzem cada vez menos porque antecipam procura menor e em que as famílias têm cada vez menos para gastar só poderá ser o Estado a voltar a dinamizar a Economia. A vertente de criação de emprego, e, logo, de retoma da actividade económica, não é minimamente estimulada pelos subsídios de desemprego. O que significa, que além das redes de protecção social, de natureza contra-cíclica mais automática, há um papel inquestionável para uma política económica pró-activa de investimento público.Se esse investimento conseguir em simultâneo aumentar a produtividade a longo prazo, e descer o desemprego, como, é por exemplo, o caso das apostas no alargamento da banda larga ou da estrutura de transportes, tanto melhor. Mas o essencial, é que os estabilizadores automáticos, por si só, não resolvem crise nenhuma. Em síntese, numa Europa sentada em cima das mãos, há espera que o efeito automático dos saldos públicos vá fomentar o combate à crise, está-se não só a destruir capital humano e capital social como a prolongar a duração da crise, arriscando mesmo tornar a recessão numa depressão efectiva. O neoliberalismo, enquanto alinhamento político, não tem estas considerações no seu âmago. Mas nenhuma corrente séria de pensamento económico, nem nenhuma abordagem política com consciência social pode ignorar estes factos.


Nas vésperas da cimeira do G20, Adam Posen, um dos mais conhecidos e reputados economistas norte-americanos foi entrevistado pelo Der Spiegel. O interesse do periódico germânico passava por tentar compreender o que pensava Posen sobre a posição da Administração Obama, quanto à relutância germânica em implementar um pacote de estímulos de grande escala. A entrevista está disponível online, mas vale sobretudo por dois aspectos. O mais hilariante passa pela forma frontal como Posen respondeu ao jornalista, quando questionado sobre os motivos de alguns economistas americanos manifestarem reservas quanto à condução económica de Angela Merkel. Da forma mais crua e directa possível Posen respondeu: “She does not get Basic Economics!”. E explicitou, que Merkel não compreendia os efeitos de curto prazo de uma política de estímulos, nem compreendia a necessidade presente de um enorme esforço global nesses estímulos, para aumentar a procura agregada. O jornalista germânico, com certeza pouco satisfeito com a resposta, fez-lhe uma nova pergunta, que em si mesmo é o segundo ponto de interesse da entrevista: queria saber se Posen não concordava que a dimensão da protecção social na Europa tornava os estados menos dependentes de gastos públicos, porque parte da recuperação da procura vinha dos estabilizadores automáticos, que seriam claramente mais fortes que nos EUA.Já discuti aqui a questão dos estabilizadores automáticos, e a forma como o neoliberalismo foi minorando a protecção social europeia, até ao ponto em que não é viável continuar a reclamar que os estabilizadores sejam bastante mais expressivos que nos EUA. Não é sequer isso que me interessa agora. Antes, importa salientar que a própria noção de que a estabilização pode ser feita pela via automática, tão do agrado da forma como a UEM encara a política orçamental, é profundamente errada, quer numa óptica económica de promoção da procura agregada para recuperação da crise, quer numa óptica social, que tenha em conta a duração do desemprego.Para o efeito, e para manter a discussão sem tecnicismos exagerados vamos considerar que o saldo orçamental do Estado é simplesmente a diferença entre um tipo de receitas apenas (impostos directos e indirectos) e dois tipos de despesas (transferências sociais para as famílias e gastos públicos). Os impostos directos incidem como sabemos sobre a obtenção do rendimento. Os impostos indirectos incidem sobre o consumo final, vamos supor que se trata apenas de IVA a uma taxa única. Nas transferências para as famílias consideremos somente subsídios de desemprego e nos gastos públicos entendamos estar o investimento público. Partindo de um endividamento nulo, não há serviço da dívida, para simplificar.O tradicional argumento em prol da não intervenção do Estado passa por considerar que o saldo orçamental tem a tal natureza contracíclica de estabilizador automático: quando se está numa fase expansiva do ciclo económico o desemprego é baixo, e os rendimentos individuais são elevados, bem como as receitas de IVA. É possível gerar até superávites orçamentais. Já numa situação de crise, o Estado nada deve fazer porque o saldo actua por si mesmo, qual mão invisível: diminuindo receita fiscal, porque as pessoas ganham menos no agregado, e como tal consomem também menos, ao mesmo tempo que o disparar dos subsídios de desemprego vai aumentar a componente de transferências. O argumento tradicional, a que o Der Spiegel dá eco, é estas transferências são mais generosas na Europa, sendo por isso, no limite, desnecessário agir nos gastos públicos.Deve ser das poucas situações em que a passagem a um défice orçamental dava alguma alegria aos neoliberais, porque sendo um processo automático de colocar mais rendimento nas mãos das famílias, o investimento público não tinha que ser manipulado para contrariar o ciclo depressivo. Para azar da macroeconomia mais do agrado dessa corrente, o argumento está fatalmente viciado. Por um lado, o subsídio de desemprego tem um montante máximo e uma duração máxima. Nesse sentido, em caso de recessão prolongada, podendo mesmo tornar-se em depressão, como pode, na Europa, ser o caso desta crise, não é inimaginável que essa rede social de apoio se esgote, podendo os indivíduos cair em situações onde não podem mais auferir do subsídio. Existindo algum mecanismo que ainda assim assegure um rendimento a desempregados de longa duração, todo o seu leque de competências profissionais, particularmente as decorrentes da experiência e de acompanhamento do progresso tecnológico, irão sendo sujeitas a uma depreciação. A generalidade da evidência mostra que o desemprego tem dependência de duração, exibindo o que em econometria se chamaria de um hazard decrescente: a probabilidade de sair do desemprego estando lá há n períodos de tempo, diminui com esse número de períodos de tempo.Não há nada nos estabilizadores automáticos que compense a depreciação do capital humano dos indivíduos. E essa perda de conhecimento produtivo imbuída nas pessoas é manifestamente uma perda para a sociedade como um todo. Se algum dia se voltar a empregar, o indivíduo será menos produtivo, e tanto mais quanto maior for a sofisticação técnica ocorrida enquanto esteve fora do mercado. Alguém poderá ainda gritar que se pode fazer formação profissional. Mas será sempre genérica. O equipamento específico com que operário trabalhasse, não está facilmente disponível nesse tipo de formações. E o desemprego de longa duração envolve também custos psicológicos e de auto estima, podendo traduzir-se facilmente em conflituosidade familiar e social. Eu sei, porque já alguns absolutistas do mercado livre me disserem neste blogue, que a ideia de custos sociais, que não passem pelo mercado, é uma mistificação. Mas pelo facto de ser difícil quantificá-los, isso não invalida que os custos existam.Mas existe uma segunda falácia na ideia de estabilizadores automáticos. Receber um subsídio de desemprego não cria emprego para ninguém. Isto é, se num cenário de uma crise como esta, com todos os traços de armadilha de liquidez, em que os empresários produzem cada vez menos porque antecipam procura menor e em que as famílias têm cada vez menos para gastar só poderá ser o Estado a voltar a dinamizar a Economia. A vertente de criação de emprego, e, logo, de retoma da actividade económica, não é minimamente estimulada pelos subsídios de desemprego. O que significa, que além das redes de protecção social, de natureza contra-cíclica mais automática, há um papel inquestionável para uma política económica pró-activa de investimento público.Se esse investimento conseguir em simultâneo aumentar a produtividade a longo prazo, e descer o desemprego, como, é por exemplo, o caso das apostas no alargamento da banda larga ou da estrutura de transportes, tanto melhor. Mas o essencial, é que os estabilizadores automáticos, por si só, não resolvem crise nenhuma. Em síntese, numa Europa sentada em cima das mãos, há espera que o efeito automático dos saldos públicos vá fomentar o combate à crise, está-se não só a destruir capital humano e capital social como a prolongar a duração da crise, arriscando mesmo tornar a recessão numa depressão efectiva. O neoliberalismo, enquanto alinhamento político, não tem estas considerações no seu âmago. Mas nenhuma corrente séria de pensamento económico, nem nenhuma abordagem política com consciência social pode ignorar estes factos.

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