PONTE EUROPA: CAMARADAS do BCAÇ. 1936

24-05-2009
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Podem repetir-se, na liturgia destas reuniões, as palavras; esgotar-se as ideias; fenecer a imaginação, mas revigoram-se os afectos no calor de cada novo encontro e fortalecem-se os laços em cada celebração que se renova.Regressamos sempre. Todos os anos. Os mordomos repetem-se – o Torres e o Barros – inexcedíveis na dedicação e no entusiasmo com que preparam estes almoços, militantes exemplares do nosso congresso anual. Repetem-se os oficiantes destas homilias breves sem as quais não ficariam suficientemente sublinhados os motivos do encontro.Mas hoje falta-nos o Freire, ele que esteve sempre na preparação dos anteriores encontros. Esta ausência dói-nos. O Freire deixou-nos, apanhado na picada da vida por uma emboscada fatal.Não é preciso dizer o que sentimos. Sem ele, sem qualquer um de nós, ficam mais pobres estes encontros. Mas sem ele, sem qualquer um de nós, sem muitos de nós, cumpriremos a vontade do Freire com os que puderem vir, mesmo quando já formos poucos, até os últimos serem. Hoje e sempre, nos anos que ainda houver.Reunimo-nos sem os que foram para Malapísia e Catur e não regressaram, vítimas da guerra injusta e inútil que os consumiu. E sem os que vieram e já saltaram da viatura da vida nas curvas do caminho. Uns e outros recordamos comovidamente. E os que não puderam vir.Camaradas, conhecemo-nos da pior maneira, no pior dos sítios. Como é possível termos tão boas recordações e laços tão profundos?– Fomos a única família que então tivemos, 26 meses. E a amizade que nasceu em cativeiro é protegida pelo arame farpado da memória. É uma granada defensiva que explode todos os anos, em estilhaços de alegria, sempre em local diferente.Trinta e seis anos passaram já desde o regresso. Cada um trouxe a sua guerra. Hoje, todos queremos a paz. Não nos envergonhamos do tempo que perdemos a atrasar a história e a dificultar o futuro de Moçambique. Isso foi culpa da ditadura que numa manhã de Abril começou a ser julgada.Um dos melhores homens que conhecemos – o Ti Luís Machambeiro, saudoso coronel Luís Vilela que comovidamente evoco – foi o comandante que nos coube. Foi também dos mais corajosos e dignos, comandante de um batalhão onde a brutalidade e as sevícias não eram permitidas. Do seu exemplo e da sua postura temos o direito de nos orgulharmos. Poupou-nos então a desonra e evita-nos hoje o remorso. O major Artur Beirão que a democracia justamente fez general é herdeiro legítimo que queremos saudar por muitos anos ainda.Repito palavras que há quatro anos escrevi: «Do navio que a todos nos levou para Moçambique, para trazer alguns menos dos que fomos na viagem penosamente longa do regresso, desse navio (...) – Vera Cruz – (...) resta uma memória sofrida. Dele apenas ficaram estas amarras que ainda hoje nos ligam, amarras que o medo e a revolta robusteceram, que resistem aos temporais da vida porque são fortes os laços e é firme o cais da fraternidade a que se prendem».Meus caros camaradas e amigos, saúdo fraternalmente as famílias de cada um de vós que este ano se juntaram à família que nós somos na cadeia de afectos que não deixaremos quebrar.Uma rajada de abraços.Caldas da Rainha, 8 de Outubro de 2005Nota: Palavras hoje proferidas, no almoço anual, aos sobreviventes da guerra colonial, do BCAÇ. 1936.

Podem repetir-se, na liturgia destas reuniões, as palavras; esgotar-se as ideias; fenecer a imaginação, mas revigoram-se os afectos no calor de cada novo encontro e fortalecem-se os laços em cada celebração que se renova.Regressamos sempre. Todos os anos. Os mordomos repetem-se – o Torres e o Barros – inexcedíveis na dedicação e no entusiasmo com que preparam estes almoços, militantes exemplares do nosso congresso anual. Repetem-se os oficiantes destas homilias breves sem as quais não ficariam suficientemente sublinhados os motivos do encontro.Mas hoje falta-nos o Freire, ele que esteve sempre na preparação dos anteriores encontros. Esta ausência dói-nos. O Freire deixou-nos, apanhado na picada da vida por uma emboscada fatal.Não é preciso dizer o que sentimos. Sem ele, sem qualquer um de nós, ficam mais pobres estes encontros. Mas sem ele, sem qualquer um de nós, sem muitos de nós, cumpriremos a vontade do Freire com os que puderem vir, mesmo quando já formos poucos, até os últimos serem. Hoje e sempre, nos anos que ainda houver.Reunimo-nos sem os que foram para Malapísia e Catur e não regressaram, vítimas da guerra injusta e inútil que os consumiu. E sem os que vieram e já saltaram da viatura da vida nas curvas do caminho. Uns e outros recordamos comovidamente. E os que não puderam vir.Camaradas, conhecemo-nos da pior maneira, no pior dos sítios. Como é possível termos tão boas recordações e laços tão profundos?– Fomos a única família que então tivemos, 26 meses. E a amizade que nasceu em cativeiro é protegida pelo arame farpado da memória. É uma granada defensiva que explode todos os anos, em estilhaços de alegria, sempre em local diferente.Trinta e seis anos passaram já desde o regresso. Cada um trouxe a sua guerra. Hoje, todos queremos a paz. Não nos envergonhamos do tempo que perdemos a atrasar a história e a dificultar o futuro de Moçambique. Isso foi culpa da ditadura que numa manhã de Abril começou a ser julgada.Um dos melhores homens que conhecemos – o Ti Luís Machambeiro, saudoso coronel Luís Vilela que comovidamente evoco – foi o comandante que nos coube. Foi também dos mais corajosos e dignos, comandante de um batalhão onde a brutalidade e as sevícias não eram permitidas. Do seu exemplo e da sua postura temos o direito de nos orgulharmos. Poupou-nos então a desonra e evita-nos hoje o remorso. O major Artur Beirão que a democracia justamente fez general é herdeiro legítimo que queremos saudar por muitos anos ainda.Repito palavras que há quatro anos escrevi: «Do navio que a todos nos levou para Moçambique, para trazer alguns menos dos que fomos na viagem penosamente longa do regresso, desse navio (...) – Vera Cruz – (...) resta uma memória sofrida. Dele apenas ficaram estas amarras que ainda hoje nos ligam, amarras que o medo e a revolta robusteceram, que resistem aos temporais da vida porque são fortes os laços e é firme o cais da fraternidade a que se prendem».Meus caros camaradas e amigos, saúdo fraternalmente as famílias de cada um de vós que este ano se juntaram à família que nós somos na cadeia de afectos que não deixaremos quebrar.Uma rajada de abraços.Caldas da Rainha, 8 de Outubro de 2005Nota: Palavras hoje proferidas, no almoço anual, aos sobreviventes da guerra colonial, do BCAÇ. 1936.

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