O valor das ideias: Sócrates e os defensores da inversão do ónus da prova

23-05-2009
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Sem querer roubar o mote ao meu estimado amigo José Gomes André, que afirma, e bem, que o debate na política portuguesa se parece cada vez mais com um confronto de claques de futebol, a verdade é que terei de começar este texto por um disclaimer, que julguei só ser aplicável a quem se quisesse pronunciar sobre o pontapé na bola português: “Eu não sou jurista!”. Ainda por cima, para voltar a um tema que apenas uma vez abordei, apelando àquela perspicácia em apontar as ironias subtis da vida presente dos textos do Mário Zambujal, ao glosar uma das suas crónicas que mais aprecio. Sucede que a histeria em seu redor se tomou de tal maneira insuportável na vida pública portuguesa, que terei de ir lá novamente: ao afamado caso Freeport. Só que para ser sério tenho de começar por dizer: Não sou jurista!Tanto quanto sei, o meu amigo e co-fundador deste projecto, Nuno Gouveia, também não. E o Nuno, ressalve-se, serve aqui meramente de exemplo, porque tem a pouca sorte de me ter por fã dos seus textos. Muitos outros dizem o mesmo na blogosfera e na imprensa. Em todo o caso, fiquei surpreendido ao cruzar-me com um texto seu, no Cachimbo, em que, começando por apelar à justiça, clama que “ou se prova que isto é totalmente falso, ou o primeiro-ministro tem de se demitir”. O “isto” refere-se a uma notícia de um semanário, segundo a qual, um magistrado teria contado a dois colegas que Alberto Costa lhe teria dito que José Sócrates lhe teria dito que se perdesse a maioria por causa do processo Freeport, haveria represálias. Logo falta ainda um “que”: algum dos colegas terá contado o que o referido magistrado lhe tinha dito. Ocorrem-me de imediato duas ideias. Uma, mais leve, é que sempre ouvi dizer que o povo era sábio, e que o povo dizia que quem conta um conto acrescenta um ponto. Por isso eu tomo nota aí de pelo menos 3 pontos a mais nesta história. Que muita jeito dariam ao Benfica. A segunda, infinitamente mais séria, do ponto de vista da minha sanidade, é que só me apetece parafrasear Alberto João, quando presidia a um congresso do PSD: “Meus senhores, está tudo grosso?”. Feita a ressalva da sanidade perdida, passo a elaborar: ainda ninguém se lembrou, nem o meu caro amigo Nuno, que se chama a isto “inverter o ónus da prova”? Lá está, não sou jurista, e vivi uns anos fora do país. No meu tempo, o dito ónus cabia a quem acusava. Com umas excepções curiosas no Direito Fiscal, mas isso era outro romance. Se o princípio ainda for válido, eu atrevo-me a dizer: Não, Nuno. Ninguém tem que provar que isso é falso. Pode é alguém ter de provar que é verdadeiro.Ademais, provar que a afirmação citada é falsa parece-me fisicamente impossível. Eu percebo que o país tenha evoluído das escutas telefónicas para os DVDs. Mas ainda só é possível gravar um som que de facto exista. Não sou físico (mais um disclaimer) mas suponho que “gravar o silêncio” não tem grande significado. Ora, admitindo, sem conceder, que Sócrates não tenha dito isso a Alberto Costa, alguém me explica como se grava uma não frase? Na mesma linha de raciocínio, se o Ministro nada tiver dito ao magistrado, como se prova isso? E se, por acaso, o dito magistrado não tiver contado nada a quem o veio relatar? Eu começo-me a sentir mais estúpido do que se sentiu o Scolari, mas o maluco sou eu?Supondo que ainda perceba alguma coisa das leis da física (pouco!), a prova que o Nuno pede a Sócrates e ao PS, não é exigível pelos princípios gerais da lei portuguesa, e nem sequer se pode produzir se os factos forem falsos.Começa a haver uma perigosa semelhança entre estes apelos e uma metodologia interessante que na Idade Média se usava para determinar se certa pessoa, acusada de práticas de magia negra, era de facto bruxa. A pessoa em causa deveria atravessar um rio profundo, de olhos vendados, caminhando sobre um tronco estreito e cilíndrico que unia as duas margens. Se chegasse à outra margem, era manifestamente culpada de bruxaria, sendo o jogo seguinte a festa um bela fogueira para a malvada. Se por acaso não chegasse à outra margem, precipitando-se no abismo, concluía-se que afinal era inocente.O mais fascinante no meio de tudo isto é a tese que corre em surdina , e a que o Nuno tem a decência de dar voz: “o PS tem de resolver este problema sob pena de a sua credibilidade, enquanto partido de poder ficar irremediavelmente afectada”. Uso a frase do Nuno como poderia ir buscar quinhentas iguais à blogosfera. O raciocínio é tão absorvente que deixou de ser escrutinado: a tese, que vem dos tempos da liderança de Marcelo Rebelo de Sousa, segundo a qual um partido na oposição não tem de avançar com propostas concretas, já ganhou raízes. Porque se o PSD acha que o PS deixaria de ser um partido de poder por ter um líder hipoteticamente corruptível, isso significa que estima que possa ganhar as legislativas por falta de comparência. Como não se avançam ideias, atacam-se pessoas. Mas não era exactamente disto que “o menino guerreiro”, sem ofensa para José Sócrates porque a comparação pode ofender qualquer um, se queixava?Além do plano de julgar e prender o PM, algém me pode explicar uma ou duas propostas de governação sólidas do PSD da Dra. Ferreira Leite?Disclaimer Final: eu não conheço o PM, e não tenho a menor ideia se ele é culpado ou inocente. Mas, num Estado de Direito presume-se que a Justiça funciona. Se, admitindo sem conceder, fosse culpado, e o PS se apresentasse com outro Secretário Geral na legislativas, continuavam a interessar-me mais as ideias e a seriedade dos compromissos dos partidos, do que o historial individual de ex-líderes. O maluco devo ser mesmo eu.[Este texto está também disponível aqui]


Sem querer roubar o mote ao meu estimado amigo José Gomes André, que afirma, e bem, que o debate na política portuguesa se parece cada vez mais com um confronto de claques de futebol, a verdade é que terei de começar este texto por um disclaimer, que julguei só ser aplicável a quem se quisesse pronunciar sobre o pontapé na bola português: “Eu não sou jurista!”. Ainda por cima, para voltar a um tema que apenas uma vez abordei, apelando àquela perspicácia em apontar as ironias subtis da vida presente dos textos do Mário Zambujal, ao glosar uma das suas crónicas que mais aprecio. Sucede que a histeria em seu redor se tomou de tal maneira insuportável na vida pública portuguesa, que terei de ir lá novamente: ao afamado caso Freeport. Só que para ser sério tenho de começar por dizer: Não sou jurista!Tanto quanto sei, o meu amigo e co-fundador deste projecto, Nuno Gouveia, também não. E o Nuno, ressalve-se, serve aqui meramente de exemplo, porque tem a pouca sorte de me ter por fã dos seus textos. Muitos outros dizem o mesmo na blogosfera e na imprensa. Em todo o caso, fiquei surpreendido ao cruzar-me com um texto seu, no Cachimbo, em que, começando por apelar à justiça, clama que “ou se prova que isto é totalmente falso, ou o primeiro-ministro tem de se demitir”. O “isto” refere-se a uma notícia de um semanário, segundo a qual, um magistrado teria contado a dois colegas que Alberto Costa lhe teria dito que José Sócrates lhe teria dito que se perdesse a maioria por causa do processo Freeport, haveria represálias. Logo falta ainda um “que”: algum dos colegas terá contado o que o referido magistrado lhe tinha dito. Ocorrem-me de imediato duas ideias. Uma, mais leve, é que sempre ouvi dizer que o povo era sábio, e que o povo dizia que quem conta um conto acrescenta um ponto. Por isso eu tomo nota aí de pelo menos 3 pontos a mais nesta história. Que muita jeito dariam ao Benfica. A segunda, infinitamente mais séria, do ponto de vista da minha sanidade, é que só me apetece parafrasear Alberto João, quando presidia a um congresso do PSD: “Meus senhores, está tudo grosso?”. Feita a ressalva da sanidade perdida, passo a elaborar: ainda ninguém se lembrou, nem o meu caro amigo Nuno, que se chama a isto “inverter o ónus da prova”? Lá está, não sou jurista, e vivi uns anos fora do país. No meu tempo, o dito ónus cabia a quem acusava. Com umas excepções curiosas no Direito Fiscal, mas isso era outro romance. Se o princípio ainda for válido, eu atrevo-me a dizer: Não, Nuno. Ninguém tem que provar que isso é falso. Pode é alguém ter de provar que é verdadeiro.Ademais, provar que a afirmação citada é falsa parece-me fisicamente impossível. Eu percebo que o país tenha evoluído das escutas telefónicas para os DVDs. Mas ainda só é possível gravar um som que de facto exista. Não sou físico (mais um disclaimer) mas suponho que “gravar o silêncio” não tem grande significado. Ora, admitindo, sem conceder, que Sócrates não tenha dito isso a Alberto Costa, alguém me explica como se grava uma não frase? Na mesma linha de raciocínio, se o Ministro nada tiver dito ao magistrado, como se prova isso? E se, por acaso, o dito magistrado não tiver contado nada a quem o veio relatar? Eu começo-me a sentir mais estúpido do que se sentiu o Scolari, mas o maluco sou eu?Supondo que ainda perceba alguma coisa das leis da física (pouco!), a prova que o Nuno pede a Sócrates e ao PS, não é exigível pelos princípios gerais da lei portuguesa, e nem sequer se pode produzir se os factos forem falsos.Começa a haver uma perigosa semelhança entre estes apelos e uma metodologia interessante que na Idade Média se usava para determinar se certa pessoa, acusada de práticas de magia negra, era de facto bruxa. A pessoa em causa deveria atravessar um rio profundo, de olhos vendados, caminhando sobre um tronco estreito e cilíndrico que unia as duas margens. Se chegasse à outra margem, era manifestamente culpada de bruxaria, sendo o jogo seguinte a festa um bela fogueira para a malvada. Se por acaso não chegasse à outra margem, precipitando-se no abismo, concluía-se que afinal era inocente.O mais fascinante no meio de tudo isto é a tese que corre em surdina , e a que o Nuno tem a decência de dar voz: “o PS tem de resolver este problema sob pena de a sua credibilidade, enquanto partido de poder ficar irremediavelmente afectada”. Uso a frase do Nuno como poderia ir buscar quinhentas iguais à blogosfera. O raciocínio é tão absorvente que deixou de ser escrutinado: a tese, que vem dos tempos da liderança de Marcelo Rebelo de Sousa, segundo a qual um partido na oposição não tem de avançar com propostas concretas, já ganhou raízes. Porque se o PSD acha que o PS deixaria de ser um partido de poder por ter um líder hipoteticamente corruptível, isso significa que estima que possa ganhar as legislativas por falta de comparência. Como não se avançam ideias, atacam-se pessoas. Mas não era exactamente disto que “o menino guerreiro”, sem ofensa para José Sócrates porque a comparação pode ofender qualquer um, se queixava?Além do plano de julgar e prender o PM, algém me pode explicar uma ou duas propostas de governação sólidas do PSD da Dra. Ferreira Leite?Disclaimer Final: eu não conheço o PM, e não tenho a menor ideia se ele é culpado ou inocente. Mas, num Estado de Direito presume-se que a Justiça funciona. Se, admitindo sem conceder, fosse culpado, e o PS se apresentasse com outro Secretário Geral na legislativas, continuavam a interessar-me mais as ideias e a seriedade dos compromissos dos partidos, do que o historial individual de ex-líderes. O maluco devo ser mesmo eu.[Este texto está também disponível aqui]

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