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27-06-2009
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Silves no contexto poético do Ândalus*Regressar à História de Silves 1. PreâmbuloSe me é permitido é meu desejo, antes de abordar o tema que me proponho tratar, evocar aqui a figura desse silvense e arabista que foi o Dr. José Domingos Garcia Domingues, infatigável perseguidor da história luso-árabe e, sem dúvida alguma, o maior especialista algarvio desta temática. O seu labor, em domínios tão diversos como foram os da geografia, história, literatura e filosofia dos nossos antepassados muçulmanos, merece ser apontado pelo que teve de infatigável dedicação e de apurado rigor científico. Não duvido que o seu nome ficará com o relevo que merece na história da cultura de Silves, e como um dos filhos mais ilustres da cidade. Desejo que o seu exemplo frutifique e abra o caminho ao aparecimento de futuros arabistas.Também não queria deixar de evocar aqui uma figura - Natália Correia - que tanto amou a cultura árabe, e que aqui estaria presente, por certo, se a morte a não tivesse surpreendido tão prematuramente. Lembro-me que já este ano, no Encontro Luso-Marroquino de Cooperação, que teve lugar em Rabat, ela avançou ao Sr. Presidente da Câmara a ideia de um festival anual de Poesia em Silves, celebrando a capital poética do Ândalus. Espero que as entidades oficiais e os filhos da cidade não deixem morrer a ideia, a bem da cultura portuguesa. 2. As OrigensDito isto, importa salientar que Silves cedo se tornou muçulmana, após a instituição do poder árabe na Península, e logo no séc. IX se começam a ter notícias sobre o seu papel no Ândalus. Não é por isso de estranhar que um número considerável de historiadores árabes tenha deixado nos seus trabalhos apontamentos frequentes sobre a geografia, a cultura e o protagonismo da Silves muçulmana. Citaremos, sem pretender esgotar a lista, al-Razi, Idrisi, Ibn al-Atir, Yaqut, Abu-l-Fida, al-Himyari, Ibn al-Abbar, al-Qazwini, al-Dimashqui e al-Maqqari. A crónica árabe anónima intitulada "Dhikr Bitad al-Andalus" refere que "Silves avantaja-se a todas as demais cidades de al-Andalus... Conseguiu um prestígio notável e uma glória excelsa".Por sua vez, al-Himyari diz-nos o seguinte:"... Os seus habitantes, assim como os dos povoados vizinhos são árabes originários do Iémen e de outras regiões da Arábia; falam árabe muito puro, exprimem-se de forma eloquente e recitam espontaneamente versos; todos, gente do campo e citadinos, são notavelmente dotados. As gentes das terras em redor de Silves são extremamente generosas e ninguém, nesse aspecto pode excedê-las".Al-Qazwimi, citando al-Udhri, diz o seguinte:"Entre as suas maravilhas está o facto de que nela mora muita gente; é raro que entre os habitantes de Silves se encontre alguém que não saiba fazer poesia ou não saiba de literatura.Se se passa junto a um lavrador que esteja ocupado com a junta e lhe pedires um poema, recitá-lo-á no momento; qualquer significado que lhe perguntes ou qualquer explicação que lhe solicites, explicá-los-á com toda a perfeição".A descrição de Idrisi é a seguinte:"Silves é uma linda cidade. Está situada numa colina. Tem um castelo com fortes muralhas e belos edifícios e fartos mercados. Habitam-na árabes do Iémen e de outras partes que falam uma língua muito pura e, com eloquência, sabem improvisar em verso, quer os homens da cidade quer os camponeses".Deste talento versejador e repentista das gentes da Silves muçulmana dão-nos testemunho ainda autores árabes, sendo de referir o que relata al-Maqqari a propósito do próspero Ibn-Munakhkhal, poeta, que tinha um filho que, apenas com 9 anos, versejava ao desafio mantendo o mote e a métrica.Al-Udhri confirma que, de facto, na Silves desse tempo, todos eram improvisadores em verso e que ninguém se faria rogado, ao ser interpelado, em responder de pronto e a propósito, em rimas adequadas.Al-Dimashqi diz mesmo que o talento poético dos silvenses era tal que ficou proverbial.É conhecido o célebre episódio do passeio do então ainda príncipe al-Mu'tamid com o seu vizir e grande poeta Ibn 'Ammar. Costumavam ir até um lugar de recreio conhecido como Pradaria de Prata. Uma tarde em que aí estavam, levantou-se uma brisa que eriçou a superfície das águas. Al-Mu'tamid de imediato fez o verso:"O vento faz a água uma loriga"dizendo ao seu amigo que o completasse. O facto é que Ibn 'Ammar não o fez. Mas uma rapariga que estava por perto respondeu rimando em árabe:"Que cota de malha seria se gelasse!"Deste talento poético nasceu uma relação que transformaria a jovem escrava na esposa favorita do rei-poeta e uma paixão que duraria até à morte.O interessante desta história, para o tema em causa, é que, até certa altura julgou-se que ela se teria passado em Sevilha, junto ao Guadalquivir.Hoje, todavia, em face dos dados disponíveis, a historiografia é levada a crer que a cena com a escrava Rumaykiyya se terá passado antes em Silves, nas margens do rio Arade. Isto parece ser confirmado pela cronologia dos factos históricos.A segunda conquista de Silves pelas forças abádidas de Sevilha, sob o comando nominal de al-Mu'tamid, que fica como governador, dá-se em 444 da Hégira. Dois anos depois, em 446, é que o príncipe desposa Rumaykiyya. Em 448, al-Mu'tadid, pai de al-Mu'tamid, tendo ouvido falar da fama e do ascendente sobre seu filho da ex-escrava, ordena-lhe que a leve à sua presença na corte de Sevilha, o que de facto vem a acontecer em 448.Este encadeamento de factos, em meados do séc. XI da era cristã, inculca a ideia de que tudo se terá passado durante os anos silvenses de al-Mu'tamid. ( Veja, em Web de al-Ándalus, em versão castelhana, um poema de Boabdil, último rei de Granada (séc. XV), que se refere a al-Mu'tamid e Rumaykiyya em Silves, junto ao rio Arade. )Podemos, pois, concluir que a rainha-poetisa Rumaykiyya não era senão mais uma dessas filhas da cidade a possuir o singular estro poético das gentes de Silves e do qual são herdeiros os inúmeros poetas populares de Portugal, cujo símbolo máximo foi o grande António Aleixo. 3. Os PoetasDito isto, importa que nos interroguemos se a fama poética de que Silves e a sua região gozam na história árabe tiveram de facto uma produção literária à altura dessa mesma fama.A lista dos poetas e homens de letras, naturais de Silves ou que em Silves viveram, e cujo nome até nós chegou, é de tal forma extensa que seria fastidiosos estar aqui a inumerá-la.Referiremos, até por questão de tempo, apenas os mais importantes e respeitantes aos períodos dos reinos taifas, ou seja, séculos XI a XIII, e que, no estado actual dos nossos conhecimentos, parecem ter sido, sem dúvida, dos mais fecundos.A lista de poetas que o Dr. Adalberto Alves cita atrás está situada num outro local deste "site" e a ela poderá ter acesso "clicando" a frase abaixo, em caractéres árabes (O meu coração é árabe). 4. A DescendênciaNão quereria terminar sem deixar bem acentuado que cinco séculos de soberania árabe, em territórios que depois haveriam de vir a ser Portugal, ou seja, mais de metade da sua história: não poderiam deixar de se traduzir numa profunda influência no génio lírico dos Portugueses.A ode da poesia árabe clássica, a já referida "qasida", que já vem da Arábia ante-Islâmica, e que os poetas luso-árabes tanto cultivaram, era, se é permitido empregar uma linguagem musical, uma espécie de "suite" com três temas principais:- Lamento do acampamento abandonado e evvocação da amada (nasib)- Descrição da travessia ddo deserto e respectivas atribulações (rahil)- Panegírico do patrono a quem o poema é dedicado (madih)Ora o "nasib" é precisamente uma canção de saudade onde o sentimento da ausência amada nos lugares queridos é exacerbado até às últimas consequências face à desamparada solidão do deserto.No "nasib" o poeta, ao voltar de uma excursão guerreira ou de uma errância nomádica pelo deserto, encontra apenas os restos do acampamento abandonado. A amada partira, entretanto, e ele evoca-a lembrando a sua beleza, os dias felizes que haviam passado, como diria Camões. "naquele engano de alma ledo e cego que a Fortuna não deixa durar muito".Este sentimento de saudade do "nasib" foi transposto e amplamente glosado na lírica luso-árabe.Al-Mu'tamid, o maior poeta luso-árabe, pergunta na sua célebre Evocação de Silves:"Saúda, por mim, Abu Bakr,Os queridos lugares de SilvesE diz-me se deles a saudadeÉ tão grande quanto a minha..." Ou neste trecho: "Porque deixas minh'alma abandonada?Se a tua ausência é uma longa noiteSeja nosso abraço d'amor a alvorada". Ou ainda: "Abandonaste-me.Que te fará voltar um dia?O tempo que estamos separados é a noiteOs momentos de estarmos juntos, uma lua cheia". Porém, não é apenas o tema da saudade que sugere a aproximação entre a poesia árabe do Ândalus e a primitiva lírica portuguesa. A estrutura paralelística das Cantigas, a existência do leixa-prem ou a referência ao amigo (habib em árabe) são outras tantas coincidências com a poesia estrófica do Ândalus. Nas cantigas de amor, de inspiração provençal como o próprio D. Diniz confessa, o conceito do amor cortês, em que a paixão pela mulher desejada é sublimada numa atitude de contemplação, no amor pelo amor, revisita-se o ideal arábico do amor "udri" enriquecido pela mística sufi. Talvez isso justifique os versos que Garcia de Resende fez inserir no seu Cancioneiro Geral:"Que quem sua trova feznão em França, mas em Fezaprendeu tal invenção". O tema da saudade na lírica portuguesa não é, pois, a nosso ver, mais do que a continuação de um remoto "leit-motiv" introduzido pelos filhos do crescente e que, percorrendo as cantigas trovadorescas, desemboca em Bernardim Ribeiro, Camões e todos os seus continuadores, até aos nossos dias. A célebre canção de Camões, de ambiência desértica,"Junto de um seco, fero e estéril monteInútil e despido, calvo, informeDa Natureza em tudo aborrecidoOnde nem ave voa ou fera dormeNem rio claro corre ou ferve fonte,Nem verde ramo faz doce ruído..." talvez o mais formidável momento saudosista da literatura portuguesa, é pela essência da sua expressão fatalista, e pela elevação do seu nobre sentimento estoico, um "nasib" de superior transfiguração que al-Mutanabi, o príncipe dos poetas árabes não desdenharia subscrever. Os árabes gozam da fama de serem o mais poético dos povos. Penso que os portugueses ombreiam com eles precisamente porque deles são parentes na família poética.A poesia sempre foi e continua a ser a mais alta expressão da cultura portuguesa e foi o próprio Fernando Pessoa a afirmar no seu ensaio "Da Ibéria e do Iberismo":"Nós Ibéricos, somos o cruzamento de duas civilizações - a romana e a árabe.Somos, por isso, mais complexos e fecundos...Vinguemos a derrota que os do Norte infligiram aos Árabes nossos maiores.Expiemos o crime que cometemos, ao expulsar da Península os árabes que a civilizaram". O sentimento da saudade percorre o território da nossa poesia, como um luminoso rio, do minhoto Teixeira de Pascoaes ao algarvio Cândido Guerreiro e à açoriana Natália Correia. E porque estamos no Algarve e em Silves, eu queria terminar a minha intervenção com a voz de um dos maiores líricos da literatura portuguesa, o poeta de S. Bartolomeu de Messines, João de Deus, que foi um "trovador" romântico, no que a palavra "trovador" tem de mais literal, pois que muitos dos nossos versos ele próprio os acompanhava à guitarra.Falei há pouco da "Qasida Abdunia" que o silvense Ibn Badrun havia comentado. Ode essa de sentido elegíaco comentando a força do destino que não poupa nem os poderosos.Ibn 'Abdun fá-lo de maneira superior em 75 versos de 2 hemistíquios cada. João Deus mantém firme a corda da tradição e canta o destino e a saudade do que ainda é, que, por transitório, está prestes a deixar de ser, em apenas 22 curtos e admiráveis versos.Acabaremos, pois, cotejando um excerto da ode de Ibn 'Abdun e um fragmento do poema "A vida" de João de Deus:BEM CEDO o destino nos fustiga...E para trás rastos vão ficando.Esconjuro-te! Deixa que te diga:Não chores por sombras, tudo é ilusão.Ai de quem com quimeras vai sonhandoEntre as garras e os dentes do leão!Que a vida não te iluda e entorpeça já.Para a vigília são teus olhos feitos.Ó noite, que do teu ócio nos afaste Alá.E dos que ao teu feitiço estão sujeitos!Teu prazer engana, víbora escondidaDetrás da flor: morde quem a quer colher.Quanta geração foi de Alá querida!O que ficou? - Poderá a memória responder?Quem pode a menor coisa pretender.E talentoso ou bom, deveras, ser?Quem pode dar recompensa ou castigar?Quem põe fim ao sopro da desgraça?Quem é que a Danação pode afastarOu a tragédia que o Destino traça?Ó vã generosidade, ó vão valor!Quem me defenderá do opressor- Calamidade em noite sem aurora -Quem? Se já não há regra a respeitarE o que resta é um silêncio imposto?Quem é que apagará o amargo gostoQue nunca ninguém pode apagar?A vida é o dia de hoje,A vida é ai que mal soa,A vida é sombra que foge,A vida é nuvem que voa;A vida é sonho tão leveQue se desfaz como a neveE como o fumo se esvai;A vida dura um momento,Mais leve que o pensamento,A vida leva-a o vento,A vida é folha que cai!A vida é flor na corrente,A vida é sopro suave,A vida é estrela cadente,Voa mais leve que a ave:Nuvem que o vento nos ares,Onda que o vento nos mares,Uma após outra lançou,A vida - pena caídaDa asa de ave ferida -De vale em vale impelidaA vida o vento a levou!VIVA A POESIA LUSO-ÁRABE! Adalberto Alves*in Actas das "II Jornadas de Silves", Setembro de 1992FONTE:http://www.geocities.com/baetaoliveira/mira1.html


Silves no contexto poético do Ândalus*Regressar à História de Silves 1. PreâmbuloSe me é permitido é meu desejo, antes de abordar o tema que me proponho tratar, evocar aqui a figura desse silvense e arabista que foi o Dr. José Domingos Garcia Domingues, infatigável perseguidor da história luso-árabe e, sem dúvida alguma, o maior especialista algarvio desta temática. O seu labor, em domínios tão diversos como foram os da geografia, história, literatura e filosofia dos nossos antepassados muçulmanos, merece ser apontado pelo que teve de infatigável dedicação e de apurado rigor científico. Não duvido que o seu nome ficará com o relevo que merece na história da cultura de Silves, e como um dos filhos mais ilustres da cidade. Desejo que o seu exemplo frutifique e abra o caminho ao aparecimento de futuros arabistas.Também não queria deixar de evocar aqui uma figura - Natália Correia - que tanto amou a cultura árabe, e que aqui estaria presente, por certo, se a morte a não tivesse surpreendido tão prematuramente. Lembro-me que já este ano, no Encontro Luso-Marroquino de Cooperação, que teve lugar em Rabat, ela avançou ao Sr. Presidente da Câmara a ideia de um festival anual de Poesia em Silves, celebrando a capital poética do Ândalus. Espero que as entidades oficiais e os filhos da cidade não deixem morrer a ideia, a bem da cultura portuguesa. 2. As OrigensDito isto, importa salientar que Silves cedo se tornou muçulmana, após a instituição do poder árabe na Península, e logo no séc. IX se começam a ter notícias sobre o seu papel no Ândalus. Não é por isso de estranhar que um número considerável de historiadores árabes tenha deixado nos seus trabalhos apontamentos frequentes sobre a geografia, a cultura e o protagonismo da Silves muçulmana. Citaremos, sem pretender esgotar a lista, al-Razi, Idrisi, Ibn al-Atir, Yaqut, Abu-l-Fida, al-Himyari, Ibn al-Abbar, al-Qazwini, al-Dimashqui e al-Maqqari. A crónica árabe anónima intitulada "Dhikr Bitad al-Andalus" refere que "Silves avantaja-se a todas as demais cidades de al-Andalus... Conseguiu um prestígio notável e uma glória excelsa".Por sua vez, al-Himyari diz-nos o seguinte:"... Os seus habitantes, assim como os dos povoados vizinhos são árabes originários do Iémen e de outras regiões da Arábia; falam árabe muito puro, exprimem-se de forma eloquente e recitam espontaneamente versos; todos, gente do campo e citadinos, são notavelmente dotados. As gentes das terras em redor de Silves são extremamente generosas e ninguém, nesse aspecto pode excedê-las".Al-Qazwimi, citando al-Udhri, diz o seguinte:"Entre as suas maravilhas está o facto de que nela mora muita gente; é raro que entre os habitantes de Silves se encontre alguém que não saiba fazer poesia ou não saiba de literatura.Se se passa junto a um lavrador que esteja ocupado com a junta e lhe pedires um poema, recitá-lo-á no momento; qualquer significado que lhe perguntes ou qualquer explicação que lhe solicites, explicá-los-á com toda a perfeição".A descrição de Idrisi é a seguinte:"Silves é uma linda cidade. Está situada numa colina. Tem um castelo com fortes muralhas e belos edifícios e fartos mercados. Habitam-na árabes do Iémen e de outras partes que falam uma língua muito pura e, com eloquência, sabem improvisar em verso, quer os homens da cidade quer os camponeses".Deste talento versejador e repentista das gentes da Silves muçulmana dão-nos testemunho ainda autores árabes, sendo de referir o que relata al-Maqqari a propósito do próspero Ibn-Munakhkhal, poeta, que tinha um filho que, apenas com 9 anos, versejava ao desafio mantendo o mote e a métrica.Al-Udhri confirma que, de facto, na Silves desse tempo, todos eram improvisadores em verso e que ninguém se faria rogado, ao ser interpelado, em responder de pronto e a propósito, em rimas adequadas.Al-Dimashqi diz mesmo que o talento poético dos silvenses era tal que ficou proverbial.É conhecido o célebre episódio do passeio do então ainda príncipe al-Mu'tamid com o seu vizir e grande poeta Ibn 'Ammar. Costumavam ir até um lugar de recreio conhecido como Pradaria de Prata. Uma tarde em que aí estavam, levantou-se uma brisa que eriçou a superfície das águas. Al-Mu'tamid de imediato fez o verso:"O vento faz a água uma loriga"dizendo ao seu amigo que o completasse. O facto é que Ibn 'Ammar não o fez. Mas uma rapariga que estava por perto respondeu rimando em árabe:"Que cota de malha seria se gelasse!"Deste talento poético nasceu uma relação que transformaria a jovem escrava na esposa favorita do rei-poeta e uma paixão que duraria até à morte.O interessante desta história, para o tema em causa, é que, até certa altura julgou-se que ela se teria passado em Sevilha, junto ao Guadalquivir.Hoje, todavia, em face dos dados disponíveis, a historiografia é levada a crer que a cena com a escrava Rumaykiyya se terá passado antes em Silves, nas margens do rio Arade. Isto parece ser confirmado pela cronologia dos factos históricos.A segunda conquista de Silves pelas forças abádidas de Sevilha, sob o comando nominal de al-Mu'tamid, que fica como governador, dá-se em 444 da Hégira. Dois anos depois, em 446, é que o príncipe desposa Rumaykiyya. Em 448, al-Mu'tadid, pai de al-Mu'tamid, tendo ouvido falar da fama e do ascendente sobre seu filho da ex-escrava, ordena-lhe que a leve à sua presença na corte de Sevilha, o que de facto vem a acontecer em 448.Este encadeamento de factos, em meados do séc. XI da era cristã, inculca a ideia de que tudo se terá passado durante os anos silvenses de al-Mu'tamid. ( Veja, em Web de al-Ándalus, em versão castelhana, um poema de Boabdil, último rei de Granada (séc. XV), que se refere a al-Mu'tamid e Rumaykiyya em Silves, junto ao rio Arade. )Podemos, pois, concluir que a rainha-poetisa Rumaykiyya não era senão mais uma dessas filhas da cidade a possuir o singular estro poético das gentes de Silves e do qual são herdeiros os inúmeros poetas populares de Portugal, cujo símbolo máximo foi o grande António Aleixo. 3. Os PoetasDito isto, importa que nos interroguemos se a fama poética de que Silves e a sua região gozam na história árabe tiveram de facto uma produção literária à altura dessa mesma fama.A lista dos poetas e homens de letras, naturais de Silves ou que em Silves viveram, e cujo nome até nós chegou, é de tal forma extensa que seria fastidiosos estar aqui a inumerá-la.Referiremos, até por questão de tempo, apenas os mais importantes e respeitantes aos períodos dos reinos taifas, ou seja, séculos XI a XIII, e que, no estado actual dos nossos conhecimentos, parecem ter sido, sem dúvida, dos mais fecundos.A lista de poetas que o Dr. Adalberto Alves cita atrás está situada num outro local deste "site" e a ela poderá ter acesso "clicando" a frase abaixo, em caractéres árabes (O meu coração é árabe). 4. A DescendênciaNão quereria terminar sem deixar bem acentuado que cinco séculos de soberania árabe, em territórios que depois haveriam de vir a ser Portugal, ou seja, mais de metade da sua história: não poderiam deixar de se traduzir numa profunda influência no génio lírico dos Portugueses.A ode da poesia árabe clássica, a já referida "qasida", que já vem da Arábia ante-Islâmica, e que os poetas luso-árabes tanto cultivaram, era, se é permitido empregar uma linguagem musical, uma espécie de "suite" com três temas principais:- Lamento do acampamento abandonado e evvocação da amada (nasib)- Descrição da travessia ddo deserto e respectivas atribulações (rahil)- Panegírico do patrono a quem o poema é dedicado (madih)Ora o "nasib" é precisamente uma canção de saudade onde o sentimento da ausência amada nos lugares queridos é exacerbado até às últimas consequências face à desamparada solidão do deserto.No "nasib" o poeta, ao voltar de uma excursão guerreira ou de uma errância nomádica pelo deserto, encontra apenas os restos do acampamento abandonado. A amada partira, entretanto, e ele evoca-a lembrando a sua beleza, os dias felizes que haviam passado, como diria Camões. "naquele engano de alma ledo e cego que a Fortuna não deixa durar muito".Este sentimento de saudade do "nasib" foi transposto e amplamente glosado na lírica luso-árabe.Al-Mu'tamid, o maior poeta luso-árabe, pergunta na sua célebre Evocação de Silves:"Saúda, por mim, Abu Bakr,Os queridos lugares de SilvesE diz-me se deles a saudadeÉ tão grande quanto a minha..." Ou neste trecho: "Porque deixas minh'alma abandonada?Se a tua ausência é uma longa noiteSeja nosso abraço d'amor a alvorada". Ou ainda: "Abandonaste-me.Que te fará voltar um dia?O tempo que estamos separados é a noiteOs momentos de estarmos juntos, uma lua cheia". Porém, não é apenas o tema da saudade que sugere a aproximação entre a poesia árabe do Ândalus e a primitiva lírica portuguesa. A estrutura paralelística das Cantigas, a existência do leixa-prem ou a referência ao amigo (habib em árabe) são outras tantas coincidências com a poesia estrófica do Ândalus. Nas cantigas de amor, de inspiração provençal como o próprio D. Diniz confessa, o conceito do amor cortês, em que a paixão pela mulher desejada é sublimada numa atitude de contemplação, no amor pelo amor, revisita-se o ideal arábico do amor "udri" enriquecido pela mística sufi. Talvez isso justifique os versos que Garcia de Resende fez inserir no seu Cancioneiro Geral:"Que quem sua trova feznão em França, mas em Fezaprendeu tal invenção". O tema da saudade na lírica portuguesa não é, pois, a nosso ver, mais do que a continuação de um remoto "leit-motiv" introduzido pelos filhos do crescente e que, percorrendo as cantigas trovadorescas, desemboca em Bernardim Ribeiro, Camões e todos os seus continuadores, até aos nossos dias. A célebre canção de Camões, de ambiência desértica,"Junto de um seco, fero e estéril monteInútil e despido, calvo, informeDa Natureza em tudo aborrecidoOnde nem ave voa ou fera dormeNem rio claro corre ou ferve fonte,Nem verde ramo faz doce ruído..." talvez o mais formidável momento saudosista da literatura portuguesa, é pela essência da sua expressão fatalista, e pela elevação do seu nobre sentimento estoico, um "nasib" de superior transfiguração que al-Mutanabi, o príncipe dos poetas árabes não desdenharia subscrever. Os árabes gozam da fama de serem o mais poético dos povos. Penso que os portugueses ombreiam com eles precisamente porque deles são parentes na família poética.A poesia sempre foi e continua a ser a mais alta expressão da cultura portuguesa e foi o próprio Fernando Pessoa a afirmar no seu ensaio "Da Ibéria e do Iberismo":"Nós Ibéricos, somos o cruzamento de duas civilizações - a romana e a árabe.Somos, por isso, mais complexos e fecundos...Vinguemos a derrota que os do Norte infligiram aos Árabes nossos maiores.Expiemos o crime que cometemos, ao expulsar da Península os árabes que a civilizaram". O sentimento da saudade percorre o território da nossa poesia, como um luminoso rio, do minhoto Teixeira de Pascoaes ao algarvio Cândido Guerreiro e à açoriana Natália Correia. E porque estamos no Algarve e em Silves, eu queria terminar a minha intervenção com a voz de um dos maiores líricos da literatura portuguesa, o poeta de S. Bartolomeu de Messines, João de Deus, que foi um "trovador" romântico, no que a palavra "trovador" tem de mais literal, pois que muitos dos nossos versos ele próprio os acompanhava à guitarra.Falei há pouco da "Qasida Abdunia" que o silvense Ibn Badrun havia comentado. Ode essa de sentido elegíaco comentando a força do destino que não poupa nem os poderosos.Ibn 'Abdun fá-lo de maneira superior em 75 versos de 2 hemistíquios cada. João Deus mantém firme a corda da tradição e canta o destino e a saudade do que ainda é, que, por transitório, está prestes a deixar de ser, em apenas 22 curtos e admiráveis versos.Acabaremos, pois, cotejando um excerto da ode de Ibn 'Abdun e um fragmento do poema "A vida" de João de Deus:BEM CEDO o destino nos fustiga...E para trás rastos vão ficando.Esconjuro-te! Deixa que te diga:Não chores por sombras, tudo é ilusão.Ai de quem com quimeras vai sonhandoEntre as garras e os dentes do leão!Que a vida não te iluda e entorpeça já.Para a vigília são teus olhos feitos.Ó noite, que do teu ócio nos afaste Alá.E dos que ao teu feitiço estão sujeitos!Teu prazer engana, víbora escondidaDetrás da flor: morde quem a quer colher.Quanta geração foi de Alá querida!O que ficou? - Poderá a memória responder?Quem pode a menor coisa pretender.E talentoso ou bom, deveras, ser?Quem pode dar recompensa ou castigar?Quem põe fim ao sopro da desgraça?Quem é que a Danação pode afastarOu a tragédia que o Destino traça?Ó vã generosidade, ó vão valor!Quem me defenderá do opressor- Calamidade em noite sem aurora -Quem? Se já não há regra a respeitarE o que resta é um silêncio imposto?Quem é que apagará o amargo gostoQue nunca ninguém pode apagar?A vida é o dia de hoje,A vida é ai que mal soa,A vida é sombra que foge,A vida é nuvem que voa;A vida é sonho tão leveQue se desfaz como a neveE como o fumo se esvai;A vida dura um momento,Mais leve que o pensamento,A vida leva-a o vento,A vida é folha que cai!A vida é flor na corrente,A vida é sopro suave,A vida é estrela cadente,Voa mais leve que a ave:Nuvem que o vento nos ares,Onda que o vento nos mares,Uma após outra lançou,A vida - pena caídaDa asa de ave ferida -De vale em vale impelidaA vida o vento a levou!VIVA A POESIA LUSO-ÁRABE! Adalberto Alves*in Actas das "II Jornadas de Silves", Setembro de 1992FONTE:http://www.geocities.com/baetaoliveira/mira1.html

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