Software Livre no SAPO

21-10-2008
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O que se segue é o texto integral de um projecto de lei que me chegou via email ontem que visa estabelecer «a adopção de normas abertas nos sistemas informáticos do Estado».

Como as normas abertas são bastante on-topic para a utilização de Software Livre sem impedimentos artificiais, gostaria de solicitar a quem quiser participar nos comentários deste artigo que se foque no conteúdo do projecto de lei, e não em quem o propõe. Aliás, aviso à navegação, comentários que visem ataques ao proponente e não ao conteúdo (e é apenas o conteúdo que deveria ser avaliado no Parlamento) são bastante off-topic.

Links, negritos ou itálicos no texto abaixo são da minha autoria, bem como comentários meus que coloque em destaque após cada artigo.

Para quem ler através de um leitor de feeds RSS, visite o site para participar na sondagem sobre a adopção de normas abertas pela parte do Estado.

PROJECTO DE LEI

Estabelece a adopção de normas abertas nos Sistemas Informáticos do Estado

Exposição de Motivos

Numa época em que os Estados recorrem cada vez mais à desmaterialização de processos administrativos e aos suportes digitais, a gestão e a conservação de dados em formatos electrónicos assumem uma dimensão de importância estratégica nacional.

Actualmente, as instituições continuam a emitir, trocar e arquivar uma parte substancial da sua informação em suporte digital através de formatos proprietários. Trata-se de formatos de documentos cujas especificações técnicas não são tornadas públicas pelas empresas que os promovem – pelo contrário, estes formatos são normalmente cobertos por regimes de protecção da propriedade intelectual (como o registo de patentes ou o copyright).

Isto significa que, se a informação em causa é armazenada num formato que o fornecedor de software detém e controla, então pode acontecer que o Estado tenha a capacidade de possuir a informação, mas não tenha nenhuma maneira de a recuperar, excepto usando o software daquela empresa em questão. Se o titular dessa informação não a pode recuperar sem o consentimento do fabricante do software, então estamos perante uma situação de controlo da informação, com implicações que podem assumir a maior gravidade.

Daqui resulta claro que o Estado deve garantir a soberania e o controlo sobre a informação de que é titular, pelo que não pode emitir e manter documentos em formatos cuja utilização dependa potencialmente de opções estratégicas de empresas privadas. Em larga medida, é isso que sucede actualmente. Ainda hoje, no portal da Assembleia da República na Internet, recentemente remodelado, o acesso dos cidadãos aos textos das iniciativas legislativas apresentadas no Parlamento (projectos e propostas de lei ou de resolução, etc.) é disponibilizado através de um formato proprietário, assim como outras informações e aplicações.

Esta situação suscita outro problema central, que se prende com o respeito pela liberdade de opção dos cidadãos na utilização de tecnologias, que o Estado tem evidentemente o dever de garantir e promover. Os cidadãos e as organizações devem poder optar livremente pelas soluções informáticas da sua conveniência e preferência, ao invés de lhes ser imposto pelo Estado, directa ou indirectamente, o recurso a determinadas marcas ou produtos.

Ainda na Sessão Legislativa que agora termina, o Grupo Parlamentar do PCP teve a oportunidade de alertar [Requerimento n.º 949/X (3.ª) AC de 20/3/08] para a situação que actualmente se verifica em todos os municípios: a Direcção-Geral das Autarquias Locais exige, para efeitos de fiscalização do cumprimento da Lei das Finanças Locais, que as câmaras municipais instalem e utilizem uma aplicação informática (“SIAL”) que, segundo instruções da própria Direcção-Geral, só pode funcionar em computadores com os seguintes programas: sistema operativo Microsoft Windows XP (ou superior); Microsoft Office 2003; Microsoft Office 2003 Web Components e Microsoft Internet Explorer 6.0 ou superior (ou compatível) com ligação activa. Trata-se de um exemplo particularmente negativo de dependência tecnológica do Estado para com tecnologias proprietárias, imposta e promovida directamente pelo Poder Central.

Pelo contrário, o que já sucede com o Diário da República Electrónico demonstra que é possível optar por formatos abertos para a publicação de documentos oficiais, respeitando e cumprindo aliás recomendações do Consórcio W3C (consórcio internacional responsável pela rede www), inclusivamente no que concerne à acessibilidade e ergonomia dos conteúdos disponibilizados. Recorrendo ao formato aberto “PDF” (portable document format), cujas especificações técnicas e direitos de propriedade intelectual pertencem já na sua parte substancial ao domínio público, o Estado português garante assim, no presente e no futuro, o acesso público aos documentos em questão. O que é particularmente importante quando os documentos em causa são as páginas do Diário da República…

Em suma, serviços públicos – e documentos públicos – não podem recorrer a formatos privados (proprietários). O próprio conceito de documento público implica a existência de formatos públicos, e isso significa a aplicação de normas abertas. Por outro lado, por razões de eficiência, soberania e segurança, é indispensável promover a interoperabilidade dos sistemas informáticos do Estado.

Interoperabilidade pressupõe compatibilidade de sistemas. Segundo a definição da ISO (a Organização Internacional para a Padronização), que é aliás adoptada no articulado deste projecto de lei, trata-se da capacidade de dois ou mais sistemas (computadores, meios de comunicação, redes, software e outros componentes de tecnologia da informação) de interagir e de trocar dados de acordo com um método definido, de forma a obter os resultados esperados. Esta interacção, para ser universal no presente e no futuro, exige que os formatos definidos como norma – os standards – sejam abertos, isto é, possam ser livremente utilizados.

Por todas estas razões, este é um assunto suficientemente importante para justificar a aprovação de uma Lei da Assembleia da República.

A própria Comissão Europeia preconiza há anos a utilização de normas abertas nos sistemas informáticos: o “Quadro Europeu de Interoperabilidade” do IDABC (Interoperable Delivery of European eGovernment Services to Public Administrations, Business and Citizens). A definição de “norma aberta” adoptada neste projecto-lei é inclusivamente originária do QEI da Comissão Europeia.

Por todo o mundo, a adopção de normas abertas tem sido uma prática seguida por cada vez mais governos e autoridades nacionais, regionais e locais. São os casos concretos da África do Sul, Alemanha, Argentina, Austrália, Áustria, Bélgica, Brasil, China, Croácia, Dinamarca, EUA, Espanha, Finlândia, França, Índia, Itália, Japão, Malásia, Noruega, Países Baixos, Polónia, Reino Unido, Rússia, Singapura.

Em Portugal, a aplicação de normas abertas na Administração Pública pode começar de imediato para documentos de texto (com um período razoável de adaptação para os serviços públicos, que aqui se propõe de três meses). Para esse efeito, a solução mais simples e eficaz, como já acontece com o Diário da República Electrónico, é o recurso a formatos que já hoje cumprem esses requisitos, nomeadamente o “PDF” para documentos estruturados e concluídos. Para documentos editáveis (não concluídos), tão frequentes em qualquer serviço, já hoje a ISO reconhece também como standard o formato aberto “ODF” (Open Document Format).

Para as outras diversas vertentes, desde os formatos de dados, de som e imagens, audiovisuais, etc., a solução mais consistente e adequada passa pela adopção de um Regulamento de Interoperabilidade (a exemplo do que foi adoptado e publicado em França), o que exige um processo rigoroso e participado de elaboração. Por isso, este projecto de lei consagra um processo de definição das normas e formatos digitais a adoptar pela Administração Pública, assim como os formatos cuja utilização deve excluída por não corresponderem a normas abertas.

Esse processo envolve um prazo de cerca de seis meses (90 dias entre a publicação da lei e a sua entrada em vigor, mais 90 dias após a sua entrada em vigor) para a elaboração do Regulamento pela Agência para a Modernização Administrativa, seguido de um período de 30 dias para discussão pública, de modo a recolher os contributos, sugestões e propostas dos cidadãos e organizações. Considerando esses contributos, a AMA deverá então submeter o Regulamento na sua versão final à aprovação do Conselho de Ministros. Após a publicação do Regulamento, os serviços da Administração Pública devem preparar-se para cumprir estas regras – não de forma imediata mas num prazo de 180 dias.

Importa sublinhar entretanto que a adopção de normas abertas, em particular para formatos de documentos, não obriga os serviços da Administração Pública à migração de software, nem para produtos como o Open Office nem para Microsoft Office 2007, a título de exemplo.

A questão do software livre e “open source” está evidentemente relacionada com esta matéria, na medida em que esse software é por excelência a melhor garantia para o uso, promoção e difusão das normas abertas. Aliás, a importância e as vantagens da adopção e promoção do software livre valem por si mesmas, e o nosso país tem nessa matéria ainda muito caminho a percorrer, um caminho que foi sinalizado já em 2004 pela Assembleia da República com a aprovação, por proposta do Grupo Parlamentar do PCP, da Resolução da AR n.º 66/2004, de 15 de Outubro, que «Recomenda ao Governo a tomada de medidas com vista ao desenvolvimento do software livre em Portugal».

De resto, devemos recordar que na World Wide Web a grande maioria dos servidores a nível global (cerca de 80%) funcionam com base em software livre. E isso resulta justamente da opção estratégica do supra-citado consórcio W3C, no sentido de promover a interoperabilidade, com standards técnicos abertos como a base do crescimento continuado de aplicações inovadoras. Segundo o Presidente do W3C, o consórcio apenas padroniza tecnologia se esta puder ser implementada numa base livre de “royalties”.

Só assim se aplica o princípio «Todos podem ligar-se a todos, qualquer página pode ligar-se a qualquer página». De outra forma, a rede teria hoje características profundamente diferentes, sem a abertura e a amplitude a que nos habituámos. Independentemente das opções tomadas ou a tomar quanto à adopção do software livre na Administração Pública, a questão das normas abertas constitui um ponto central, inadiável e incontornável para as políticas administrativas do Estado e da Sociedade.

Nestes termos, o Grupo Parlamentar do PCP apresenta o seguinte Projecto de Lei:

Artigo 1.º Objecto

A presente lei estabelece a adopção de normas abertas para a informação em suporte digital na Administração Pública, promovendo a liberdade tecnológica dos cidadãos e organizações e a interoperabilidade dos sistemas informáticos do Estado.

Artigo 2.º Âmbito de aplicação

A presente lei aplica-se a todos os órgãos de soberania e serviços da Administração Pública central e regional, incluindo institutos públicos e serviços desconcentradas do Estado, bem como aos órgãos e serviços dos municípios e áreas metropolitanas.

Artigo 3.º Definições

Para efeitos da presente lei, considera-se “norma aberta” a norma técnica destinada à publicação, transmissão e armazenamento de informação em suporte digital, que cumpra cumulativamente os seguintes requisitos: Seja adoptada e mantida por uma organização sem fins lucrativos, e o seu desenvolvimento decorra na base de um processo de decisão aberto e disponível à participação de todas as partes interessadas; Tenha sido publicada e seja livremente disponibilizado o respectivo documento de especificações, permitindo-se sem restrições a sua cópia, distribuição e utilização; Os direitos de propriedade intelectual que lhe sejam aplicáveis, incluindo patentes, tenham sido, no todo ou em parte substancial, publicamente disponibilizados de forma irrevogável e irreversível; Não existam restrições à sua reutilização. Para efeitos da presente lei, considera-se “interoperabilidade” a capacidade de dois ou mais sistemas (computadores, meios de comunicação, redes, software e outros componentes de tecnologia da informação) de interagir e de trocar dados de acordo com um método definido, de forma a obter os resultados esperados.

Artigo 4.º Utilização de normas abertas em documentos digitais

É obrigatória a aplicação de normas abertas em todos os documentos de texto em formato digital que sejam objecto de emissão, intercâmbio, arquivo e/ou publicação pela Administração Pública. Nenhum documento de texto em formato digital, presente por pessoa individual ou colectiva à Administração Pública, pode ser recusado, ignorado ou devolvido com base no facto de ser emitido com recurso a normas abertas. Todos os processos de adopção e/ou migração de sistemas informáticos na Administração Pública prevêem obrigatoriamente a utilização de normas abertas.

Artigo 5.º Regulamento Nacional de Interoperabilidade Digital

O Regulamento Nacional de Interoperabilidade Digital (adiante designado por “Regulamento”) define as normas e formatos digitais a adoptar pela Administração Pública, em aplicação da presente lei, assim como os formatos cuja utilização é excluída por não corresponderem a normas abertas. O Regulamento abrange as seguintes vertentes: Formatos de dados, incluindo códigos de caracteres, formatos de som e imagens (fixas e animadas), audiovisuais, dados gráficos e de pré-impressão; Formatos de documentos (estruturados e não estruturados) e gestão de conteúdos, incluindo gestão documental; Tecnologias de interface web, incluindo acessibilidade, ergonomia, compatibilidade e integração de serviços; Protocolos de correio electrónico, incluindo acesso a conteúdos e extensões e serviços de mensagem instantânea; Sistemas de informação geográfica, incluindo cartografia e cadastro digital; Normas de segurança para redes, serviços, aplicações e documentos. Compete à Agência para a Modernização Administrativa a elaboração do Regulamento, com o dever de cooperação dos demais organismos da Administração Pública. O Regulamento é apresentado no prazo de 90 dias após a entrada em vigor da presente lei, e submetido a um processo de discussão pública por um período de 30 dias, findo o qual é publicado o respectivo relatório, que incluirá o conjunto das reclamações e propostas de alteração apresentadas e a subsequente versão final do Regulamento a submeter ao Conselho de Ministros. O Regulamento é publicado no Diário da República sob a forma de Decreto-Lei e deve ser objecto de revisão regular a cada três anos, nos termos do presente artigo. A aplicação integral e obrigatória das normas constantes no Regulamento entra em vigor em todo o território nacional, no prazo de 180 dias após a sua publicação.

Artigo 6.º Supervisão e apoio técnico

O acompanhamento, supervisão e a coordenação do apoio técnico para a implementação e cumprimento da adopção de normas abertas na Administração Pública competem à Agência para a Modernização Administrativa. Para efeitos do disposto no número anterior, a Agência para a Modernização Administrativa apresenta e publica em formato digital o Relatório Anual da Interoperabilidade, que deverá apresentar as medidas desenvolvidas na aplicação da presente Lei. O Relatório Anual da Interoperabilidade é apresentado para apreciação da Assembleia da República e sujeito a parecer da Associação Nacional de Municípios Portugueses e dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.

Artigo 7.º Contratação pública

É nulo e de nenhum efeito todo e qualquer acto de contratação promovido pela Administração Pública que preveja a exclusão de normas abertas no recurso a documentos em suporte digital.

Artigo 8.º Entrada em vigor

A presente lei entra em vigor 90 dias após a sua publicação.

Assembleia da República, 30 de Julho de 2008 Os Deputados,

BRUNO DIAS; BERNARDINO SOARES; MIGUEL TIAGO; FRANCISCO LOPES; AGOSTINHO LOPES

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O que se segue é o texto integral de um projecto de lei que me chegou via email ontem que visa estabelecer «a adopção de normas abertas nos sistemas informáticos do Estado».

Como as normas abertas são bastante on-topic para a utilização de Software Livre sem impedimentos artificiais, gostaria de solicitar a quem quiser participar nos comentários deste artigo que se foque no conteúdo do projecto de lei, e não em quem o propõe. Aliás, aviso à navegação, comentários que visem ataques ao proponente e não ao conteúdo (e é apenas o conteúdo que deveria ser avaliado no Parlamento) são bastante off-topic.

Links, negritos ou itálicos no texto abaixo são da minha autoria, bem como comentários meus que coloque em destaque após cada artigo.

Para quem ler através de um leitor de feeds RSS, visite o site para participar na sondagem sobre a adopção de normas abertas pela parte do Estado.

PROJECTO DE LEI

Estabelece a adopção de normas abertas nos Sistemas Informáticos do Estado

Exposição de Motivos

Numa época em que os Estados recorrem cada vez mais à desmaterialização de processos administrativos e aos suportes digitais, a gestão e a conservação de dados em formatos electrónicos assumem uma dimensão de importância estratégica nacional.

Actualmente, as instituições continuam a emitir, trocar e arquivar uma parte substancial da sua informação em suporte digital através de formatos proprietários. Trata-se de formatos de documentos cujas especificações técnicas não são tornadas públicas pelas empresas que os promovem – pelo contrário, estes formatos são normalmente cobertos por regimes de protecção da propriedade intelectual (como o registo de patentes ou o copyright).

Isto significa que, se a informação em causa é armazenada num formato que o fornecedor de software detém e controla, então pode acontecer que o Estado tenha a capacidade de possuir a informação, mas não tenha nenhuma maneira de a recuperar, excepto usando o software daquela empresa em questão. Se o titular dessa informação não a pode recuperar sem o consentimento do fabricante do software, então estamos perante uma situação de controlo da informação, com implicações que podem assumir a maior gravidade.

Daqui resulta claro que o Estado deve garantir a soberania e o controlo sobre a informação de que é titular, pelo que não pode emitir e manter documentos em formatos cuja utilização dependa potencialmente de opções estratégicas de empresas privadas. Em larga medida, é isso que sucede actualmente. Ainda hoje, no portal da Assembleia da República na Internet, recentemente remodelado, o acesso dos cidadãos aos textos das iniciativas legislativas apresentadas no Parlamento (projectos e propostas de lei ou de resolução, etc.) é disponibilizado através de um formato proprietário, assim como outras informações e aplicações.

Esta situação suscita outro problema central, que se prende com o respeito pela liberdade de opção dos cidadãos na utilização de tecnologias, que o Estado tem evidentemente o dever de garantir e promover. Os cidadãos e as organizações devem poder optar livremente pelas soluções informáticas da sua conveniência e preferência, ao invés de lhes ser imposto pelo Estado, directa ou indirectamente, o recurso a determinadas marcas ou produtos.

Ainda na Sessão Legislativa que agora termina, o Grupo Parlamentar do PCP teve a oportunidade de alertar [Requerimento n.º 949/X (3.ª) AC de 20/3/08] para a situação que actualmente se verifica em todos os municípios: a Direcção-Geral das Autarquias Locais exige, para efeitos de fiscalização do cumprimento da Lei das Finanças Locais, que as câmaras municipais instalem e utilizem uma aplicação informática (“SIAL”) que, segundo instruções da própria Direcção-Geral, só pode funcionar em computadores com os seguintes programas: sistema operativo Microsoft Windows XP (ou superior); Microsoft Office 2003; Microsoft Office 2003 Web Components e Microsoft Internet Explorer 6.0 ou superior (ou compatível) com ligação activa. Trata-se de um exemplo particularmente negativo de dependência tecnológica do Estado para com tecnologias proprietárias, imposta e promovida directamente pelo Poder Central.

Pelo contrário, o que já sucede com o Diário da República Electrónico demonstra que é possível optar por formatos abertos para a publicação de documentos oficiais, respeitando e cumprindo aliás recomendações do Consórcio W3C (consórcio internacional responsável pela rede www), inclusivamente no que concerne à acessibilidade e ergonomia dos conteúdos disponibilizados. Recorrendo ao formato aberto “PDF” (portable document format), cujas especificações técnicas e direitos de propriedade intelectual pertencem já na sua parte substancial ao domínio público, o Estado português garante assim, no presente e no futuro, o acesso público aos documentos em questão. O que é particularmente importante quando os documentos em causa são as páginas do Diário da República…

Em suma, serviços públicos – e documentos públicos – não podem recorrer a formatos privados (proprietários). O próprio conceito de documento público implica a existência de formatos públicos, e isso significa a aplicação de normas abertas. Por outro lado, por razões de eficiência, soberania e segurança, é indispensável promover a interoperabilidade dos sistemas informáticos do Estado.

Interoperabilidade pressupõe compatibilidade de sistemas. Segundo a definição da ISO (a Organização Internacional para a Padronização), que é aliás adoptada no articulado deste projecto de lei, trata-se da capacidade de dois ou mais sistemas (computadores, meios de comunicação, redes, software e outros componentes de tecnologia da informação) de interagir e de trocar dados de acordo com um método definido, de forma a obter os resultados esperados. Esta interacção, para ser universal no presente e no futuro, exige que os formatos definidos como norma – os standards – sejam abertos, isto é, possam ser livremente utilizados.

Por todas estas razões, este é um assunto suficientemente importante para justificar a aprovação de uma Lei da Assembleia da República.

A própria Comissão Europeia preconiza há anos a utilização de normas abertas nos sistemas informáticos: o “Quadro Europeu de Interoperabilidade” do IDABC (Interoperable Delivery of European eGovernment Services to Public Administrations, Business and Citizens). A definição de “norma aberta” adoptada neste projecto-lei é inclusivamente originária do QEI da Comissão Europeia.

Por todo o mundo, a adopção de normas abertas tem sido uma prática seguida por cada vez mais governos e autoridades nacionais, regionais e locais. São os casos concretos da África do Sul, Alemanha, Argentina, Austrália, Áustria, Bélgica, Brasil, China, Croácia, Dinamarca, EUA, Espanha, Finlândia, França, Índia, Itália, Japão, Malásia, Noruega, Países Baixos, Polónia, Reino Unido, Rússia, Singapura.

Em Portugal, a aplicação de normas abertas na Administração Pública pode começar de imediato para documentos de texto (com um período razoável de adaptação para os serviços públicos, que aqui se propõe de três meses). Para esse efeito, a solução mais simples e eficaz, como já acontece com o Diário da República Electrónico, é o recurso a formatos que já hoje cumprem esses requisitos, nomeadamente o “PDF” para documentos estruturados e concluídos. Para documentos editáveis (não concluídos), tão frequentes em qualquer serviço, já hoje a ISO reconhece também como standard o formato aberto “ODF” (Open Document Format).

Para as outras diversas vertentes, desde os formatos de dados, de som e imagens, audiovisuais, etc., a solução mais consistente e adequada passa pela adopção de um Regulamento de Interoperabilidade (a exemplo do que foi adoptado e publicado em França), o que exige um processo rigoroso e participado de elaboração. Por isso, este projecto de lei consagra um processo de definição das normas e formatos digitais a adoptar pela Administração Pública, assim como os formatos cuja utilização deve excluída por não corresponderem a normas abertas.

Esse processo envolve um prazo de cerca de seis meses (90 dias entre a publicação da lei e a sua entrada em vigor, mais 90 dias após a sua entrada em vigor) para a elaboração do Regulamento pela Agência para a Modernização Administrativa, seguido de um período de 30 dias para discussão pública, de modo a recolher os contributos, sugestões e propostas dos cidadãos e organizações. Considerando esses contributos, a AMA deverá então submeter o Regulamento na sua versão final à aprovação do Conselho de Ministros. Após a publicação do Regulamento, os serviços da Administração Pública devem preparar-se para cumprir estas regras – não de forma imediata mas num prazo de 180 dias.

Importa sublinhar entretanto que a adopção de normas abertas, em particular para formatos de documentos, não obriga os serviços da Administração Pública à migração de software, nem para produtos como o Open Office nem para Microsoft Office 2007, a título de exemplo.

A questão do software livre e “open source” está evidentemente relacionada com esta matéria, na medida em que esse software é por excelência a melhor garantia para o uso, promoção e difusão das normas abertas. Aliás, a importância e as vantagens da adopção e promoção do software livre valem por si mesmas, e o nosso país tem nessa matéria ainda muito caminho a percorrer, um caminho que foi sinalizado já em 2004 pela Assembleia da República com a aprovação, por proposta do Grupo Parlamentar do PCP, da Resolução da AR n.º 66/2004, de 15 de Outubro, que «Recomenda ao Governo a tomada de medidas com vista ao desenvolvimento do software livre em Portugal».

De resto, devemos recordar que na World Wide Web a grande maioria dos servidores a nível global (cerca de 80%) funcionam com base em software livre. E isso resulta justamente da opção estratégica do supra-citado consórcio W3C, no sentido de promover a interoperabilidade, com standards técnicos abertos como a base do crescimento continuado de aplicações inovadoras. Segundo o Presidente do W3C, o consórcio apenas padroniza tecnologia se esta puder ser implementada numa base livre de “royalties”.

Só assim se aplica o princípio «Todos podem ligar-se a todos, qualquer página pode ligar-se a qualquer página». De outra forma, a rede teria hoje características profundamente diferentes, sem a abertura e a amplitude a que nos habituámos. Independentemente das opções tomadas ou a tomar quanto à adopção do software livre na Administração Pública, a questão das normas abertas constitui um ponto central, inadiável e incontornável para as políticas administrativas do Estado e da Sociedade.

Nestes termos, o Grupo Parlamentar do PCP apresenta o seguinte Projecto de Lei:

Artigo 1.º Objecto

A presente lei estabelece a adopção de normas abertas para a informação em suporte digital na Administração Pública, promovendo a liberdade tecnológica dos cidadãos e organizações e a interoperabilidade dos sistemas informáticos do Estado.

Artigo 2.º Âmbito de aplicação

A presente lei aplica-se a todos os órgãos de soberania e serviços da Administração Pública central e regional, incluindo institutos públicos e serviços desconcentradas do Estado, bem como aos órgãos e serviços dos municípios e áreas metropolitanas.

Artigo 3.º Definições

Para efeitos da presente lei, considera-se “norma aberta” a norma técnica destinada à publicação, transmissão e armazenamento de informação em suporte digital, que cumpra cumulativamente os seguintes requisitos: Seja adoptada e mantida por uma organização sem fins lucrativos, e o seu desenvolvimento decorra na base de um processo de decisão aberto e disponível à participação de todas as partes interessadas; Tenha sido publicada e seja livremente disponibilizado o respectivo documento de especificações, permitindo-se sem restrições a sua cópia, distribuição e utilização; Os direitos de propriedade intelectual que lhe sejam aplicáveis, incluindo patentes, tenham sido, no todo ou em parte substancial, publicamente disponibilizados de forma irrevogável e irreversível; Não existam restrições à sua reutilização. Para efeitos da presente lei, considera-se “interoperabilidade” a capacidade de dois ou mais sistemas (computadores, meios de comunicação, redes, software e outros componentes de tecnologia da informação) de interagir e de trocar dados de acordo com um método definido, de forma a obter os resultados esperados.

Artigo 4.º Utilização de normas abertas em documentos digitais

É obrigatória a aplicação de normas abertas em todos os documentos de texto em formato digital que sejam objecto de emissão, intercâmbio, arquivo e/ou publicação pela Administração Pública. Nenhum documento de texto em formato digital, presente por pessoa individual ou colectiva à Administração Pública, pode ser recusado, ignorado ou devolvido com base no facto de ser emitido com recurso a normas abertas. Todos os processos de adopção e/ou migração de sistemas informáticos na Administração Pública prevêem obrigatoriamente a utilização de normas abertas.

Artigo 5.º Regulamento Nacional de Interoperabilidade Digital

O Regulamento Nacional de Interoperabilidade Digital (adiante designado por “Regulamento”) define as normas e formatos digitais a adoptar pela Administração Pública, em aplicação da presente lei, assim como os formatos cuja utilização é excluída por não corresponderem a normas abertas. O Regulamento abrange as seguintes vertentes: Formatos de dados, incluindo códigos de caracteres, formatos de som e imagens (fixas e animadas), audiovisuais, dados gráficos e de pré-impressão; Formatos de documentos (estruturados e não estruturados) e gestão de conteúdos, incluindo gestão documental; Tecnologias de interface web, incluindo acessibilidade, ergonomia, compatibilidade e integração de serviços; Protocolos de correio electrónico, incluindo acesso a conteúdos e extensões e serviços de mensagem instantânea; Sistemas de informação geográfica, incluindo cartografia e cadastro digital; Normas de segurança para redes, serviços, aplicações e documentos. Compete à Agência para a Modernização Administrativa a elaboração do Regulamento, com o dever de cooperação dos demais organismos da Administração Pública. O Regulamento é apresentado no prazo de 90 dias após a entrada em vigor da presente lei, e submetido a um processo de discussão pública por um período de 30 dias, findo o qual é publicado o respectivo relatório, que incluirá o conjunto das reclamações e propostas de alteração apresentadas e a subsequente versão final do Regulamento a submeter ao Conselho de Ministros. O Regulamento é publicado no Diário da República sob a forma de Decreto-Lei e deve ser objecto de revisão regular a cada três anos, nos termos do presente artigo. A aplicação integral e obrigatória das normas constantes no Regulamento entra em vigor em todo o território nacional, no prazo de 180 dias após a sua publicação.

Artigo 6.º Supervisão e apoio técnico

O acompanhamento, supervisão e a coordenação do apoio técnico para a implementação e cumprimento da adopção de normas abertas na Administração Pública competem à Agência para a Modernização Administrativa. Para efeitos do disposto no número anterior, a Agência para a Modernização Administrativa apresenta e publica em formato digital o Relatório Anual da Interoperabilidade, que deverá apresentar as medidas desenvolvidas na aplicação da presente Lei. O Relatório Anual da Interoperabilidade é apresentado para apreciação da Assembleia da República e sujeito a parecer da Associação Nacional de Municípios Portugueses e dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.

Artigo 7.º Contratação pública

É nulo e de nenhum efeito todo e qualquer acto de contratação promovido pela Administração Pública que preveja a exclusão de normas abertas no recurso a documentos em suporte digital.

Artigo 8.º Entrada em vigor

A presente lei entra em vigor 90 dias após a sua publicação.

Assembleia da República, 30 de Julho de 2008 Os Deputados,

BRUNO DIAS; BERNARDINO SOARES; MIGUEL TIAGO; FRANCISCO LOPES; AGOSTINHO LOPES

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