Fados do Tempo da Outra Senhora (37)Quitandeira * Agostinho NetoA quitanda. Muito sole a quitandeira à sombra ~da mulemba. - Laranja, minha senhora, laranjinha boa! A luz brinca na cidade o seu quente jogo de claros e escuros e a vida brincaem corações aflitos o jogo da cabra-cega. A quitandeiraque vende fruta vende-se. - Minha senhora laranja, laranjinha boa! Compra laranja doces compra-me também o amargodesta torturada vida sem vida. Compra-me a infância do espírito este botão de rosa que não abriu princípio impelido ainda para um início. Laranja, minha senhora!Esgotaram-se os sorrisos com que chorava ´eu já não choro. E aí vão as minhas esperançascomo foi o sangue dos meus filhos amassado no pó das estradasenterrado nas roças e o meu suor embebido nos fios de algodão que me cobrem. Como o esforço foi oferecido à segurança das máquinasà beleza das ruas asfaltadas de prédios de vários andaresà comodidade de senhores ricosà alegria dispersa por cidadese eu me fui confundindo com os próprios problemas da existência. Aí vão as laranjas como eu me ofereci ao álcool para me anestesiare me entreguei às religiões para me insensibilizar e me atordoei para viver. Tudo tenho dado. Até mesmo a minha dore a poesia dos meus seios nus entreguei-as aos poetas. Agora vendo-me eu própria.- Compra laranjasminha senhora! Leva-me para as quitandas da Vida o meu preço é único: - sangue. Talvez vendendo-me eu me possua. - Compra laranjas!Canção para Luanda* Luandino Vieira(Angola)A pergunta no arNo marNa boca de todos nós:- Luanda onde está?Silêncio nas ruasSilêncio nas bocasSilêncio nos olhos- Xêmana Rosa peixeiraresponde?- ManoNão pode responderTem de venderCorrer a cidadese quer comer!«Ola almoço, ola amoçoeéMatona calapauJiferrera jiferreresé»- E vocêMana Maria quitandeiraVendendo maboqueOs seios-maboqueGritandoSaltandoOs pés pescorrendoCaminhos vermelhosDe todos os dias?«Maboque m’boquinha boaDóce docinha»- ManoNão pode responderO tempo é pequenopara vender!Zefa mulataO corpo vendidoBaton nos lábiosOs brincos de lataSorriAbrindo o seu corpo- seu corpo-cubata!Seu corpo vendidoViajadoDe noite e de dia.- Luanda onde está?Mana Zefa mulataO corpo-cubataOs brincos de lataVai-se deitarCom quem lhe pagar- precisa comer!-Mano dos jornaisLuanda onde está?As casas antigasO barro vermelhoAs nossas cantigasTractor derrubou?Meninos nas ruasCaçambulasQuigosasbrincadeiras minhas e tuasasfalto matou?- ManosRosa peixeiraQuitandeira MariaVocê tambémZefa mulatados brincos de lata- Luanda onde está?SorrindoAs quindas no chãoLaranjas e peixeMaboque docinhoA esperança nos olhosA certeza nas mãosMana Rosa peixeiraQuitandeira MariaZefa mulata- Os panos pintadosGarridosCaídosMostraram o coração:- Luanda está aqui!Luandino Vieira, in “Cultura II, 1957, n.º 1* Viriato da Cruz(Angola)MAKEZÚ- "Kuakiè!!!... Makèzú, Makèzú..."...................................................O pregão da avó XiminhaÉ mesmo como os seus panos,Já não tem a cor berranteQue tinha nos outros anos.Avó Xima está velhinha,Mas de manhã, manhãzinha,Pede licença ao reumâticoE num passo nada práticoRasga estradinhas na areia...Lá vai para um cajueiroQue se levanta altaneiroNo cruzeiro dos caminhosDas gentes que vão p'a Baixa.Nem criados, nem pedreirosNem alegres lavadeirasDessa nova geraçãoDas "venidas de alcatrão"Ouvem o fraco pregãoDa velhinha quitandeira.- "Kuakiè... Makèzú... Makèzú..."- "Antão, véia, hoje nada?"- "Nada, mano Filisberto...Hoje os tempo tá mudado..."- "Mas tá passá gente perto...Como é aqui tás fazendo isso?"- "Não sabe?! Todo esse povoPegó um costume novoQui diz qué civrização:Come só pão com chouriçoOu toma café com pão...E diz ainda pru cima(Hum... mbundo kène muxima...)Qui o nosso bom makèzúÉ pra veios como tu".- "Eles não sabe o que diz...Pru qué qui vivi filizE tem cem ano eu e tu?"- "É pruquê nossas raizTem força do makèzú!..."(Poemas, 1961) * António CardosoOferta
Categorias
Entidades
Fados do Tempo da Outra Senhora (37)Quitandeira * Agostinho NetoA quitanda. Muito sole a quitandeira à sombra ~da mulemba. - Laranja, minha senhora, laranjinha boa! A luz brinca na cidade o seu quente jogo de claros e escuros e a vida brincaem corações aflitos o jogo da cabra-cega. A quitandeiraque vende fruta vende-se. - Minha senhora laranja, laranjinha boa! Compra laranja doces compra-me também o amargodesta torturada vida sem vida. Compra-me a infância do espírito este botão de rosa que não abriu princípio impelido ainda para um início. Laranja, minha senhora!Esgotaram-se os sorrisos com que chorava ´eu já não choro. E aí vão as minhas esperançascomo foi o sangue dos meus filhos amassado no pó das estradasenterrado nas roças e o meu suor embebido nos fios de algodão que me cobrem. Como o esforço foi oferecido à segurança das máquinasà beleza das ruas asfaltadas de prédios de vários andaresà comodidade de senhores ricosà alegria dispersa por cidadese eu me fui confundindo com os próprios problemas da existência. Aí vão as laranjas como eu me ofereci ao álcool para me anestesiare me entreguei às religiões para me insensibilizar e me atordoei para viver. Tudo tenho dado. Até mesmo a minha dore a poesia dos meus seios nus entreguei-as aos poetas. Agora vendo-me eu própria.- Compra laranjasminha senhora! Leva-me para as quitandas da Vida o meu preço é único: - sangue. Talvez vendendo-me eu me possua. - Compra laranjas!Canção para Luanda* Luandino Vieira(Angola)A pergunta no arNo marNa boca de todos nós:- Luanda onde está?Silêncio nas ruasSilêncio nas bocasSilêncio nos olhos- Xêmana Rosa peixeiraresponde?- ManoNão pode responderTem de venderCorrer a cidadese quer comer!«Ola almoço, ola amoçoeéMatona calapauJiferrera jiferreresé»- E vocêMana Maria quitandeiraVendendo maboqueOs seios-maboqueGritandoSaltandoOs pés pescorrendoCaminhos vermelhosDe todos os dias?«Maboque m’boquinha boaDóce docinha»- ManoNão pode responderO tempo é pequenopara vender!Zefa mulataO corpo vendidoBaton nos lábiosOs brincos de lataSorriAbrindo o seu corpo- seu corpo-cubata!Seu corpo vendidoViajadoDe noite e de dia.- Luanda onde está?Mana Zefa mulataO corpo-cubataOs brincos de lataVai-se deitarCom quem lhe pagar- precisa comer!-Mano dos jornaisLuanda onde está?As casas antigasO barro vermelhoAs nossas cantigasTractor derrubou?Meninos nas ruasCaçambulasQuigosasbrincadeiras minhas e tuasasfalto matou?- ManosRosa peixeiraQuitandeira MariaVocê tambémZefa mulatados brincos de lata- Luanda onde está?SorrindoAs quindas no chãoLaranjas e peixeMaboque docinhoA esperança nos olhosA certeza nas mãosMana Rosa peixeiraQuitandeira MariaZefa mulata- Os panos pintadosGarridosCaídosMostraram o coração:- Luanda está aqui!Luandino Vieira, in “Cultura II, 1957, n.º 1* Viriato da Cruz(Angola)MAKEZÚ- "Kuakiè!!!... Makèzú, Makèzú..."...................................................O pregão da avó XiminhaÉ mesmo como os seus panos,Já não tem a cor berranteQue tinha nos outros anos.Avó Xima está velhinha,Mas de manhã, manhãzinha,Pede licença ao reumâticoE num passo nada práticoRasga estradinhas na areia...Lá vai para um cajueiroQue se levanta altaneiroNo cruzeiro dos caminhosDas gentes que vão p'a Baixa.Nem criados, nem pedreirosNem alegres lavadeirasDessa nova geraçãoDas "venidas de alcatrão"Ouvem o fraco pregãoDa velhinha quitandeira.- "Kuakiè... Makèzú... Makèzú..."- "Antão, véia, hoje nada?"- "Nada, mano Filisberto...Hoje os tempo tá mudado..."- "Mas tá passá gente perto...Como é aqui tás fazendo isso?"- "Não sabe?! Todo esse povoPegó um costume novoQui diz qué civrização:Come só pão com chouriçoOu toma café com pão...E diz ainda pru cima(Hum... mbundo kène muxima...)Qui o nosso bom makèzúÉ pra veios como tu".- "Eles não sabe o que diz...Pru qué qui vivi filizE tem cem ano eu e tu?"- "É pruquê nossas raizTem força do makèzú!..."(Poemas, 1961) * António CardosoOferta