Carrazeda de Ansiães em palavras e imagens: Qual é a banda sonora mais adequada à Linha do Tua?

02-10-2009
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Há um fantasma a pairar sobre o vale incrustado no Alto Douro Vinhateiro. A albufeira pode afogar os comboios e também uma paisagem única no país. E eles não sabem nadar, yo! Chamamos os Black Company?Há qualquer coisa nesta banda sonora que não bate certo: "Estoy aquí, queriéndote..." O que faz Shakira neste comboio que parte da Brunheda às 10h38 e há-de chegar a Mirandela daqui a uma hora? "Que raio de música!", protesta a rapariga com cara de poucos amigos que, juntamente com mais três passageiros, se acomoda nos bancos azuis da automotora verde. Leva um trólei preto na mão, verniz gasto nas unhas e um ar de enfado que até arrepia. Não quer dizer o nome - "o que é que isso interessa?" -, mas tem uma proposta alternativa para a banda sonora desta viagem rio acima. "O comboio não sabe nadar, yo!" Ri-se sozinha, um riso sarcástico. O que faz Shakira neste comboio se podemos ter Black Company (voltem, estão perdoados!)? Onde é que já vimos este filme - ou melhor, onde é que já ouvimos esta música? Pelo menos em Foz Côa, 1995, auge da polémica para a construção de uma barragem que iria afogar as gravuras rupestres. Hoje a música é a mesma, o cenário é que é diferente: com a anunciada construção da barragem de Foz-Tua, a centenária linha ferroviária corre o risco de ir por água abaixo. Literalmente. Desde que o Governo apresentou o seu plano para a construção de dez novas barragens que não se fala de outra coisa. Haverá crime maior do que riscar do mapa uma paisagem como a do vale do Tua e ao mesmo tempo uma das linhas ferroviárias mais belas do mundo?, pergunta quem está contra a barragem. Ou o verdadeiro atentado será não aproveitar uma oportunidade que pode ser única para desenvolver a região, criar emprego, estimular o turismo nos cinco concelhos que vão partilhar a infra-estrutura (Alijó, Carrazeda de Ansiães, Murça, Vila Flor e Mirandela)?, contrapõe quem a defende. E será que há margem para uma espécie de terceira via, que permita a construção do equipamento e a manutenção da linha?Nesta manhã de terça-feira, o Tua corre lá em baixo, alheio à polémica. E o comboio corre lá em cima, empoleirado nos carris estreitos, serpenteando pelos montes, cruzando enormes penedos, roçando às vezes olivais que parecem não ter fim. Desde 12 de Fevereiro do ano passado, data em que uma composição descarrilou e se precipitou para o rio, causando a morte de três pessoas, que a linha está interrompida entre a estação do Tua e a Brunheda - diz quem sabe que este é um dos troços mais belos de todo o percurso, onde é possível ver o que o presidente da Câmara de Mirandela, José Silvano, arrisca chamar "o Grand Canyon português".O transporte dos pobresHoje, a viagem até Mirandela é feita apenas a partir da Brunheda - até lá, há um táxi que assegura, três vezes por dia em cada sentido, o transbordo de passageiros. Terça-feira, Maria Ascensão Lopes transportou três pessoas desde o Tua - os repórteres do PÚBLICO incluídos. A viagem, mais ou menos de meia hora, é feita monte acima, monte abaixo, por entre pomares de laranjeiras e a furar os pedaços de nevoeiro que parecem pousados na encosta. Em Pinhal do Norte, um casal de idosos apanha boleia do táxi. Até à estação da Brunheda são só mais cinco minutos.Já dentro da automotora da Metro de Mirandela (que assegura a totalidade do percurso, graças a um protocolo estabelecido com a CP), Francisco Patrício, 79 anos, e Teresa Brás, 76, acomodam-se em dois bancos voltados para a frente. Apesar de a conhecer de cor e salteada, Francisco ainda consegue surpreender-se com a beleza da paisagem do Alto Douro Vinhateiro (património mundial) que vem lá de fora. "Se viajarmos de carreira só vemos silvas, isto aqui é uma coisa muito linda que só é possível ver do comboio", comenta. E não é só por isso que Francisco não quer sequer ouvir falar na barragem. "Se for feita, a nossa linha finda. E o comboio é o transporte dos pobres. Nós vamos a Mirandela ao médico uma vez por mês. Se o comboio acabar, temos de ir de táxi, mas é uma despesa maluca.""Há dinheiro que pague?"Frederico Santos Silva, dono do restaurante Calça Curta, colado à estação do Tua (entroncamento com a Linha do Douro), não está a ouvir a conversa mas tem uma novidade para dar a Francisco Patrício. Esta: a Linha do Tua já morreu mas ainda não foi avisada. "O comboio já acabou porque a CP já acabou com ele. O que é que interessa estar ali a linha se não há ligações decentes para o Porto? Para estar assim, mais vale a barragem. Vai criar postos de trabalho, vai trazer tudo de bom para a região, nem há palavras", insiste.Vá dizer isso a Maria de Jesus e João Elias, proprietários das termas de Carlão, no concelho de Alijó. Independentemente da cota a que seja construída a barragem (as balizas situam-se entre os 160 e os 200 metros), o projecto de toda uma vida irá por água abaixo. O aproveitamento das nascentes de águas sulfurosas ("consideradas as melhores do país para tratar problemas de pele", assegura João) está nas mãos do casal desde 1980 e de então para cá os dois já perderam a conta ao que investiram naquele lugar idílico junto ao Tua. "Toda a nossa vida de trabalho está aqui, é como se fosse um filho para nós. Há dinheiro que pague isto?", lamenta-se Maria de Jesus.João Baptista Pinto, 86 anos cumpridos quase na íntegra em São Mamede de Riba Tua ("uma aldeia feliz", como garantem as placas na estrada), acha que sim, que o dinheiro pode muito bem pagar quase tudo. Ele próprio ficará sem umas "cento e tal laranjeiras" mas está pouco preocupado. "Como paguem aos lavradores o justo valor das suas posses, eles estão-se marimbando! Venha a barragem, é das coisas mais importantes para a região. A linha tem alguma importância? Antigamente tinha e era bonita, mas agora não tem movimento nenhum.."Precipícios e vertigensNão tem? Milheiro Oliveira, administrador delegado da Metro de Mirandela, garante que, nos "últimos tempos", o comboio tem transportado cerca de "50 mil passageiros anuais". "Claro que a maior parte deste tráfego acontece nos meses de Primavera e Verão, em que o comboio é utilizado sobretudo por turistas", realça. Daniel Conde fotografa e escreve sobre a Linha do Tua desde 1995 e sabe como ninguém que para muita gente, "idosos principalmente", ela ainda é o elo de "ligação do distrito de Bragança com o litoral do país". E sabe como ninguém que se a barragem afogar o comboio "muitas aldeias vão ficar sem um transporte condigno", o que só irá "agravar a interioridade". Daniel é natural de Vinhais, Bragança, e tornou-se utente da linha em 1994. Hoje, "porque a falta de condições" o obrigou a tal, trabalha em Lisboa, mas continua "saturado" de ver o interior "a saque de interesses que em nada beneficiam a população que ainda resiste" por lá. Também por isto, fundou, em Outubro de 2006, o Movimento Cívico pela Linha do Tua, que diz um rotundo não à construção da barragem.O mesmo não rotundo que dizem os ambientalistas da Quercus, que temem pelo desaparecimento da flora e da fauna característica do Tua. Ao que parece, a águia-real ainda passa por lá. Há um pormenor importante: mesmo que oficialmente a linha esteja interrompida até à estação do Tua, os comboios continuam a ir, todos os dias, até Santa Luzia (deve ter sido mesmo aqui que Judas perdeu as botas...). São mais 15 minutos de viagem que permitem voltar a deitar o olho ao que é este vale. E é isto: escarpas e penhascos que desafiam as águas, vegetação agora avermelhada junto à encosta pejada de árvores, às vezes precipícios que fazem vertigens. E a automotora abana, abana, abana...Mas continua a haver aqui qualquer coisa que não bate certo: hoje, Shakira canta em inglês. "I have a feeling inside me..." Os primeiros projectos para a construção de uma linha de caminho-de-ferro pelo vale do Tua surgiram em 1878. As dificuldades para a pôr de pé foram imensas - desde logo porque o acesso dos trabalhadores ao local das obras teve de ser feito por carreiros íngremes e escarpas praticamente inacessíveis. A construção da linha foi, por isso, considerada uma obra de engenharia notável. Os comboios começaram a circular entre o Tua e Mirandela em Outubro de 1887. Em 1906, a linha estendeu-se até Bragança. O troço Mirandela/Bragança acabou por ser encerrado em 1992. Em Fevereiro de 2007, uma automotora descarrilou, provocando três mortos. 13.01.2008, Sandra Silva Costa, PúblicoColaboração: Mário Carvalho


Há um fantasma a pairar sobre o vale incrustado no Alto Douro Vinhateiro. A albufeira pode afogar os comboios e também uma paisagem única no país. E eles não sabem nadar, yo! Chamamos os Black Company?Há qualquer coisa nesta banda sonora que não bate certo: "Estoy aquí, queriéndote..." O que faz Shakira neste comboio que parte da Brunheda às 10h38 e há-de chegar a Mirandela daqui a uma hora? "Que raio de música!", protesta a rapariga com cara de poucos amigos que, juntamente com mais três passageiros, se acomoda nos bancos azuis da automotora verde. Leva um trólei preto na mão, verniz gasto nas unhas e um ar de enfado que até arrepia. Não quer dizer o nome - "o que é que isso interessa?" -, mas tem uma proposta alternativa para a banda sonora desta viagem rio acima. "O comboio não sabe nadar, yo!" Ri-se sozinha, um riso sarcástico. O que faz Shakira neste comboio se podemos ter Black Company (voltem, estão perdoados!)? Onde é que já vimos este filme - ou melhor, onde é que já ouvimos esta música? Pelo menos em Foz Côa, 1995, auge da polémica para a construção de uma barragem que iria afogar as gravuras rupestres. Hoje a música é a mesma, o cenário é que é diferente: com a anunciada construção da barragem de Foz-Tua, a centenária linha ferroviária corre o risco de ir por água abaixo. Literalmente. Desde que o Governo apresentou o seu plano para a construção de dez novas barragens que não se fala de outra coisa. Haverá crime maior do que riscar do mapa uma paisagem como a do vale do Tua e ao mesmo tempo uma das linhas ferroviárias mais belas do mundo?, pergunta quem está contra a barragem. Ou o verdadeiro atentado será não aproveitar uma oportunidade que pode ser única para desenvolver a região, criar emprego, estimular o turismo nos cinco concelhos que vão partilhar a infra-estrutura (Alijó, Carrazeda de Ansiães, Murça, Vila Flor e Mirandela)?, contrapõe quem a defende. E será que há margem para uma espécie de terceira via, que permita a construção do equipamento e a manutenção da linha?Nesta manhã de terça-feira, o Tua corre lá em baixo, alheio à polémica. E o comboio corre lá em cima, empoleirado nos carris estreitos, serpenteando pelos montes, cruzando enormes penedos, roçando às vezes olivais que parecem não ter fim. Desde 12 de Fevereiro do ano passado, data em que uma composição descarrilou e se precipitou para o rio, causando a morte de três pessoas, que a linha está interrompida entre a estação do Tua e a Brunheda - diz quem sabe que este é um dos troços mais belos de todo o percurso, onde é possível ver o que o presidente da Câmara de Mirandela, José Silvano, arrisca chamar "o Grand Canyon português".O transporte dos pobresHoje, a viagem até Mirandela é feita apenas a partir da Brunheda - até lá, há um táxi que assegura, três vezes por dia em cada sentido, o transbordo de passageiros. Terça-feira, Maria Ascensão Lopes transportou três pessoas desde o Tua - os repórteres do PÚBLICO incluídos. A viagem, mais ou menos de meia hora, é feita monte acima, monte abaixo, por entre pomares de laranjeiras e a furar os pedaços de nevoeiro que parecem pousados na encosta. Em Pinhal do Norte, um casal de idosos apanha boleia do táxi. Até à estação da Brunheda são só mais cinco minutos.Já dentro da automotora da Metro de Mirandela (que assegura a totalidade do percurso, graças a um protocolo estabelecido com a CP), Francisco Patrício, 79 anos, e Teresa Brás, 76, acomodam-se em dois bancos voltados para a frente. Apesar de a conhecer de cor e salteada, Francisco ainda consegue surpreender-se com a beleza da paisagem do Alto Douro Vinhateiro (património mundial) que vem lá de fora. "Se viajarmos de carreira só vemos silvas, isto aqui é uma coisa muito linda que só é possível ver do comboio", comenta. E não é só por isso que Francisco não quer sequer ouvir falar na barragem. "Se for feita, a nossa linha finda. E o comboio é o transporte dos pobres. Nós vamos a Mirandela ao médico uma vez por mês. Se o comboio acabar, temos de ir de táxi, mas é uma despesa maluca.""Há dinheiro que pague?"Frederico Santos Silva, dono do restaurante Calça Curta, colado à estação do Tua (entroncamento com a Linha do Douro), não está a ouvir a conversa mas tem uma novidade para dar a Francisco Patrício. Esta: a Linha do Tua já morreu mas ainda não foi avisada. "O comboio já acabou porque a CP já acabou com ele. O que é que interessa estar ali a linha se não há ligações decentes para o Porto? Para estar assim, mais vale a barragem. Vai criar postos de trabalho, vai trazer tudo de bom para a região, nem há palavras", insiste.Vá dizer isso a Maria de Jesus e João Elias, proprietários das termas de Carlão, no concelho de Alijó. Independentemente da cota a que seja construída a barragem (as balizas situam-se entre os 160 e os 200 metros), o projecto de toda uma vida irá por água abaixo. O aproveitamento das nascentes de águas sulfurosas ("consideradas as melhores do país para tratar problemas de pele", assegura João) está nas mãos do casal desde 1980 e de então para cá os dois já perderam a conta ao que investiram naquele lugar idílico junto ao Tua. "Toda a nossa vida de trabalho está aqui, é como se fosse um filho para nós. Há dinheiro que pague isto?", lamenta-se Maria de Jesus.João Baptista Pinto, 86 anos cumpridos quase na íntegra em São Mamede de Riba Tua ("uma aldeia feliz", como garantem as placas na estrada), acha que sim, que o dinheiro pode muito bem pagar quase tudo. Ele próprio ficará sem umas "cento e tal laranjeiras" mas está pouco preocupado. "Como paguem aos lavradores o justo valor das suas posses, eles estão-se marimbando! Venha a barragem, é das coisas mais importantes para a região. A linha tem alguma importância? Antigamente tinha e era bonita, mas agora não tem movimento nenhum.."Precipícios e vertigensNão tem? Milheiro Oliveira, administrador delegado da Metro de Mirandela, garante que, nos "últimos tempos", o comboio tem transportado cerca de "50 mil passageiros anuais". "Claro que a maior parte deste tráfego acontece nos meses de Primavera e Verão, em que o comboio é utilizado sobretudo por turistas", realça. Daniel Conde fotografa e escreve sobre a Linha do Tua desde 1995 e sabe como ninguém que para muita gente, "idosos principalmente", ela ainda é o elo de "ligação do distrito de Bragança com o litoral do país". E sabe como ninguém que se a barragem afogar o comboio "muitas aldeias vão ficar sem um transporte condigno", o que só irá "agravar a interioridade". Daniel é natural de Vinhais, Bragança, e tornou-se utente da linha em 1994. Hoje, "porque a falta de condições" o obrigou a tal, trabalha em Lisboa, mas continua "saturado" de ver o interior "a saque de interesses que em nada beneficiam a população que ainda resiste" por lá. Também por isto, fundou, em Outubro de 2006, o Movimento Cívico pela Linha do Tua, que diz um rotundo não à construção da barragem.O mesmo não rotundo que dizem os ambientalistas da Quercus, que temem pelo desaparecimento da flora e da fauna característica do Tua. Ao que parece, a águia-real ainda passa por lá. Há um pormenor importante: mesmo que oficialmente a linha esteja interrompida até à estação do Tua, os comboios continuam a ir, todos os dias, até Santa Luzia (deve ter sido mesmo aqui que Judas perdeu as botas...). São mais 15 minutos de viagem que permitem voltar a deitar o olho ao que é este vale. E é isto: escarpas e penhascos que desafiam as águas, vegetação agora avermelhada junto à encosta pejada de árvores, às vezes precipícios que fazem vertigens. E a automotora abana, abana, abana...Mas continua a haver aqui qualquer coisa que não bate certo: hoje, Shakira canta em inglês. "I have a feeling inside me..." Os primeiros projectos para a construção de uma linha de caminho-de-ferro pelo vale do Tua surgiram em 1878. As dificuldades para a pôr de pé foram imensas - desde logo porque o acesso dos trabalhadores ao local das obras teve de ser feito por carreiros íngremes e escarpas praticamente inacessíveis. A construção da linha foi, por isso, considerada uma obra de engenharia notável. Os comboios começaram a circular entre o Tua e Mirandela em Outubro de 1887. Em 1906, a linha estendeu-se até Bragança. O troço Mirandela/Bragança acabou por ser encerrado em 1992. Em Fevereiro de 2007, uma automotora descarrilou, provocando três mortos. 13.01.2008, Sandra Silva Costa, PúblicoColaboração: Mário Carvalho

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