BoaSociedade: A Queima e o machismo

20-05-2009
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A tradição, a festa e o sexismo entre os estudantes Diário de Coimbra, 30/04/2009 1. Ao contrário de anos anteriores, o cartaz da Queima das Fitas de Coimbra exibe uma mulher. Bem, reconheça-se que, de um modo geral o cartaz da queima não tem sequer figuras. Mas, enfim, agora os organizadores acharam por bem meter lá uma menina. Temos de os felicitar por isso. Numa altura em que as raparigas correspondem a cerca de 55% da universidade, já têm, ao menos, direito a uma presença figurativa de 25%. É um progresso, sem dúvida. Sentada, ao lado do caldeirão onde as fitas vão ser queimadas, lá está ela, sorridente e solicita tal como os seus companheiros. Destes, dois deles lá vão a escalar pela academia acima (supõe-se), agarrados às fitas. O terceiro aparece a dedicar uma balada à sua colega aloirada, que se mostra deliciada e divertida. Os ícones das festas estudantis são sem dúvida um meio onde as representações sociais dos seus autores se projectam e onde, muitas vezes, o subconsciente diz muito mais do que as intenções. É aliás para esses pequenos pormenores dos comportamentos quotidianos – e em especial o que eles revelam quanto à divisão de papéis entre os dois sexos – que teremos de dirigir o nosso olhar (sociológico, psicológico ou outro) se pretendemos aferir até que ponto se continua a veicular, ou não, uma cultura masculina e discriminatória do lugar da mulher. 2. O fenómeno da feminização introduziu uma importante dissonância na cultura estudantil de Coimbra, uma vez que a tradição académica é fortemente masculinizada. Com efeito, a presença hoje francamente maioritária de mulheres entre a população universitária parece evidenciar cada vez mais o claro contraste entre essa realidade e a predominância de um universo estudantil onde continua a prevalecer, em todos os domínios da vida académica, a força do poder masculino. Isto, apesar de Coimbra e a sua universidade terem sido palco de importantes debates em torno do fenómeno, ou seja, de ter sido aqui desencadeado um dos primeiros movimentos de questionamento do lugar da mulher na sociedade, com a publicação no jornal académico Via Latina, em 1961, da “Carta a uma jovem portuguesa”, um texto anónimo que transcendeu o meio estudantil e o âmbito local. Desde a década de 1950 a presença de raparigas na UC aumentou de 29% no ano de 1951-1952, para 40% em 1960-1961, tendo atingido os 45% em 1968-1969 e os 50% em 1973-1974. Em 2004-2005 o peso das mulheres situou-se nos 54,4% (cf. Estanque e Bebiano, 2007, pp. 50 e 95). 3. Mas, apesar do peso demográfico das raparigas ter vindo a crescer de forma constante, e da importância de figuras femininas entre os grupos de activistas dos anos 60, a presença de mulheres nos lugares dirigentes das estruturas associativas tem sido escassa. Na generalidade dos casos, mesmo quando elas estão presentes, continuam a ser os rapazes a monopolizar o protagonismo. Nos rituais académicos e nas práticas da praxe persistem os códigos, as linguagens e os comportamentos marcados pela mesma masculinidade herdada do passado, sendo raros os exemplos de resistência e de denúncia dessa mesma lógica. Os rituais festivos, os cortejos, as brincadeiras, as próprias canções associadas ao simbolismo da universidade são, todos eles, imbuídos de valores patriarcais e de atitudes onde persiste algum marialvismo. Nuns casos a violência (simbólica ou física) noutros as práticas sexistas, tendem ainda a relegar as raparigas para um estatuto secundário em relação aos rapazes. Por exemplo, não é permitido às mulheres cantarem o fado de Coimbra (não sendo proibido, há no entanto uma resistência da parte dos mais acérrimos defensores da tradição); os dirigentes associativos e os activistas são maioritariamente rapazes; mesmo as jovens que ocupam posições na estrutura dirigente da associação ou nos “núcleos” de curso das faculdades, os pelouros que lhes são atribuídos são os de pendor mais “feminino” (de acordo com o cânone tradicional); na Direcção Geral, as “meninas” (além de serem minoritárias) surgem sempre na segunda ou na terceira fila nas diversas cerimónias oficiais onde a associação está representada. 4. É certo que esta questão é alimentada simultaneamente por rapazes e raparigas. Portanto, não se trata de vitimizá-las a elas e acusá-los a eles (o problema é sociocultural e vai muito para além das intenções dos indivíduos). O que podemos é interrogar-nos até quando esta alegre e despreocupada indiferença vai manter-se? Até quando se continuam a reproduzir práticas e gestos de segregação do sexo feminino – visíveis numa Universidade feminizada em número e masculinizada nos comportamentos? É certo que a Universidade é reflexo da sociedade, mas não deveria esta ser a "vanguarda" na denúncia e na crítica a valores tão conservadores? Não se percebe que estes códigos, ao serem reproduzidos na academia, se perpetuam nos empregos, na esfera doméstica e na sociedade em geral? Até quando tudo isto vai ser aceite sem qualquer debate?


A tradição, a festa e o sexismo entre os estudantes Diário de Coimbra, 30/04/2009 1. Ao contrário de anos anteriores, o cartaz da Queima das Fitas de Coimbra exibe uma mulher. Bem, reconheça-se que, de um modo geral o cartaz da queima não tem sequer figuras. Mas, enfim, agora os organizadores acharam por bem meter lá uma menina. Temos de os felicitar por isso. Numa altura em que as raparigas correspondem a cerca de 55% da universidade, já têm, ao menos, direito a uma presença figurativa de 25%. É um progresso, sem dúvida. Sentada, ao lado do caldeirão onde as fitas vão ser queimadas, lá está ela, sorridente e solicita tal como os seus companheiros. Destes, dois deles lá vão a escalar pela academia acima (supõe-se), agarrados às fitas. O terceiro aparece a dedicar uma balada à sua colega aloirada, que se mostra deliciada e divertida. Os ícones das festas estudantis são sem dúvida um meio onde as representações sociais dos seus autores se projectam e onde, muitas vezes, o subconsciente diz muito mais do que as intenções. É aliás para esses pequenos pormenores dos comportamentos quotidianos – e em especial o que eles revelam quanto à divisão de papéis entre os dois sexos – que teremos de dirigir o nosso olhar (sociológico, psicológico ou outro) se pretendemos aferir até que ponto se continua a veicular, ou não, uma cultura masculina e discriminatória do lugar da mulher. 2. O fenómeno da feminização introduziu uma importante dissonância na cultura estudantil de Coimbra, uma vez que a tradição académica é fortemente masculinizada. Com efeito, a presença hoje francamente maioritária de mulheres entre a população universitária parece evidenciar cada vez mais o claro contraste entre essa realidade e a predominância de um universo estudantil onde continua a prevalecer, em todos os domínios da vida académica, a força do poder masculino. Isto, apesar de Coimbra e a sua universidade terem sido palco de importantes debates em torno do fenómeno, ou seja, de ter sido aqui desencadeado um dos primeiros movimentos de questionamento do lugar da mulher na sociedade, com a publicação no jornal académico Via Latina, em 1961, da “Carta a uma jovem portuguesa”, um texto anónimo que transcendeu o meio estudantil e o âmbito local. Desde a década de 1950 a presença de raparigas na UC aumentou de 29% no ano de 1951-1952, para 40% em 1960-1961, tendo atingido os 45% em 1968-1969 e os 50% em 1973-1974. Em 2004-2005 o peso das mulheres situou-se nos 54,4% (cf. Estanque e Bebiano, 2007, pp. 50 e 95). 3. Mas, apesar do peso demográfico das raparigas ter vindo a crescer de forma constante, e da importância de figuras femininas entre os grupos de activistas dos anos 60, a presença de mulheres nos lugares dirigentes das estruturas associativas tem sido escassa. Na generalidade dos casos, mesmo quando elas estão presentes, continuam a ser os rapazes a monopolizar o protagonismo. Nos rituais académicos e nas práticas da praxe persistem os códigos, as linguagens e os comportamentos marcados pela mesma masculinidade herdada do passado, sendo raros os exemplos de resistência e de denúncia dessa mesma lógica. Os rituais festivos, os cortejos, as brincadeiras, as próprias canções associadas ao simbolismo da universidade são, todos eles, imbuídos de valores patriarcais e de atitudes onde persiste algum marialvismo. Nuns casos a violência (simbólica ou física) noutros as práticas sexistas, tendem ainda a relegar as raparigas para um estatuto secundário em relação aos rapazes. Por exemplo, não é permitido às mulheres cantarem o fado de Coimbra (não sendo proibido, há no entanto uma resistência da parte dos mais acérrimos defensores da tradição); os dirigentes associativos e os activistas são maioritariamente rapazes; mesmo as jovens que ocupam posições na estrutura dirigente da associação ou nos “núcleos” de curso das faculdades, os pelouros que lhes são atribuídos são os de pendor mais “feminino” (de acordo com o cânone tradicional); na Direcção Geral, as “meninas” (além de serem minoritárias) surgem sempre na segunda ou na terceira fila nas diversas cerimónias oficiais onde a associação está representada. 4. É certo que esta questão é alimentada simultaneamente por rapazes e raparigas. Portanto, não se trata de vitimizá-las a elas e acusá-los a eles (o problema é sociocultural e vai muito para além das intenções dos indivíduos). O que podemos é interrogar-nos até quando esta alegre e despreocupada indiferença vai manter-se? Até quando se continuam a reproduzir práticas e gestos de segregação do sexo feminino – visíveis numa Universidade feminizada em número e masculinizada nos comportamentos? É certo que a Universidade é reflexo da sociedade, mas não deveria esta ser a "vanguarda" na denúncia e na crítica a valores tão conservadores? Não se percebe que estes códigos, ao serem reproduzidos na academia, se perpetuam nos empregos, na esfera doméstica e na sociedade em geral? Até quando tudo isto vai ser aceite sem qualquer debate?

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