O Cachimbo de Magritte: Nuno Álvares Pereira e os seus heterónimos (3)

20-05-2009
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As três correntes historiográficas sobre a crise de 1383/85 a que me referi não têm a mesma implantação. Estando a terceira quase confinada à academia, na versão Joel Serrão ou na versão José Mattoso, o debate na opinião pública tem sido entre o Nuno Álvares Pereira do nacionalismo e o do marxismo - ou, para sermos rigorosos, entre o de um nacionalismo popular e o de um marxismo vulgarizado. Na esquerda blogosférica, por exemplo, Álvaro Cunhal e António Borges Coelho foram nomeados postuladores oficiais da causa de descanonização do Beato Nuno. Caso notável de conservadorismo ideológico: quase meio século depois d`A Revolução de 1383, de Borges Coelho, e d`As Lutas de Classes em Portugal nos Fins da Idade Média, de Cunhal, a esquerda ainda não produziu uma nova narrativa do interregno nem assimilou os avanços da investigação universitária. É talvez a última relíquia do PREC na sociedade portuguesa: o materialismo histórico foi deitado à rua pelo progresso da ciência, mas voltou a entrar pela janela da crítica a uma canonização. O ópio dos intelectuais contra o ópio do povo. (Aron, esteja onde estiver, deve estar a sorrir...) A crítica da vulgata marxista à biografia de Nuno Álvares segue um método previsível. Pega em Fernão Lopes e na Crónica do Condestável, isola do contexto histórico alguns aspectos escolhidos e submete-os ao exame do marxismo. Dê por onde der, o Santo Condestável sai sempre chumbado.Vejamos um pequeno exemplo, mais uma vez. Borges Coelho não pode negar, porque o historiador "popular" Fernão Lopes o diz, que Nuno Álvares impunha ao seu exército de capitães "burgueses" e soldados "proletários" uma dura disciplina, vigiando com mão de ferro os abusos sobre as populações civis e o saque em campanha. Era uma raridade, não porque o saque fosse considerado moralmente ilegítimo, mas porque constituía uma forma corrente de recompensar as tropas, sobretudo as chefias intermédias. Que protestam contra esta mariquice humanitária, insinuando que o Condestável só lutava para alcançar a glória e não o lucro. Borges Coelho fica dividido. "Eis aqui um problema intrincado para filósofos, para a ética e para a economia. Qual a atitude mais progressiva, a atitude dos burgueses ou a do conde?" Dúvida lancinante - quem é que está do lado certo da História? O povo ou a reacção? Mas um bom marxista tem resposta para tudo: "muitos nobres, ao proibirem o saque, têm medo é que estas riquezas vão emancipar novos vilões e aumentar a sua força e poder." E aqui está como o materialismo histórico revela no acto aparentemente "progressivo" do Condestável um servicinho à contra-revolução. O mais vermelho anátema, porém, cai sobre o sucesso militar de Nuno Álvares, no fundo defesa dos interesses de classe ou sucessão de crimes de guerra, e sobre a sua reivindicação de vis direitos de propriedade, prova de que era, horror dos horrores - rico e proprietário. Como seria de esperar, o ortodoxo 5 dias segue o registo "explorador do proletariado" (também chamado Cunhal sem anestesia) e o Jugular, mais soixante-huitard, o registo "general contra-revolucionário" (também chamado não percebo nada disto, mas já sei fazer links ao Terceira Noite). (cont.)


As três correntes historiográficas sobre a crise de 1383/85 a que me referi não têm a mesma implantação. Estando a terceira quase confinada à academia, na versão Joel Serrão ou na versão José Mattoso, o debate na opinião pública tem sido entre o Nuno Álvares Pereira do nacionalismo e o do marxismo - ou, para sermos rigorosos, entre o de um nacionalismo popular e o de um marxismo vulgarizado. Na esquerda blogosférica, por exemplo, Álvaro Cunhal e António Borges Coelho foram nomeados postuladores oficiais da causa de descanonização do Beato Nuno. Caso notável de conservadorismo ideológico: quase meio século depois d`A Revolução de 1383, de Borges Coelho, e d`As Lutas de Classes em Portugal nos Fins da Idade Média, de Cunhal, a esquerda ainda não produziu uma nova narrativa do interregno nem assimilou os avanços da investigação universitária. É talvez a última relíquia do PREC na sociedade portuguesa: o materialismo histórico foi deitado à rua pelo progresso da ciência, mas voltou a entrar pela janela da crítica a uma canonização. O ópio dos intelectuais contra o ópio do povo. (Aron, esteja onde estiver, deve estar a sorrir...) A crítica da vulgata marxista à biografia de Nuno Álvares segue um método previsível. Pega em Fernão Lopes e na Crónica do Condestável, isola do contexto histórico alguns aspectos escolhidos e submete-os ao exame do marxismo. Dê por onde der, o Santo Condestável sai sempre chumbado.Vejamos um pequeno exemplo, mais uma vez. Borges Coelho não pode negar, porque o historiador "popular" Fernão Lopes o diz, que Nuno Álvares impunha ao seu exército de capitães "burgueses" e soldados "proletários" uma dura disciplina, vigiando com mão de ferro os abusos sobre as populações civis e o saque em campanha. Era uma raridade, não porque o saque fosse considerado moralmente ilegítimo, mas porque constituía uma forma corrente de recompensar as tropas, sobretudo as chefias intermédias. Que protestam contra esta mariquice humanitária, insinuando que o Condestável só lutava para alcançar a glória e não o lucro. Borges Coelho fica dividido. "Eis aqui um problema intrincado para filósofos, para a ética e para a economia. Qual a atitude mais progressiva, a atitude dos burgueses ou a do conde?" Dúvida lancinante - quem é que está do lado certo da História? O povo ou a reacção? Mas um bom marxista tem resposta para tudo: "muitos nobres, ao proibirem o saque, têm medo é que estas riquezas vão emancipar novos vilões e aumentar a sua força e poder." E aqui está como o materialismo histórico revela no acto aparentemente "progressivo" do Condestável um servicinho à contra-revolução. O mais vermelho anátema, porém, cai sobre o sucesso militar de Nuno Álvares, no fundo defesa dos interesses de classe ou sucessão de crimes de guerra, e sobre a sua reivindicação de vis direitos de propriedade, prova de que era, horror dos horrores - rico e proprietário. Como seria de esperar, o ortodoxo 5 dias segue o registo "explorador do proletariado" (também chamado Cunhal sem anestesia) e o Jugular, mais soixante-huitard, o registo "general contra-revolucionário" (também chamado não percebo nada disto, mas já sei fazer links ao Terceira Noite). (cont.)

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