As Minhas Leituras: Monstros, burocratas, pensadores e dandies

11-07-2009
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Hannah Arendt escreveu algures que não há monstros, há burocratas. A frase, assim lapidar e concisa, e fora de contexto, poderia ser vista como uma mera boutade, não a tivesse a autora desenvolvido, matizado e qualificado em quase tudo o que escreveu.Como, não há monstros? E então Hitler? E então Estaline? E então Cheney e Rumsfeld? Mas Hannah Arendt tem razão. Pudéssemos nós entrar na alma destes homens, talvez deparássemos nela com o Mal. Ou talvez deparássemos apenas com um enorme vazio. Mas não podemos: nem na deles, nem da dum qualquer serial killer que visto de dentro talvez fosse mais monstruoso, ou menos, do que qualquer tirano - mas que nós só podemos ver de fora.Não sei o que faria o lojista da esquina, que há décadas remói a sua zanga com o mundo, se as peripécias da História lhe tivessem dado o poder sobre milhões de seres humanos - mas não deram.Aonde eu quero chegar com isto é que talvez haja monstros, mas se os há, pouco interessa, porque o que de monstruoso acontece talvez acontecesse sem eles. Os tiranos que conhecemos não teriam passado de homenzinhos amargos e insignificantes sem as burocracias que os rodearam. Eichmann nunca compreendeu o que tinha feito de mal: sempre se limitara a fazer o seu trabalho, das nove às cinco; a guerra não lhe dizia nada; irritava-se quando lhe tiravam os guardas dos campos de concentração para os enviarem para a frente de combate.Sim, mas... só burocratas? As redes de que dependem os tiranos são feitas só de burocratas? Em sentido restrito, no sentido de gente cinzenta e conformista, é claro que não. Todos os tiranos tiveram os seus intelectuais e os seus propagandistas - gente por vezes bem original e vistosa: os filósofos do romantismo tardio alemão, os teóricos do marxismo, os poetas do modernismo que se extasiaram com Mussolini. Goebbels e Leni Riefenstahl.Mais próximos de nós, também Thatcher, Pinochet, Cheney e Rumsfeld se apoiaram em Hayek, em Fukuyama, no laureado Milton Friedman... Por trás de cada monstro (que, repito, talvez não seja um monstro) há quase sempre um pensador.Mas só isto não basta. Os pensadores são poucos. Os divulgadores ajudam a fazer número, mas ainda assim não são suficientes. Mesmo os burocratas, numerosos como são, não chegam para perfazer uma maioria. É aqui que entram os dandies: a multidão daqueles para quem o que conta, sobretudo, é serem do seu tempo. Estarem à moda. Estarem com o que "está a dar".Houve os dandies do comunismo, houve os dandies do fascismo: hoje há os dandies do neoliberalismo. Estão com o que está. Desdenham o passado e acreditam que o futuro é propriedade sua. Revêem-se na modernidade, como já na modernidade se reviam, há cem anos, os seus antecessores. Não sabem nada. Abundam nos quadros das empresas e dos partidos. Alguns dizem-se socialistas. Alguns são Primeiros-Ministros.


Hannah Arendt escreveu algures que não há monstros, há burocratas. A frase, assim lapidar e concisa, e fora de contexto, poderia ser vista como uma mera boutade, não a tivesse a autora desenvolvido, matizado e qualificado em quase tudo o que escreveu.Como, não há monstros? E então Hitler? E então Estaline? E então Cheney e Rumsfeld? Mas Hannah Arendt tem razão. Pudéssemos nós entrar na alma destes homens, talvez deparássemos nela com o Mal. Ou talvez deparássemos apenas com um enorme vazio. Mas não podemos: nem na deles, nem da dum qualquer serial killer que visto de dentro talvez fosse mais monstruoso, ou menos, do que qualquer tirano - mas que nós só podemos ver de fora.Não sei o que faria o lojista da esquina, que há décadas remói a sua zanga com o mundo, se as peripécias da História lhe tivessem dado o poder sobre milhões de seres humanos - mas não deram.Aonde eu quero chegar com isto é que talvez haja monstros, mas se os há, pouco interessa, porque o que de monstruoso acontece talvez acontecesse sem eles. Os tiranos que conhecemos não teriam passado de homenzinhos amargos e insignificantes sem as burocracias que os rodearam. Eichmann nunca compreendeu o que tinha feito de mal: sempre se limitara a fazer o seu trabalho, das nove às cinco; a guerra não lhe dizia nada; irritava-se quando lhe tiravam os guardas dos campos de concentração para os enviarem para a frente de combate.Sim, mas... só burocratas? As redes de que dependem os tiranos são feitas só de burocratas? Em sentido restrito, no sentido de gente cinzenta e conformista, é claro que não. Todos os tiranos tiveram os seus intelectuais e os seus propagandistas - gente por vezes bem original e vistosa: os filósofos do romantismo tardio alemão, os teóricos do marxismo, os poetas do modernismo que se extasiaram com Mussolini. Goebbels e Leni Riefenstahl.Mais próximos de nós, também Thatcher, Pinochet, Cheney e Rumsfeld se apoiaram em Hayek, em Fukuyama, no laureado Milton Friedman... Por trás de cada monstro (que, repito, talvez não seja um monstro) há quase sempre um pensador.Mas só isto não basta. Os pensadores são poucos. Os divulgadores ajudam a fazer número, mas ainda assim não são suficientes. Mesmo os burocratas, numerosos como são, não chegam para perfazer uma maioria. É aqui que entram os dandies: a multidão daqueles para quem o que conta, sobretudo, é serem do seu tempo. Estarem à moda. Estarem com o que "está a dar".Houve os dandies do comunismo, houve os dandies do fascismo: hoje há os dandies do neoliberalismo. Estão com o que está. Desdenham o passado e acreditam que o futuro é propriedade sua. Revêem-se na modernidade, como já na modernidade se reviam, há cem anos, os seus antecessores. Não sabem nada. Abundam nos quadros das empresas e dos partidos. Alguns dizem-se socialistas. Alguns são Primeiros-Ministros.

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