Fado Falado: Quando eu conheci Álvaro Cunhal (RPS)

20-07-2005
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Fiz a minha primeira campanha eleitoral em 89. Campanha da CDU, nas eleições para o Parlamento Europeu. Carlos Carvalhas era o número um de uma lista onde, entre outros, estavam Barros Moura, Joaquim Miranda e uma qualquer daquelas verdes do costume. Álvaro Cunhal era secretário-geral do PCP.O meu Director de então instigou-me a conseguir uma entrevista com Álvaro Cunhal, na noite eleitoral. Pelos vistos, nunca Cunhal nos tinha dado uma entrevista ou prestado declarações em exclusivo. Era tempo de superar os traumas de 75.A minha geração e mesmo alguns veteranos já olhavam para isso como "episódios arqueológicos" e, do lado do PCP, havia também outra abertura. Sinal dos tempos: em Moscovo, Gorbachov tinha posto em marcha a perestroika, pressentia-se que a hora era de mudança, ainda que não se suspeitasse que tudo iria processar-se tão depressa.Carlos Carvalhas foi comigo, desde a primeira hora, de uma correcção extrema. Simpático, afável, colaborante, respeitando sempre os campos em que cada um se movia. Na mesma linha agiu toda a "entourage" do PCP: um tal Judas, irmão do outro, dos serviços de imprensa do PCP, e a Paula Barata, ainda hoje assessora do Grupo Parlamentar. O PCP estava claramente interessado em ter bom relacionamento connosco.Logo nos primeiros contactos, ainda na pré-campanha, falei a Carvalhas no objectivo de entrevistar Cunhal. Respondeu-me que iria ver, depois dizia-me.A "coisa" era tão mais importante para mim quanto Cunhal estava "desaparecido" há meses. No início do ano tinha-se deslocado à União Soviética para ser submetido a uma delicada intervenção cirúrgica a um aneurisma. A informação fornecida pelo PCP resumia-se ao essencial: tinha corrido tudo muito bem, estava bem, a trabalhar.Ao terceiro dia de campanha, Carvalhas disse-me que tinha falado do assunto e estava tudo combinado. Aliás, apresentar-me-ia "ao camarada Álvaro Cunhal" daí a dois dias, na Marinha Grande. Seria a primeira aparição do secretário-geral na campanha, também a primeira aparição pública desde a viagem e a operação em Moscovo. Carvalhas aconselhou-me: "não fale nada da entrevista, isso é tratado pelos serviços do partido.". OK.Cunhal lá apareceu, ao quinto dia da campanha, num qualquer pavilhão da Marinha Grande para um mega-jantar. Perto do fim, Carvalhas, à direita de Cunhal numa mesa, chamou-me com um aceno. Quando me aproximei, por trás dos dois, Carvalhas bateu no ombro de Cunhal: "Álvaro... Quero apresentar-te um jornalista que está a acompanhar a nossa campanha...".O mítico Cunhal voltou-se. Estava ali à minha frente, sorriso aberto. Carvalhas fez as apresentações, anunciando a "minha ficha" e sem me dizer, claro, quem era o outro.Cunhal apertou-me a mão, afável e decidido. Olhou-me (é verdade, o homem tinha um olhar que nos atravessava) e perguntou, de rajada, ao puto de 25 anos: "É a primeira vez que está numa campanha com o nosso partido?...". Anuí. "E que me diz?... É ou não é um grande partido?!". Balbuciei que sim, que era...Estava "à rasca", é certo. Não queria mesmo ter dito aquilo - bolas! - mas, felizmente, tinha uma saída brilhante na manga, preparada ao longo dos últimos dias: "E o senhor doutor como está? Já recuperado do problema de saúde?...".Cunhal deu uma risada e, com vários movimentos de cabeça, olhando em volta, como que procurando alguém, atira: "Mas está aqui alguém doente?... Aonde? Aonde?...".Já não consegui dizer mais nada e foi o próprio Cunhal a sair em meu socorro: "Fica para o comício?...", perguntou... "Sim, sim...", respondi, com a cabeça a cem à hora procurando qualquer coisa mais para manter conversa, mas ele não deu tempo: "então, bom trabalho para si.", correu ele comigo, dando-me umas palmadinhas no braço.Foi o meu primeiro contacto "directo" com Cunhal. Só tive mais um: na noite eleitoral, com a entrevista prometida por Carvalhas.No próprio domingo das eleições, ao chegar à sede do PCP na Soeiro Pereira Gomes, um funcionário garantia: "ele só fala à RTP e a si, não dá entrevistas a mais nenhuma rádio nem a ninguém.". Assim foi. Cunhal entrou para o estúdio montado pela RTP (então televisão única) no rés-do-chão da sede do PCP e eu subi ao primeiro piso, para a sala onde estava montado o nosso estúdio. Não consigo lembrar-me de quem era o técnico que me acompanhava. Só me recordo da estagiária que me apoiou nessa noite: uma tal Anabela Góis, bonita, elegante, cheia de charme. Vi, nessa noite, muito marxista-leninista deitar-lhe olhares lascivos.Nervoso, aguardei uns quinze minutos que pareceram horas, mas, finalmente, ele - Cunhal - apareceu à porta, por trás da silhueta da estagiária Anabela que o tinha conduzido desde o rés-do-chão até ali.Correu tudo bem. No nosso primeiro encontro, ganhara Cunhal. No segundo, se houve vencedor, fui eu.Claro que não tenho cópia dessa entrevista histórica. Talvez um dia a solicite ao PCP. Ou a Germano Campos, que também a deve ter.Ah!... Já me esquecia: obrigado, Anabela.

Fiz a minha primeira campanha eleitoral em 89. Campanha da CDU, nas eleições para o Parlamento Europeu. Carlos Carvalhas era o número um de uma lista onde, entre outros, estavam Barros Moura, Joaquim Miranda e uma qualquer daquelas verdes do costume. Álvaro Cunhal era secretário-geral do PCP.O meu Director de então instigou-me a conseguir uma entrevista com Álvaro Cunhal, na noite eleitoral. Pelos vistos, nunca Cunhal nos tinha dado uma entrevista ou prestado declarações em exclusivo. Era tempo de superar os traumas de 75.A minha geração e mesmo alguns veteranos já olhavam para isso como "episódios arqueológicos" e, do lado do PCP, havia também outra abertura. Sinal dos tempos: em Moscovo, Gorbachov tinha posto em marcha a perestroika, pressentia-se que a hora era de mudança, ainda que não se suspeitasse que tudo iria processar-se tão depressa.Carlos Carvalhas foi comigo, desde a primeira hora, de uma correcção extrema. Simpático, afável, colaborante, respeitando sempre os campos em que cada um se movia. Na mesma linha agiu toda a "entourage" do PCP: um tal Judas, irmão do outro, dos serviços de imprensa do PCP, e a Paula Barata, ainda hoje assessora do Grupo Parlamentar. O PCP estava claramente interessado em ter bom relacionamento connosco.Logo nos primeiros contactos, ainda na pré-campanha, falei a Carvalhas no objectivo de entrevistar Cunhal. Respondeu-me que iria ver, depois dizia-me.A "coisa" era tão mais importante para mim quanto Cunhal estava "desaparecido" há meses. No início do ano tinha-se deslocado à União Soviética para ser submetido a uma delicada intervenção cirúrgica a um aneurisma. A informação fornecida pelo PCP resumia-se ao essencial: tinha corrido tudo muito bem, estava bem, a trabalhar.Ao terceiro dia de campanha, Carvalhas disse-me que tinha falado do assunto e estava tudo combinado. Aliás, apresentar-me-ia "ao camarada Álvaro Cunhal" daí a dois dias, na Marinha Grande. Seria a primeira aparição do secretário-geral na campanha, também a primeira aparição pública desde a viagem e a operação em Moscovo. Carvalhas aconselhou-me: "não fale nada da entrevista, isso é tratado pelos serviços do partido.". OK.Cunhal lá apareceu, ao quinto dia da campanha, num qualquer pavilhão da Marinha Grande para um mega-jantar. Perto do fim, Carvalhas, à direita de Cunhal numa mesa, chamou-me com um aceno. Quando me aproximei, por trás dos dois, Carvalhas bateu no ombro de Cunhal: "Álvaro... Quero apresentar-te um jornalista que está a acompanhar a nossa campanha...".O mítico Cunhal voltou-se. Estava ali à minha frente, sorriso aberto. Carvalhas fez as apresentações, anunciando a "minha ficha" e sem me dizer, claro, quem era o outro.Cunhal apertou-me a mão, afável e decidido. Olhou-me (é verdade, o homem tinha um olhar que nos atravessava) e perguntou, de rajada, ao puto de 25 anos: "É a primeira vez que está numa campanha com o nosso partido?...". Anuí. "E que me diz?... É ou não é um grande partido?!". Balbuciei que sim, que era...Estava "à rasca", é certo. Não queria mesmo ter dito aquilo - bolas! - mas, felizmente, tinha uma saída brilhante na manga, preparada ao longo dos últimos dias: "E o senhor doutor como está? Já recuperado do problema de saúde?...".Cunhal deu uma risada e, com vários movimentos de cabeça, olhando em volta, como que procurando alguém, atira: "Mas está aqui alguém doente?... Aonde? Aonde?...".Já não consegui dizer mais nada e foi o próprio Cunhal a sair em meu socorro: "Fica para o comício?...", perguntou... "Sim, sim...", respondi, com a cabeça a cem à hora procurando qualquer coisa mais para manter conversa, mas ele não deu tempo: "então, bom trabalho para si.", correu ele comigo, dando-me umas palmadinhas no braço.Foi o meu primeiro contacto "directo" com Cunhal. Só tive mais um: na noite eleitoral, com a entrevista prometida por Carvalhas.No próprio domingo das eleições, ao chegar à sede do PCP na Soeiro Pereira Gomes, um funcionário garantia: "ele só fala à RTP e a si, não dá entrevistas a mais nenhuma rádio nem a ninguém.". Assim foi. Cunhal entrou para o estúdio montado pela RTP (então televisão única) no rés-do-chão da sede do PCP e eu subi ao primeiro piso, para a sala onde estava montado o nosso estúdio. Não consigo lembrar-me de quem era o técnico que me acompanhava. Só me recordo da estagiária que me apoiou nessa noite: uma tal Anabela Góis, bonita, elegante, cheia de charme. Vi, nessa noite, muito marxista-leninista deitar-lhe olhares lascivos.Nervoso, aguardei uns quinze minutos que pareceram horas, mas, finalmente, ele - Cunhal - apareceu à porta, por trás da silhueta da estagiária Anabela que o tinha conduzido desde o rés-do-chão até ali.Correu tudo bem. No nosso primeiro encontro, ganhara Cunhal. No segundo, se houve vencedor, fui eu.Claro que não tenho cópia dessa entrevista histórica. Talvez um dia a solicite ao PCP. Ou a Germano Campos, que também a deve ter.Ah!... Já me esquecia: obrigado, Anabela.

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