CASTELO DE VIDE: A INVERSÃO DE VALORES

04-07-2005
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A INVERSÃO DE VALORES

Ponha-se o leitor na pele do ministro Luís Nobre Guedes: em muitas coisas, aquilo em que ele acredita não é aquilo em que eu e muitos leitores acreditamos. Essa diferença é importante, mas não é a diferença essencial: decisiva é a fronteira entre os que têm e os que não têm convicções. Entre os que, quando são chamados a servir, servem convicções ou servem interesses. Eu acredito que Luís Nobre Guedes serve convicções e não interesses - caso contrário, melhor faria em ter continuado na sua actividade privada como advogado, onde seguramente ganhava mais, expunha-se menos e era melhor senhor do seu tempo. Sim, eu sei, há ainda a vaidade a considerar: há quem não se importe de perder dinheiro, tempo e liberdade, para mais tarde poder acrescentar ao seu "curriculum" que um dia foi ministro. Mas não só não acho que seja o caso de Nobre Guedes, como também não acho (mas isto é uma perspectiva meramente pessoal) que seja recomendável acrescentar ao "curriculum" de quem quer que seja ter sido ministro de um governo chefiado... por Santana Lopes).

Acredito, pois, que Luís Nobre Guedes aceitou servir, sem mais. O partido, certamente, mas também o país e aquilo que ele acredita ser bom para o país. É verdade que começou logo a perder à partida, cedendo o Mar para o seu correligionário e amigo Paulo Portas, e cedendo as Cidades e o Território para a ambição e o desejo de protagonismo de Arnault. Aceitou gerir o resto, mesmo sabendo que o resto deixava de fora grande parte do que é importante e que o seu nome e o seu Ministério do Ambiente estavam destinados a ser uma flor na lapela e não um espinho cravado na garganta de todos os grupos de interesses largamente representados neste Governo: os autarcas, os construtores civis que financiam os partidos do Governo, as empresas poluidoras, os grandes investidores financeiros do turismo, os respeitáveis comendadores ou o palhaço do Atlântico. Mas desde o princípio que ele soube, nas suas palavras, que a escolha era simples: ou estava ali para "servir interesses", ou para "combater interesses".

Mal tinha conseguido instalar-se para trabalhar (depois de ver o seu ministério "expropriado" pelo desejo de "Lebensraum" do ministro Arnault), e logo lhe desaguou nos braços o incêndio na refinaria da Galp em Matosinhos - onde, só por um conjunto de circunstâncias milagrosas, houve apenas 32 feridos e nenhum morto ou danos ambientais graves a lastimar. Rapidamente, a própria Galp tratou de elaborar um relatório onde as culpas do acidente eram sacudidas para cima do empreiteiro. E, com isso e como habitualmente, era suposto todos terem ficado sastisfeitos e descansados, incluindo um ministro do Ambiente que fosse sensível ao "melindre da questão" e "solidário" com o Governo. A Luís Nobre Guedes restavam duas possibilidades: ou aceitava como boas, e sem as questionar, as conclusões ilibatórias do próprio suspeito principal, ou julgava a questão demasiado importante para que não subsistissem dúvidas de que havia condições de segurança adequadas nas duas refinarias portuguesas. Ou seja: ou decidia segundo a sua consciência e o seu dever, ou decidia, neste caso, segundo o interesse da Galp.

Optou conforme era sua obrigação: nomeou uma comissão de peritos, integrando elementos de todas as áreas envolvidas, e encarregou-os de, no prazo de 30 dias, apurarem quem e como tinha sido responsável por um acidente do qual poderiam ter resultado consequências trágicas. Sucede que, ao contrário do que também é habitual, a comissão: a) levou as investigações até ao fim; b) cumpriu o prazo fixado; c) chegou a conclusões e apurou responsabilidades; d) aprovou o relatório por unanimidade; e) e, contrariando o relatório da Galp e os interesses em jogo, apurou que o incidente se ficara a dever a "demasiadas" e "demasiadamente graves" falhas no sistema de segurança da empresa. Ou seja, e poupando pormenores, a Galp explora as refinarias portuguesas sem ter um sistema de segurança adequado para fazer face a acidentes que, pelas instalações em causa, podem facilmente assumir proporções de catástrofe. No caso do incêndio em Matosinhos, tal só não sucedeu porque o corpo de intervenção dos bombeiros do Porto estava ocasionalmente reunido e conseguiu chegar ao local e começar a actuar 20 minutos depois.

Na posse deste relatório, e certamente impressionado com a gravidade das suas conclusões, Nobre Guedes fez aquilo que se faz em qualquer país democrático e civilizado: convocou a imprensa e divulgou-o. Deste modo, a Galp ficou intimada perante a opinião pública a rever todo o seu sistema de segurança em vigor, de forma a poder assegurar aos portugueses que amanhã não serão confrontados com uma tragédia em Matosinhos ou em Sines.

O que ele foi fazer! Devia, como disse Álvaro Barreto (em reunião partidária!), "ter esperado dois ou três dias", antes de divulgar o relatório. Muito embora o ministro dos Assuntos Económicos afirme que não põe em causa as conclusões do relatório (e com que autoridade o faria, se não é perito na matéria?), ele acha que o modo como o relatório foi divulgado pôs em causa o ministro das Obras Públicas, que veio para o Governo directamente da presidência da Galp. Ocorre perguntar para que serviriam os dois ou três dias de dilação pedidos por Álvaro Barreto: para tentar suavizar o relatório? Para restringir a sua circulação? Para se encomendar um "parecer" que o contrariasse? Para dar tempo ao ministro das Obras Públicas para se preparar psicologicamente para a revelação pública da incompetência da administração da Galp a que presidia de garantir a segurança de pessoas e bens que lhes estavam confiados? É um mistério, que, infelizmente, ninguém achou interessante esclarecer junto de Álvaro Barreto. Aparentemente, os militantes do PSD-Açores, destinatários do desabafo, ficaram-se pela conclusão de que tudo não terá passado de uma guerra interpartidária, dentro da coligação governamental.

Dentro do próprio Governo montou-se então, de imediato, uma campanha de "controlo de danos", com vista ao presente e, sobretudo, ao futuro. Não se podendo ocultar a mensagem, atacava-se o mensageiro. Recorrendo à central de autopropaganda e promoção da imagem há muito ao serviço do actual ministro das Obras Públicas, lançou-se uma campanha de desacreditação de Nobre Guedes, com a prestimosa colaboração do jornal "Expresso". Sempre recorrendo a "fontes governamentais" não identificadas, Nobre Guedes foi acusado de "precipitação", "falta de solidariedade governamental", "ânsia de protagonismo" e até - ao que chega o despudor! - de querer ser "um Carlos Pimenta do século XXI", como se essa história do Ambiente fosse uma questão do século passado, seguramente menos importante do que a defesa da imagem do ministro das Obras Públicas.

Eis o grau de perversão, de total inversão de valores, a que se pode chegar, passo a passo, na gestão da coisa pública! A verdade é menos importante do que a imagem construída dos ministros. A prevenção de acidentes que podem custar vidas e danos ambientais devastadores é menos importante do que a oportunidade e a solidariedade entre membros do Governo. A transparência na gestão dos interesses públicos é menos importante do que do que a manutenção da sagrada impunidade de empresas como a Galp ou da irresponsabilidade funcional adquirida dos gestores públicos. É a diferença, a enorme diferença, entre servir o Estado ou servir-se do Estado.

Apesar de tudo, é intrigante pensar por que razão os cultores do "abafamento" e da irresponsabilidade resolveram levantar publicamente este conflito, em lugar de o deixarem passar silenciosamente, certos, como estão, de que jamais comissão ou relatório algum poderia ter como efeito punir culpados. A razão é simples: eles acham que o ministro do Ambiente teve uma entrada perigosa em cena. E resolveram avisá-lo desde já que não pense em brincar aos Carlos Pimenta. Há aí muitos e poderosos interesses, aliás representados no Governo, que não esperam nem contam com um ministro disposto a enfrentá-los e em esquecer a "solidariedade governamental". O aviso fica feito, a próxima guerra fica marcada e, ou muito me engano, ou já há vencido antecipado.

M.S.T.

A INVERSÃO DE VALORES

Ponha-se o leitor na pele do ministro Luís Nobre Guedes: em muitas coisas, aquilo em que ele acredita não é aquilo em que eu e muitos leitores acreditamos. Essa diferença é importante, mas não é a diferença essencial: decisiva é a fronteira entre os que têm e os que não têm convicções. Entre os que, quando são chamados a servir, servem convicções ou servem interesses. Eu acredito que Luís Nobre Guedes serve convicções e não interesses - caso contrário, melhor faria em ter continuado na sua actividade privada como advogado, onde seguramente ganhava mais, expunha-se menos e era melhor senhor do seu tempo. Sim, eu sei, há ainda a vaidade a considerar: há quem não se importe de perder dinheiro, tempo e liberdade, para mais tarde poder acrescentar ao seu "curriculum" que um dia foi ministro. Mas não só não acho que seja o caso de Nobre Guedes, como também não acho (mas isto é uma perspectiva meramente pessoal) que seja recomendável acrescentar ao "curriculum" de quem quer que seja ter sido ministro de um governo chefiado... por Santana Lopes).

Acredito, pois, que Luís Nobre Guedes aceitou servir, sem mais. O partido, certamente, mas também o país e aquilo que ele acredita ser bom para o país. É verdade que começou logo a perder à partida, cedendo o Mar para o seu correligionário e amigo Paulo Portas, e cedendo as Cidades e o Território para a ambição e o desejo de protagonismo de Arnault. Aceitou gerir o resto, mesmo sabendo que o resto deixava de fora grande parte do que é importante e que o seu nome e o seu Ministério do Ambiente estavam destinados a ser uma flor na lapela e não um espinho cravado na garganta de todos os grupos de interesses largamente representados neste Governo: os autarcas, os construtores civis que financiam os partidos do Governo, as empresas poluidoras, os grandes investidores financeiros do turismo, os respeitáveis comendadores ou o palhaço do Atlântico. Mas desde o princípio que ele soube, nas suas palavras, que a escolha era simples: ou estava ali para "servir interesses", ou para "combater interesses".

Mal tinha conseguido instalar-se para trabalhar (depois de ver o seu ministério "expropriado" pelo desejo de "Lebensraum" do ministro Arnault), e logo lhe desaguou nos braços o incêndio na refinaria da Galp em Matosinhos - onde, só por um conjunto de circunstâncias milagrosas, houve apenas 32 feridos e nenhum morto ou danos ambientais graves a lastimar. Rapidamente, a própria Galp tratou de elaborar um relatório onde as culpas do acidente eram sacudidas para cima do empreiteiro. E, com isso e como habitualmente, era suposto todos terem ficado sastisfeitos e descansados, incluindo um ministro do Ambiente que fosse sensível ao "melindre da questão" e "solidário" com o Governo. A Luís Nobre Guedes restavam duas possibilidades: ou aceitava como boas, e sem as questionar, as conclusões ilibatórias do próprio suspeito principal, ou julgava a questão demasiado importante para que não subsistissem dúvidas de que havia condições de segurança adequadas nas duas refinarias portuguesas. Ou seja: ou decidia segundo a sua consciência e o seu dever, ou decidia, neste caso, segundo o interesse da Galp.

Optou conforme era sua obrigação: nomeou uma comissão de peritos, integrando elementos de todas as áreas envolvidas, e encarregou-os de, no prazo de 30 dias, apurarem quem e como tinha sido responsável por um acidente do qual poderiam ter resultado consequências trágicas. Sucede que, ao contrário do que também é habitual, a comissão: a) levou as investigações até ao fim; b) cumpriu o prazo fixado; c) chegou a conclusões e apurou responsabilidades; d) aprovou o relatório por unanimidade; e) e, contrariando o relatório da Galp e os interesses em jogo, apurou que o incidente se ficara a dever a "demasiadas" e "demasiadamente graves" falhas no sistema de segurança da empresa. Ou seja, e poupando pormenores, a Galp explora as refinarias portuguesas sem ter um sistema de segurança adequado para fazer face a acidentes que, pelas instalações em causa, podem facilmente assumir proporções de catástrofe. No caso do incêndio em Matosinhos, tal só não sucedeu porque o corpo de intervenção dos bombeiros do Porto estava ocasionalmente reunido e conseguiu chegar ao local e começar a actuar 20 minutos depois.

Na posse deste relatório, e certamente impressionado com a gravidade das suas conclusões, Nobre Guedes fez aquilo que se faz em qualquer país democrático e civilizado: convocou a imprensa e divulgou-o. Deste modo, a Galp ficou intimada perante a opinião pública a rever todo o seu sistema de segurança em vigor, de forma a poder assegurar aos portugueses que amanhã não serão confrontados com uma tragédia em Matosinhos ou em Sines.

O que ele foi fazer! Devia, como disse Álvaro Barreto (em reunião partidária!), "ter esperado dois ou três dias", antes de divulgar o relatório. Muito embora o ministro dos Assuntos Económicos afirme que não põe em causa as conclusões do relatório (e com que autoridade o faria, se não é perito na matéria?), ele acha que o modo como o relatório foi divulgado pôs em causa o ministro das Obras Públicas, que veio para o Governo directamente da presidência da Galp. Ocorre perguntar para que serviriam os dois ou três dias de dilação pedidos por Álvaro Barreto: para tentar suavizar o relatório? Para restringir a sua circulação? Para se encomendar um "parecer" que o contrariasse? Para dar tempo ao ministro das Obras Públicas para se preparar psicologicamente para a revelação pública da incompetência da administração da Galp a que presidia de garantir a segurança de pessoas e bens que lhes estavam confiados? É um mistério, que, infelizmente, ninguém achou interessante esclarecer junto de Álvaro Barreto. Aparentemente, os militantes do PSD-Açores, destinatários do desabafo, ficaram-se pela conclusão de que tudo não terá passado de uma guerra interpartidária, dentro da coligação governamental.

Dentro do próprio Governo montou-se então, de imediato, uma campanha de "controlo de danos", com vista ao presente e, sobretudo, ao futuro. Não se podendo ocultar a mensagem, atacava-se o mensageiro. Recorrendo à central de autopropaganda e promoção da imagem há muito ao serviço do actual ministro das Obras Públicas, lançou-se uma campanha de desacreditação de Nobre Guedes, com a prestimosa colaboração do jornal "Expresso". Sempre recorrendo a "fontes governamentais" não identificadas, Nobre Guedes foi acusado de "precipitação", "falta de solidariedade governamental", "ânsia de protagonismo" e até - ao que chega o despudor! - de querer ser "um Carlos Pimenta do século XXI", como se essa história do Ambiente fosse uma questão do século passado, seguramente menos importante do que a defesa da imagem do ministro das Obras Públicas.

Eis o grau de perversão, de total inversão de valores, a que se pode chegar, passo a passo, na gestão da coisa pública! A verdade é menos importante do que a imagem construída dos ministros. A prevenção de acidentes que podem custar vidas e danos ambientais devastadores é menos importante do que a oportunidade e a solidariedade entre membros do Governo. A transparência na gestão dos interesses públicos é menos importante do que do que a manutenção da sagrada impunidade de empresas como a Galp ou da irresponsabilidade funcional adquirida dos gestores públicos. É a diferença, a enorme diferença, entre servir o Estado ou servir-se do Estado.

Apesar de tudo, é intrigante pensar por que razão os cultores do "abafamento" e da irresponsabilidade resolveram levantar publicamente este conflito, em lugar de o deixarem passar silenciosamente, certos, como estão, de que jamais comissão ou relatório algum poderia ter como efeito punir culpados. A razão é simples: eles acham que o ministro do Ambiente teve uma entrada perigosa em cena. E resolveram avisá-lo desde já que não pense em brincar aos Carlos Pimenta. Há aí muitos e poderosos interesses, aliás representados no Governo, que não esperam nem contam com um ministro disposto a enfrentá-los e em esquecer a "solidariedade governamental". O aviso fica feito, a próxima guerra fica marcada e, ou muito me engano, ou já há vencido antecipado.

M.S.T.

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