Rodrigo Adão da Fonseca

30-05-2010
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Citar o “1984” de Orwell é hoje uma das receitas mais fáceis e preguiçosas que um qualquer Conde de Abranhos tem à sua disposição, chegada a hora de enquadrar, em duas penadas, aquilo que são as aspirações totalitárias de um Estado que tudo faz para nos vigiar.

O Conde de Abranhos, recorde-se, é uma personagem ficcional nascida da fértil imaginação de Eça de Queirós, um político medíocre (o Abranhos, leia-se), que, a despeito de uma licenciatura mal parida, não deixou de perceber que o uso da frase feita, das mesmas fórmulas repetidas até à náusea, e a prevalência da retórica, em detrimento das convicções, poderiam ser condimentos úteis para suportar as aspirações de quem quer apenas ter uma vidinha e ser um intelectual de pacotilha – entenda-se, de alcance regional ou paroquial. Uma das características principais do Abranhos passava por citar de forma acrítica certos conceitos religiosamente memorizados (a “sebenta”), para justificar e defender precisamente aquilo que estes visavam combater. Assim, uma das passagens mais hilariantes da vida política de Abranhos consistiu na utilização dos princípios basilares da Constituição liberal para defender e justificar a afirmação da Carta absolutista ou tradicionalista, sem que nisso encontrasse – nem ele, nem os seus pares – qualquer contradição.

Ao ler a mais recente repetição ad nauseam do argumentário Pachequiano, no Público, e das reações acríticas de muitos dos seus leitores e pares, recordei-me do desabafo humorístico de um bom amigo que, nos tempos idos de 2010, o comparava ao Conde de Abranhos. Em boa verdade, só mesmo um Conde de Abranhos para dissertar a partir de Orwell, socialista encartado, fazendo do britânico um libertário e resistente, e da sua obra uma espécie de antecipação exacta de uma realidade que, merecendo reflexão, está longe de corresponder na íntegra ao que se alinhava em “1984”.

Não me interpretem mal: as distopias de Orwell são obras maiores, que merecem a nossa leitura e atenção. Há aliás uma de que gosto particularmente, e que também é frequentemente recordada e utilizada nas citações de pacotilha ou de bolinho chinês (sim, é uma piada ao que sobrou do Maoísmo). Vou assim, eu próprio, vestir a pele de Abranhos, para manipular torturar em benefício dos meus argumentos, “Animal Farm”, traduzida para português como “O Triunfo dos Porcos”, obra que sempre me atraiu, não tanto pelo livro, que li de uma assentada, mas pelo fascínio que me causou a sua adaptação em filme de animação.

“O Triunfo dos Porcos” é uma obra satírica que ironiza, sobretudo, com os idealistas do marxismo que se deixam deixaram capturar por um sistema corrupto e apenas movido pela retórica do Poder, um Poder que subjuga todos e expulsa os que, metaforicamente, não estejam dispostos a mover-se “sobre quatro patas”.

Se Pacheco Pereira poderia ser personagem de uma das obras secundárias do Eça, não hesitemos, poderia igualmente ser, indubitavelmente, um dos porcos do Orwell. Orwell, Orwell, como não recordar que Pacheco Pereira faz parte desse grupo de idealistas que, na juventude, sonhavam com uma sociedade igualitária? Ou, como nos dizia Orwell, pela voz das suas personagens suínas, uma sociedade onde uma elite não parasitasse à custa do esforço e do trabalho dos animais? À semelhança dos porquinhos Snowball, Napoleão e Squealer, Pacheco e muitos dos seus semelhantes perderam-se nos trilhos da vida, capturados pelo sistema que tanto juraram desmantelar e combater. Começaram com “duas”, mas rapidamente perceberam que é muito melhor narrar a Utopia, mas caminhar num estilo de vida “a quatro patas”.

Qual Squealer (de todos os porcos, o mais dotado em termos de oratória, o “educador do povo”, aquele que se arrogava de “transformar o preto em branco” (sic), para muitos, a corporização suína do jornal Público/Quadratura do Círculo/SIC/DN/Sábado-e-lagartixas-e-mais-não-sei-o-quê Pravda), Pacheco Pereira dá-se ao trabalho de dissertar ecumenicamente sobre uma qualquer distopia totalitária, torturando o “1984” a seu bel-prazer, com truques de mágica e retórica, até concluir que, afinal, o corolário português das fake news e do Big Brother foram, pasme-se, a governação de Passos e Portas, cujo funeral o país já fez, mas que Pacheco teima em não deixa enterrar. Diz-me o esquilo Tico: se o Conde de Abranhos era capaz de justificar a Carta com os princípios da Constituição Liberal, e Squealer se gabava de fazer do preto, branco, porque não pode Pacheco Pereira arriscar e comparar Passos a Trump, fazer de Orwell um paladino crítico das fake news e de uma sociedade bafienta que – horror (!) – está a “destruir a mediações”, ou dizer que a mutação semântica da palavra “cortes” em “poupanças” mais não é do que uma conspiração orquestrada do um malévolo propagandista, em conluio com a comunicação social?

Já o esquilo Teco chama-me à razão: se a idade faz de nós condescendes, convém, ainda assim, fugir de uma postura, digamos, quadrúpede. Pelo que, qual King Bob, regressado do meu desterro, me apetece enaltecer: nem todas as formas de retórica devem merecer a nossa placidez. Passos e Portas não podem ser comparados a Trump. E a substituição da palavra “cortes”, por “poupanças”, não corresponde a qualquer newspeak, mas apenas a formas distintas, politicamente legítimas, de enfatizar as consequências da crise em que Portugal mergulhou, fruto de anos de má governação. Pois se não há dúvida que houve “cortes”, tão pouco podemos ignorar que esses cortes se materializaram em “poupanças”, poupanças importantes para se atingir o equilíbrio “orçamental”.

O que não dá para ignorar são as contradições insanáveis dos textos de Pacheco Pereira, que nem sequer se dá ao trabalho – por que em bom rigor, nem disso necessita – de manter a coerência interna do seu argumentos. Por um lado, fala na destruição das mediações, como corolário daquilo que considera ser a afirmação de um mundo totalitário, para adiante nos dizer que, afinal, é a comunicação social que compactou, na disseminação do lugar-comum. Como não dá para ignorar que o mesmo Pacheco que, recorrentemente nos aponta a emergência de uns media capturados, tem bancada e projeta-se em todos os grupos de comunicação social do país, da Impresa, à SONAE, à Cofina, até à Global Media, todos eles com ligações fortíssimas ao status quo. E mais exemplos poderíamos dissecar, se o tempo não tivesse – usando um dos clichês do economês – um elevado custo de oportunidade.

Tempo é dinheiro. Pelo que termino por aqui. Não sem rematar, como se exige em qualquer dissertação barata que se apropria de Orwell, com a frase que se impõe. Orwell escreveu uma distopia, nós vivemos nessa distopia. Estava certo, e seguramente escreveu “O Triunfo dos Porcos” a pensar no Portugal de hoje: “Todos os animais são iguais. Mas uns são mais iguais do que outros”.

Citar o “1984” de Orwell é hoje uma das receitas mais fáceis e preguiçosas que um qualquer Conde de Abranhos tem à sua disposição, chegada a hora de enquadrar, em duas penadas, aquilo que são as aspirações totalitárias de um Estado que tudo faz para nos vigiar.

O Conde de Abranhos, recorde-se, é uma personagem ficcional nascida da fértil imaginação de Eça de Queirós, um político medíocre (o Abranhos, leia-se), que, a despeito de uma licenciatura mal parida, não deixou de perceber que o uso da frase feita, das mesmas fórmulas repetidas até à náusea, e a prevalência da retórica, em detrimento das convicções, poderiam ser condimentos úteis para suportar as aspirações de quem quer apenas ter uma vidinha e ser um intelectual de pacotilha – entenda-se, de alcance regional ou paroquial. Uma das características principais do Abranhos passava por citar de forma acrítica certos conceitos religiosamente memorizados (a “sebenta”), para justificar e defender precisamente aquilo que estes visavam combater. Assim, uma das passagens mais hilariantes da vida política de Abranhos consistiu na utilização dos princípios basilares da Constituição liberal para defender e justificar a afirmação da Carta absolutista ou tradicionalista, sem que nisso encontrasse – nem ele, nem os seus pares – qualquer contradição.

Ao ler a mais recente repetição ad nauseam do argumentário Pachequiano, no Público, e das reações acríticas de muitos dos seus leitores e pares, recordei-me do desabafo humorístico de um bom amigo que, nos tempos idos de 2010, o comparava ao Conde de Abranhos. Em boa verdade, só mesmo um Conde de Abranhos para dissertar a partir de Orwell, socialista encartado, fazendo do britânico um libertário e resistente, e da sua obra uma espécie de antecipação exacta de uma realidade que, merecendo reflexão, está longe de corresponder na íntegra ao que se alinhava em “1984”.

Não me interpretem mal: as distopias de Orwell são obras maiores, que merecem a nossa leitura e atenção. Há aliás uma de que gosto particularmente, e que também é frequentemente recordada e utilizada nas citações de pacotilha ou de bolinho chinês (sim, é uma piada ao que sobrou do Maoísmo). Vou assim, eu próprio, vestir a pele de Abranhos, para manipular torturar em benefício dos meus argumentos, “Animal Farm”, traduzida para português como “O Triunfo dos Porcos”, obra que sempre me atraiu, não tanto pelo livro, que li de uma assentada, mas pelo fascínio que me causou a sua adaptação em filme de animação.

“O Triunfo dos Porcos” é uma obra satírica que ironiza, sobretudo, com os idealistas do marxismo que se deixam deixaram capturar por um sistema corrupto e apenas movido pela retórica do Poder, um Poder que subjuga todos e expulsa os que, metaforicamente, não estejam dispostos a mover-se “sobre quatro patas”.

Se Pacheco Pereira poderia ser personagem de uma das obras secundárias do Eça, não hesitemos, poderia igualmente ser, indubitavelmente, um dos porcos do Orwell. Orwell, Orwell, como não recordar que Pacheco Pereira faz parte desse grupo de idealistas que, na juventude, sonhavam com uma sociedade igualitária? Ou, como nos dizia Orwell, pela voz das suas personagens suínas, uma sociedade onde uma elite não parasitasse à custa do esforço e do trabalho dos animais? À semelhança dos porquinhos Snowball, Napoleão e Squealer, Pacheco e muitos dos seus semelhantes perderam-se nos trilhos da vida, capturados pelo sistema que tanto juraram desmantelar e combater. Começaram com “duas”, mas rapidamente perceberam que é muito melhor narrar a Utopia, mas caminhar num estilo de vida “a quatro patas”.

Qual Squealer (de todos os porcos, o mais dotado em termos de oratória, o “educador do povo”, aquele que se arrogava de “transformar o preto em branco” (sic), para muitos, a corporização suína do jornal Público/Quadratura do Círculo/SIC/DN/Sábado-e-lagartixas-e-mais-não-sei-o-quê Pravda), Pacheco Pereira dá-se ao trabalho de dissertar ecumenicamente sobre uma qualquer distopia totalitária, torturando o “1984” a seu bel-prazer, com truques de mágica e retórica, até concluir que, afinal, o corolário português das fake news e do Big Brother foram, pasme-se, a governação de Passos e Portas, cujo funeral o país já fez, mas que Pacheco teima em não deixa enterrar. Diz-me o esquilo Tico: se o Conde de Abranhos era capaz de justificar a Carta com os princípios da Constituição Liberal, e Squealer se gabava de fazer do preto, branco, porque não pode Pacheco Pereira arriscar e comparar Passos a Trump, fazer de Orwell um paladino crítico das fake news e de uma sociedade bafienta que – horror (!) – está a “destruir a mediações”, ou dizer que a mutação semântica da palavra “cortes” em “poupanças” mais não é do que uma conspiração orquestrada do um malévolo propagandista, em conluio com a comunicação social?

Já o esquilo Teco chama-me à razão: se a idade faz de nós condescendes, convém, ainda assim, fugir de uma postura, digamos, quadrúpede. Pelo que, qual King Bob, regressado do meu desterro, me apetece enaltecer: nem todas as formas de retórica devem merecer a nossa placidez. Passos e Portas não podem ser comparados a Trump. E a substituição da palavra “cortes”, por “poupanças”, não corresponde a qualquer newspeak, mas apenas a formas distintas, politicamente legítimas, de enfatizar as consequências da crise em que Portugal mergulhou, fruto de anos de má governação. Pois se não há dúvida que houve “cortes”, tão pouco podemos ignorar que esses cortes se materializaram em “poupanças”, poupanças importantes para se atingir o equilíbrio “orçamental”.

O que não dá para ignorar são as contradições insanáveis dos textos de Pacheco Pereira, que nem sequer se dá ao trabalho – por que em bom rigor, nem disso necessita – de manter a coerência interna do seu argumentos. Por um lado, fala na destruição das mediações, como corolário daquilo que considera ser a afirmação de um mundo totalitário, para adiante nos dizer que, afinal, é a comunicação social que compactou, na disseminação do lugar-comum. Como não dá para ignorar que o mesmo Pacheco que, recorrentemente nos aponta a emergência de uns media capturados, tem bancada e projeta-se em todos os grupos de comunicação social do país, da Impresa, à SONAE, à Cofina, até à Global Media, todos eles com ligações fortíssimas ao status quo. E mais exemplos poderíamos dissecar, se o tempo não tivesse – usando um dos clichês do economês – um elevado custo de oportunidade.

Tempo é dinheiro. Pelo que termino por aqui. Não sem rematar, como se exige em qualquer dissertação barata que se apropria de Orwell, com a frase que se impõe. Orwell escreveu uma distopia, nós vivemos nessa distopia. Estava certo, e seguramente escreveu “O Triunfo dos Porcos” a pensar no Portugal de hoje: “Todos os animais são iguais. Mas uns são mais iguais do que outros”.

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