A Cinco Tons: Entrevista de Saldanha Sanches ao "Diário Económico"

05-08-2010
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Este verão descobri um livro que me deixou deslumbrado.Qual?Um de um autor chileno, chamado Roberto Bolaño."Detectives Selvagens"?Sim. Comprei em Madrid e li em espanhol durante as férias. Adorei.Imagino que poucos saberão desse seu gosto pela literatura.Sabem os meus amigos. Não ando para aí a dizer, porque quando me pedem para falar não é sobre literatura. Mas já fui a um programa do Francisco José Viegas para falar de livros e de romances.Lê muitos romances?Menos. Leio muito menos romances do que lia antes, mas ainda leio alguns, em férias e para adormecer. Agora esse espaço de leitura sem esforço e sem trabalho está mais na História do que nos romances. Até porque com a idade ficamos menos flexíveis e é-se menos sensível ao novo. Portanto não é fácil gostar-se de um autor que não se conheceu. Bolaño não é o Dostoievski, nem é o Tolstoi, nem é o Balzac. É um autor novo, mas aderi completamente.Falou do seu gosto pela literatura; já me tinha referido a sua paixão pela arte. É um comprador de arte?Não, não. Sou um comprador de arte em museus.Não compra?Devia comprar mas não compro porque os quadros que me povoam a cabeça são os Matisses, são os Mondrians, são os Kandinskys... Esses receio não os poder comprar tão cedo.Mas tem esperança.Tenho. Mais cinco milhões, menos cinco milhões (risos).Isso é uma crítica à facilidade com que se fala de milhões actualmente?Esses milhões são milhões míticos porque são mais dinheiro do que nós ganhamos a vida inteira. Mas o facto é que a riqueza produzida hoje é muito maior. Na verdade, o capitalismo, para usar expressões clássicas, mostrou nos últimos 50 anos uma capacidade para produzir riqueza que é inteiramente nova na História. Veja-se o apogeu na China. A China está com uma produção de riqueza completamente espantosa. A Inglaterra cresceu com uma taxa média de 3,5% ao ano e ao fim de cem anos era o dobro. A China está a crescer sete ou oito por cento e duplica todos os anos e com uma massa humana impensável até hoje. Mas mesmo no Ocidente houve um tremendo crescimento da riqueza e uma má distribuição dessa riqueza que foi o que aconteceu nos últimos vinte anos. Isto seguiu-se a uma produção equilibrada de riqueza durante os 30 anos pós-guerra, os 30 anos do keynesianismo, em que houve a preocupação de aumentar os salários reais, a expansão da classe média que cresceu e de repente tivemos as praias estragadas. Estragadas no bom sentido, porque de repente a classe média já não são dez, são cem. A Ericeira era óptima, mas começa a padecer de falta de espaço.É a democratização.São os males bons. É o mal da abundância, como é evidente, com as estradas cheias de carros. E essa classe média começa a crescer de uma forma espantosa. O bom capitalismo - e acho que essa questão é interessante - que é o que funciona, o capitalismo nórdico, mesmo o inglês no essencial, o francês, conseguiu ter taxas de crescimento de três, quatro por cento por ano e aumentar sempre a distribuição.É esse o sistema que defende para a economia portuguesa?O sistema tem de funcionar. Aliás, até responderia com uma coisa que dizíamos muito no tempo do marxismo, que é: "A prova do pudim é que se come".Continua a pensar da mesma maneira?Estas máximas ou marcas ficam. Não tenho nenhuma razão para as deitar fora ou para as negar. De facto essa ideia está certa. Aliás, o Marx foi um pensador fabuloso, mas a sua concretização foi a desgraça que se sabe. O socialismo como projecto é uma utopia e como aplicação é o fascismo e o estalinismo.Não achava isso nos tempos em que militava no MRPP, quando foi preso justamente por defender esses ideais?Achava que era um preço a pagar, não se sabe bem porquê. Esse era um preço que devia ser pago. Era o que pensava. Isso passava pela prisão, pela tortura. A gente pagaria aquele preço porque era necessário para mudar o mundo. Era um erro enorme.Como é que hoje olha esses anos em que acreditava que isso era o correcto?Primeiro é necessário ficar claro: era um erro enorme. Não se pode negar que se praticavam crimes em nome disso e nós com essa política conduzíamos a esses crimes. Primeira questão. Em segundo lugar, acho que estava a agir de boa fé, que estava a ser generoso e mal orientado. Não pensava em mim. Não era o meu bem-estar nem o meu interesse que contavam.Já tinha família nessa altura?Ainda não, felizmente. Tinha pais compreensivos que me apoiavam.Foram os seus pais que lhe incutiram o gosto pela política?Não. Os meus pais eram pessoas normais, liberais, não gostavam do Salazar, mas isso era o corrente naquela altura.Mas estava a falar do bom capitalismo, do capitalismo dos países escandinavos. Acha que é possível transpô-lo para cá?Nós cá temos um mau capitalismo. Hoje temos a crise que não tem nada a ver com isso, e que atingiu todos, ninguém escapou. Mas o nosso mau capitalismo tem um crescimento do produto muito baixo, meio por cento, e esse mau capitalismo... Hoje vimos aqui (numa conferência no CCB) Francisco Louçã enunciar alguns aspectos do pior do nosso capitalismo; mas para o Francisco Louça não há mau capitalismo. O capitalismo para ele é mau. Ponto. Acabou. A conclusão dele é que o capitalismo é mau em si. O PS e o CDS e o PSD, como são a expressão política desse mau capitalismo, não o podem denunciar. Isto é trágico. Os partidos com um programa que podia ser realista estão comprometidos com as piores formas de capitalismo. Aliás, para citar um homem do PSD, o Pacheco Pereira, são escolas do crime. Criam o crime. Não vale a pena tentar dizer mais. Quer dizer, nós não podemos ir a lado nenhum enquanto uma auto-estrada custar não 500, mas mil. Não podemos. Não há meios suficientes para fazer isso. Agora quem denuncia esse tipo de práticas são apenas aqueles que são contra o capitalismo.Ou seja, acha que não temos nenhuma força partidária que possa pôr em prática esse bom capitalismo de que fala?E que se revolte contra o mau capitalismo. Não temos. O PC denuncia o mau capitalismo de forma atabalhoada, o Francisco Louçã denuncia-o brilhantemente, mas ambos acham que o capitalismo nunca pode ser bom. Portanto, há que ser abatido porque não há bom capitalismo. Isso é uma tragédia. Partidos políticos que governem e podem governar não têm qualquer tentativa séria para acabar com a corrupção, para acabar com as disfunções que tornam o capitalismo em Portugal algo que não pode funcionar.Estamos a duas semanas das eleições e vêm aí muitas promessas...Mas isso é normal. É a venda. A democracia tem uma oferta, uma procura e tem a venda e quando eu vendo uma casa digo que a casa é boa. O grande problema é que das eleições vão sair partidos com as mesmas práticas de passividade perante a corrupção, de passividade perante os desvios básicos ao funcionamento da economia e vamos continuar com o chamado mau capitalismo e o mau capitalismo não permite o crescimento económico.É um pessimista nesta altura?Há fases. Não sou tão pessimista como isso. Há bocado, ao almoço, a falar com gente ligada às empresas, percebi que há empresas a funcionar magnificamente. Há empresas que inovam, que exportam, que concorrem.Estou a falar com alguém que é um defensor da iniciativa privada.Obviamente, com regras. Numa economia de mercado cumprem-se regras.Por exemplo, que regras faltam?Por exemplo, meter na cadeia os corruptos. Não é aceitável que alguém que saia do governo e que domina o Partido Socialista depois vá para uma empresa privada cujo principal objecto é fazer negócios com o Governo e com o Estado, mesmo que seja tudo feito com a maior clareza, há aqui uma suspeita e como é que se pode ultrapassar essa suspeita. O Dr. Jorge Coelho dominava o Parido Socialista. É capaz de ter excelentes qualidades como gestor. Aceito isso. Ele podia ter ido para uma empresa que se dedicasse à exportação, ou às obras públicas na Polónia, ou na República Checa, ou em Angola. Não tínhamos nada com isso. Mas ele está numa empresa que tem negócios importantíssimos com o Estado português. Ora quem é que está no poder? São os seus camaradas do PS. Dirimir esta suspeita é um trabalho de Hércules. Como é que é possível? E vamos supor que tudo corre de acordo com as regras, mas como é que nos libertamos da suspeita e como é que convencemos as pessoas comuns que tudo funcionou de acordo com as regras? Não quero discutir se são ou não cumpridas. Sei que é impossível convencer disso a pessoa comum.Enquanto eleitor...Estou indeciso como todos os outrosAinda não sabe em quem vai votar?Ah, se calhar depois de muito resmungar voto no PS. Se calhar... Mas...Porquê? Acha que é o mal menor?Sim, o Bloco tem uma posição muito radical; o PCP é mais anacrónico que a Sé de Braga.Não teme que lhe chamem um vendido ao sistema?Profissionalmente trabalho para grandes empresas, e não tenho vergonha nenhuma disso porque sempre joguei com a minha hipótese de competir no mercado e tenho tido algum sucesso. Não estou nada preocupado com isso.E a sua ambição é ganhar dinheiro para ter conforto, ou seja, começou a pensar em si a partir de certa altura.Foi quando voltei para a faculdade. Comecei a estudar e a ser bom aluno para ficar na faculdade. Aí comecei a pensar em mim. Tenho esse direito, depois de pensar nos outros. Até veio numa fase boa, nos meus trinta anos, a família, o casamento, depois uma filha, obriga-nos a ser egoístas, a ter algum egoísmo. É um egoísmo puro. Mas procuro contribuir para obras filantrópicas, acho que tenho esse dever; não faço trabalho de voluntariado por preguiça.Que causas o sensibilizam?Por exemplo, ajudo uma obra que trabalha nas cadeias. Porque aquela gente que está na cadeia é a que está mesmo na parte de baixo da sociedade, embora disfarce isso, aquela miséria humana. E há rapazes que trabalham com eles e procuram reabilitá-los. Acho que isso é uma coisa positiva.Diz que não faz voluntariado por preguiça?Sim, mas acho admirável que haja pessoas aí na rua a distribuir pratos de sopa aos sem-abrigo. Acho isso admirável. Trabalho voluntário gratuito. As pessoas fazem isso por amor ao próximo e isso acontece e ainda bem que o homem também tem coisas muito boas.O que gosta de fazer nesse tempo de preguiça?Ler, ler, ler. Confesso que vejo pouca televisão e há excelentes programas que eu perco. Mas acima de tudo, ler. Deitar-me ao comprido no sofá e ler um bom livro de História é uma coisa que eu adoro.Não via o jornal de sexta da TVI?Às vezes via, mas aquilo era um bocadinho deprimente. Não é agradável ver um sujeito que fala inglês chamar corrupto ao nosso primeiro-ministro. Estou a falar daquela cassete que vi na TVI em que um senhor dizia: "Ele é corrupto, ele é corrupto". Acho isso bastante mais grave do que a selecção nacional perder, que não me afecta absolutamente nada. O resto sim. De repente somos atingidos enquanto país. Evidentemente que aqui há duas questões. Se é verdade, é gravíssimo. Se não é verdade e o nosso primeiro-ministro está tão desprotegido que isso pode ser dito na TVI, também é gravíssimo. De maneira que qualquer das situações me deixa deprimido. Se é verdade é mau. Se não é verdade é mau.O facto é que de tantas acusações que passaram por aquele telejornal não resultou nenhuma queixa. Não há um processo.Não e o mais lógico perante aquelas acusações é uma suspensão do programa. É verdade? Não sei. Há má consciência? Não é verdade? 'A' está inocente e 'B' que é próximo de 'A' é culpado e, portanto, 'A' não pode reagir quando devia reagir? Não sei qual é a verdade, mas em qualquer hipótese que ponha A ser culpado, A ser inocente, A não sei o quê; em qualquer dessas hipóteses que ponha, como aquilo é dito e aparece alguém a insultar o seu primeiro-ministro, é uma coisa gravíssima. Eu fiquei completamente dividido.E como é que comenta a reacção do primeiro-ministro?A reacção foi má. O fim do programa é pior ainda, mas devia haver uma qualquer resposta judicial a isso.(Pausa para um telefonema onde lhe pedem para escrever um artigo para um jornal)Noutro dia, pediam-me para responder a umas perguntas por email. Eu disse que sim. E do outro lado a jornalista disse-me para não escrever mais de sete mil caracteres. E eu disse: "Mas eu nunca iria escrever isso, só se estivesse bêbado". Agora ia passar um dia a escrever?! (Risos) Escrever não é assim uma coisa que me divirta, como ler, por exemplo.A escrita não lhe dá prazer?Dá, mas é um prazer duro. Correr é um prazer. Mas é um prazer duro. Ir ao ginásio é um prazer duro. Estou a forçar-me. Beber uma cerveja é um prazer mole. Uma pessoa está aqui a beber uma cerveja e a conversar e está descontraída. O trabalho tem um certo conteúdo de prazer, mas o prazer só vem através da disciplina.É disciplinado?Sou persistente, mais do que disciplinado. Em muitas horas lá vai acontecendo alguma coisa. Mas perco muito tempo também. E produzo sobretudo de manhã e à tarde. À noite raramente trabalho.Mas retomando o episódio TVI...Eu via, mas... lá em casa vemos os telejornais ao jantar, tanto eu como a minha mulher [Maria José Morgado] e trocamos impressões sobre as coisas.Vocês são um casal com muitas questões que se tocam profissionalmente.Não tocam não, nem se devem tocar. Nunca dou pareceres que metam questões-crime. Primeiro porque não sei, depois porque não devo. Há uma completa separação. Não era aceitável que eu viesse em quaisquer processos que acabassem por exemplo no DIAP.Estou a falar de um caso muito concreto, quando a sua mulher mandou inspeccionar as finanças da câmara e o senhor era mandatário de António Costa nessa área.Eu achei muito bem e o António Costa também não achou mau de todo. Primeiro eu nunca tive nada que ver com a Câmara. Fiz as contas que foram entregues, fiscalizadas e aprovadas sem nenhum reparo. Foi tudo de acordo com as regras. Ela mandou investigar a corrupção da Câmara e eu aí não tenho nada a ver com a câmara. Havia uma coisa ligeiramente incómoda: as pessoas pensarem que ela ia investigar apenas o PSD e fechar os olhos a coisas do PS.Onde o senhor estava.Onde eu estava. Ora a corrupção na Câmara é uma corrupção gémea. PS e PSD competem alegremente a ver quem é mais corrupto. Como naquele caso das casas, que foi dos poucos resultados daquela investigação, porque, como diz a Dra Paula Teixeira da Cruz, a corrupção da Câmara é corrupção pura. É tanta corrupção que se perde o fio ao tentar encontrar a ponta. Ela viu isso muito bem e tem toda a razão nisso. E como isso acontece na prática. Não conseguiram apurar quase nada. O que apanharam foi aquilo das casas e nisso estavam envolvidos o PS e o PSD, como era lógico. São parceiros de corrupção. Só se for no BPN, que era só PSD.Há um centrão na corrupção?É normal. As pessoas aliam-se para poderem estar sempre seguras em relação a qualquer Governo.Denunciou não há muito tempo a corrupção que existe nas autarquias mais pequenas, dizendo mesmo haver uma promiscuidade entre as autarquias e o Ministério Público.É uma coisa horrível, horrível. Em Lisboa isso não acontece porque é uma cidade grande e não há relação entre uma coisa e outra, agora a pequena corrupção das câmaras... mas isso eu estou a dizer o que toda agente diz. Os autarcas costumam protestar quando eu digo isto. Mas denunciar a corrupção é uma questão política.Quando diz que existe essa corrupção baseia-se em quê?Falo com as pessoas. Mas uma coisa é saber que há corrupção, outra coisa é provar que há corrupção. A prova é muito difícil, basta olhar para o Código de Processo Penal. Por exemplo, se eu levar umas escutas, se for disfarçado com óculos escuros e um bigode e dizer ao fiscal eu quero fazer uma casa em local x; depois o fiscal diz que não pode e eu tiro o dinheiro do bolso e ele aceita o dinheiro e eu gravo isso tudo: não é prova. Como é que eu provo? Imagine: você está a fazer obras e o fiscal diz: "Ah Ah! Obras!, Muito bem. Ou me dá x ou isto é tudo embargado; e você grava essa conversa com o fiscal: não serve de prova. Vai denunciar o fiscal, arranja um rico sarilho, acaba arguida do Ministério Público. Experimente! Eles não podem provar em relação ao fiscal da obra e põe-na a si como arguida. Ela não provou.Veio buscar outro tema que está na ordem do dia, que são as escutas.Isso é folclore. Folclore de Verão e do mais baixo. É como o monstro de Lochness. As escutas só são importantes para os mafiosos que têm os seus assuntos a tratar e acabam sempre a falar ao telefone de coisas que são crimes. Metade ou dois terços das conversas deles são crimes. Portanto, são apanhados nas escutas. O resto das escutas não têm importância nenhuma. Só para os muito corruptos. Para que é que o Presidente da República precisa de escutas? Isso é ridículo, idiota. Nem vale a pena falar disso.E já que estamos a falar do Presidente da República, como é que classifica a atitude dele em todo este processo?O Presidente da República, Cavaco Silva, tem um pequeno problema. As suas excelentes relações com o Dr. Oliveira e Costa que está na cadeia. São problemas muito sérios. Significa que está muito condicionado, porque quando se é amigo do Dr. Oliveira e Costa e se tem relações próximas com ele, temos aqui problemas. Não sei quais, não sei o que é que isso pode dar, mas penso que ele tentou uma posição clara sobre a corrupção, mas hoje tem mais dificuldades. Aliás, penso que ele é uma pessoa que, do ponto de vista daquilo que pensa, da sua posição no mundo, não gosta da corrupção nem dos corruptos, mas... É preciso que as obras correspondam aos sentimentos e às vezes não correspondem. É desagradável ter aquela relação com o Dr. Oliveira e Costa e é desagradável ser cliente do BPN e comprar acções do BPN porque ele é uma pessoa bem informada e sabia que o BPN tinha há muitos anos práticas muito, muito, discutíveis. E portanto, a única coisa que se esperava de alguém que tem ambições políticas e que procura ser honesto...Se fosse o senhor que tivesse este seu amigo?Tinha o cuidado de o ver o menos possível. E não ter negócios com ele. Tinha de manter as distâncias. Ter negócios com eles é um caminho muito perigoso.O senhor e a sua mulher costumam falar destas coisas lá em casa?Às vezes. Quando os processos acabam. Quando ela fez a acusação ao Jardim Gonçalves e ela se tornou pública, queria que eu a lesse e eu disse-lhe: "Tenho mais que fazer. Tenho processos muito mais complicados no meu ramo". Ela insistiu: "Vê o que tu achas." "Tá bem." Passei os olhos. Acho que está boa, está boa...Há uns tempos disse que o presidente do Banco de Portugal se devia demitir. Continua a ter a mesma opinião?Claro. Ele devia ter escapado àquele terrível vexame de ser inquirido na Assembleia da República em que só o apoio da maioria o livrou de ficar ainda mais exposto. Não costumo ser grande simpatizante do CDS, mas o trabalho que o Nuno Melo fez e os documentos que revelou foram esmagadores. É evidente que isto tem uma explicação. Uma explicação clara. O Vítor Constâncio é uma pessoa competente e honesta. Digo isto por intuição. Em relação à sua competência, só alguém mais fanático a pode negar, mas o BPN construiu um poderosíssimo 'lobby' político, com base no PSD. E o Dr. Dias Loureiro era um potentado politicamente. Aliás, a sua relação com o presidente Cavaco Silva foi até aos últimos dias. Sobreviveu no Conselho de Estado para lá de toda a lógica possível. E portanto penso e é a minha análise que o Dr Vítor Constâncio não teve coragem para enfrentar esse 'lobby'. Agora está agarrado ao poder. Na altura não era isso. Mas acho que é um lugar que ele faz muito bem. Acho que os seus estudos económicos são exemplares. Acontece que ele tem outro trabalho mais importante, e esse exige coragem. O regulador tem de ser alguém que está disposto a enfrentar os poderosos. Fazer-lhes frente, não recuar e ele não foi capaz. Está bem que os poderosos eram muito poderosos. Também se fossem fracos não tinha grande mérito.Como é que vê o facto de não ter sido decretada prisão preventiva a nenhum deles a não ser a Oliveira e Costa?É essa a função principal do nosso Processo Penal: proteger essa gente.Agora está a ser sarcástico.Não, não. Estou a ser rigoroso. Está construído de forma que o objectivo do Código é a protecção dessa gente.É um código viciado?Completamente viciado. É um código que nos envergonha pelos resultados. Essa impunidade que o código garante é uma coisa que nos envergonha. O caso Madoff em Portugal seria impossível, mesmo que alguém resolvesse confessar tudo, e nunca o faria. Na América as pessoas confessam porque as consequências da não confissão são muito duras e apesar de tudo o menos mau é confessar. Em Portugal não são duras, mas mesmo que se confessasse o processo não duraria dois ou três meses. Duraria sempre muito mais, mesmo com o máximo de zelo do Ministério Público. Temos um Código do Processo Penal que é feito para proteger esse tipo de delinquência. Até protege em parte a outra delinquência, mas essa então, do colarinho branco, está totalmente protegida. Não me admiraria ver o Dr. Oliveira e Costa acabar absolvido. Não ficaria particularmente admirado. Sem falar no Dr. Jardim Gonçalves, que o mais provável é vir a ser absolvido.Estava há pouco a falar de futebol.É um dos meus ódios de estimação. Acho degradante a tentativa que fazem os políticos de se pendurarem ao futebol para obterem popularidade.Mas aí não está a falar do futebol/jogo.O futebol é um belo jogo. Posso olhar para um jogo de futebol e gostar, se não me der para outra coisa qualquer.Tem clube?Não. Nenhum, desde criança. Em jovem era do Belenenses. Tinha 14 anos e ia ali ao estádio do Restelo. Depois deixei de ter clube e nunca mais gostei de futebol. O espectáculo pode ser bonito. Mas a tribo do futebol é do pior que existe neste país. Aliás, é no futebol que se verifica a articulação entre a economia paralela e a classe política. O futebol é das coisas mais perversas, zona criminógena e cheia de corrupção que temos neste país. Haverá clubes piores que outros, mas as regras são essas e nenhum escapa.Diz que se dá mal com mapas. Gosta de viajar?Vou a muitos poucos sítios. Fico-me por Veneza ou por Roma, Paris, Londres. Países tropicais, odeio. Não gosto. Quando vou ao Brasil a um congresso fico quase deprimido. Porque desordem e confusão temos cá muita. Gosto da grande escultura, da grande arquitectura, da grande pintura, das grandes livrarias e não vejo isso no Rio de Janeiro. Só vejo miséria e confusão e praias temos pr'aí à ganância. Estou há muitos anos para voltar à Grécia, que tem aquela confusão idêntica à nossa. Gosto de tomar um banho no mar gelado. Gosto disso. Na Ericeira, por exemplo, que é uma praia para masoquistas. (Cheguei à entrevista Via Maradona)


Este verão descobri um livro que me deixou deslumbrado.Qual?Um de um autor chileno, chamado Roberto Bolaño."Detectives Selvagens"?Sim. Comprei em Madrid e li em espanhol durante as férias. Adorei.Imagino que poucos saberão desse seu gosto pela literatura.Sabem os meus amigos. Não ando para aí a dizer, porque quando me pedem para falar não é sobre literatura. Mas já fui a um programa do Francisco José Viegas para falar de livros e de romances.Lê muitos romances?Menos. Leio muito menos romances do que lia antes, mas ainda leio alguns, em férias e para adormecer. Agora esse espaço de leitura sem esforço e sem trabalho está mais na História do que nos romances. Até porque com a idade ficamos menos flexíveis e é-se menos sensível ao novo. Portanto não é fácil gostar-se de um autor que não se conheceu. Bolaño não é o Dostoievski, nem é o Tolstoi, nem é o Balzac. É um autor novo, mas aderi completamente.Falou do seu gosto pela literatura; já me tinha referido a sua paixão pela arte. É um comprador de arte?Não, não. Sou um comprador de arte em museus.Não compra?Devia comprar mas não compro porque os quadros que me povoam a cabeça são os Matisses, são os Mondrians, são os Kandinskys... Esses receio não os poder comprar tão cedo.Mas tem esperança.Tenho. Mais cinco milhões, menos cinco milhões (risos).Isso é uma crítica à facilidade com que se fala de milhões actualmente?Esses milhões são milhões míticos porque são mais dinheiro do que nós ganhamos a vida inteira. Mas o facto é que a riqueza produzida hoje é muito maior. Na verdade, o capitalismo, para usar expressões clássicas, mostrou nos últimos 50 anos uma capacidade para produzir riqueza que é inteiramente nova na História. Veja-se o apogeu na China. A China está com uma produção de riqueza completamente espantosa. A Inglaterra cresceu com uma taxa média de 3,5% ao ano e ao fim de cem anos era o dobro. A China está a crescer sete ou oito por cento e duplica todos os anos e com uma massa humana impensável até hoje. Mas mesmo no Ocidente houve um tremendo crescimento da riqueza e uma má distribuição dessa riqueza que foi o que aconteceu nos últimos vinte anos. Isto seguiu-se a uma produção equilibrada de riqueza durante os 30 anos pós-guerra, os 30 anos do keynesianismo, em que houve a preocupação de aumentar os salários reais, a expansão da classe média que cresceu e de repente tivemos as praias estragadas. Estragadas no bom sentido, porque de repente a classe média já não são dez, são cem. A Ericeira era óptima, mas começa a padecer de falta de espaço.É a democratização.São os males bons. É o mal da abundância, como é evidente, com as estradas cheias de carros. E essa classe média começa a crescer de uma forma espantosa. O bom capitalismo - e acho que essa questão é interessante - que é o que funciona, o capitalismo nórdico, mesmo o inglês no essencial, o francês, conseguiu ter taxas de crescimento de três, quatro por cento por ano e aumentar sempre a distribuição.É esse o sistema que defende para a economia portuguesa?O sistema tem de funcionar. Aliás, até responderia com uma coisa que dizíamos muito no tempo do marxismo, que é: "A prova do pudim é que se come".Continua a pensar da mesma maneira?Estas máximas ou marcas ficam. Não tenho nenhuma razão para as deitar fora ou para as negar. De facto essa ideia está certa. Aliás, o Marx foi um pensador fabuloso, mas a sua concretização foi a desgraça que se sabe. O socialismo como projecto é uma utopia e como aplicação é o fascismo e o estalinismo.Não achava isso nos tempos em que militava no MRPP, quando foi preso justamente por defender esses ideais?Achava que era um preço a pagar, não se sabe bem porquê. Esse era um preço que devia ser pago. Era o que pensava. Isso passava pela prisão, pela tortura. A gente pagaria aquele preço porque era necessário para mudar o mundo. Era um erro enorme.Como é que hoje olha esses anos em que acreditava que isso era o correcto?Primeiro é necessário ficar claro: era um erro enorme. Não se pode negar que se praticavam crimes em nome disso e nós com essa política conduzíamos a esses crimes. Primeira questão. Em segundo lugar, acho que estava a agir de boa fé, que estava a ser generoso e mal orientado. Não pensava em mim. Não era o meu bem-estar nem o meu interesse que contavam.Já tinha família nessa altura?Ainda não, felizmente. Tinha pais compreensivos que me apoiavam.Foram os seus pais que lhe incutiram o gosto pela política?Não. Os meus pais eram pessoas normais, liberais, não gostavam do Salazar, mas isso era o corrente naquela altura.Mas estava a falar do bom capitalismo, do capitalismo dos países escandinavos. Acha que é possível transpô-lo para cá?Nós cá temos um mau capitalismo. Hoje temos a crise que não tem nada a ver com isso, e que atingiu todos, ninguém escapou. Mas o nosso mau capitalismo tem um crescimento do produto muito baixo, meio por cento, e esse mau capitalismo... Hoje vimos aqui (numa conferência no CCB) Francisco Louçã enunciar alguns aspectos do pior do nosso capitalismo; mas para o Francisco Louça não há mau capitalismo. O capitalismo para ele é mau. Ponto. Acabou. A conclusão dele é que o capitalismo é mau em si. O PS e o CDS e o PSD, como são a expressão política desse mau capitalismo, não o podem denunciar. Isto é trágico. Os partidos com um programa que podia ser realista estão comprometidos com as piores formas de capitalismo. Aliás, para citar um homem do PSD, o Pacheco Pereira, são escolas do crime. Criam o crime. Não vale a pena tentar dizer mais. Quer dizer, nós não podemos ir a lado nenhum enquanto uma auto-estrada custar não 500, mas mil. Não podemos. Não há meios suficientes para fazer isso. Agora quem denuncia esse tipo de práticas são apenas aqueles que são contra o capitalismo.Ou seja, acha que não temos nenhuma força partidária que possa pôr em prática esse bom capitalismo de que fala?E que se revolte contra o mau capitalismo. Não temos. O PC denuncia o mau capitalismo de forma atabalhoada, o Francisco Louçã denuncia-o brilhantemente, mas ambos acham que o capitalismo nunca pode ser bom. Portanto, há que ser abatido porque não há bom capitalismo. Isso é uma tragédia. Partidos políticos que governem e podem governar não têm qualquer tentativa séria para acabar com a corrupção, para acabar com as disfunções que tornam o capitalismo em Portugal algo que não pode funcionar.Estamos a duas semanas das eleições e vêm aí muitas promessas...Mas isso é normal. É a venda. A democracia tem uma oferta, uma procura e tem a venda e quando eu vendo uma casa digo que a casa é boa. O grande problema é que das eleições vão sair partidos com as mesmas práticas de passividade perante a corrupção, de passividade perante os desvios básicos ao funcionamento da economia e vamos continuar com o chamado mau capitalismo e o mau capitalismo não permite o crescimento económico.É um pessimista nesta altura?Há fases. Não sou tão pessimista como isso. Há bocado, ao almoço, a falar com gente ligada às empresas, percebi que há empresas a funcionar magnificamente. Há empresas que inovam, que exportam, que concorrem.Estou a falar com alguém que é um defensor da iniciativa privada.Obviamente, com regras. Numa economia de mercado cumprem-se regras.Por exemplo, que regras faltam?Por exemplo, meter na cadeia os corruptos. Não é aceitável que alguém que saia do governo e que domina o Partido Socialista depois vá para uma empresa privada cujo principal objecto é fazer negócios com o Governo e com o Estado, mesmo que seja tudo feito com a maior clareza, há aqui uma suspeita e como é que se pode ultrapassar essa suspeita. O Dr. Jorge Coelho dominava o Parido Socialista. É capaz de ter excelentes qualidades como gestor. Aceito isso. Ele podia ter ido para uma empresa que se dedicasse à exportação, ou às obras públicas na Polónia, ou na República Checa, ou em Angola. Não tínhamos nada com isso. Mas ele está numa empresa que tem negócios importantíssimos com o Estado português. Ora quem é que está no poder? São os seus camaradas do PS. Dirimir esta suspeita é um trabalho de Hércules. Como é que é possível? E vamos supor que tudo corre de acordo com as regras, mas como é que nos libertamos da suspeita e como é que convencemos as pessoas comuns que tudo funcionou de acordo com as regras? Não quero discutir se são ou não cumpridas. Sei que é impossível convencer disso a pessoa comum.Enquanto eleitor...Estou indeciso como todos os outrosAinda não sabe em quem vai votar?Ah, se calhar depois de muito resmungar voto no PS. Se calhar... Mas...Porquê? Acha que é o mal menor?Sim, o Bloco tem uma posição muito radical; o PCP é mais anacrónico que a Sé de Braga.Não teme que lhe chamem um vendido ao sistema?Profissionalmente trabalho para grandes empresas, e não tenho vergonha nenhuma disso porque sempre joguei com a minha hipótese de competir no mercado e tenho tido algum sucesso. Não estou nada preocupado com isso.E a sua ambição é ganhar dinheiro para ter conforto, ou seja, começou a pensar em si a partir de certa altura.Foi quando voltei para a faculdade. Comecei a estudar e a ser bom aluno para ficar na faculdade. Aí comecei a pensar em mim. Tenho esse direito, depois de pensar nos outros. Até veio numa fase boa, nos meus trinta anos, a família, o casamento, depois uma filha, obriga-nos a ser egoístas, a ter algum egoísmo. É um egoísmo puro. Mas procuro contribuir para obras filantrópicas, acho que tenho esse dever; não faço trabalho de voluntariado por preguiça.Que causas o sensibilizam?Por exemplo, ajudo uma obra que trabalha nas cadeias. Porque aquela gente que está na cadeia é a que está mesmo na parte de baixo da sociedade, embora disfarce isso, aquela miséria humana. E há rapazes que trabalham com eles e procuram reabilitá-los. Acho que isso é uma coisa positiva.Diz que não faz voluntariado por preguiça?Sim, mas acho admirável que haja pessoas aí na rua a distribuir pratos de sopa aos sem-abrigo. Acho isso admirável. Trabalho voluntário gratuito. As pessoas fazem isso por amor ao próximo e isso acontece e ainda bem que o homem também tem coisas muito boas.O que gosta de fazer nesse tempo de preguiça?Ler, ler, ler. Confesso que vejo pouca televisão e há excelentes programas que eu perco. Mas acima de tudo, ler. Deitar-me ao comprido no sofá e ler um bom livro de História é uma coisa que eu adoro.Não via o jornal de sexta da TVI?Às vezes via, mas aquilo era um bocadinho deprimente. Não é agradável ver um sujeito que fala inglês chamar corrupto ao nosso primeiro-ministro. Estou a falar daquela cassete que vi na TVI em que um senhor dizia: "Ele é corrupto, ele é corrupto". Acho isso bastante mais grave do que a selecção nacional perder, que não me afecta absolutamente nada. O resto sim. De repente somos atingidos enquanto país. Evidentemente que aqui há duas questões. Se é verdade, é gravíssimo. Se não é verdade e o nosso primeiro-ministro está tão desprotegido que isso pode ser dito na TVI, também é gravíssimo. De maneira que qualquer das situações me deixa deprimido. Se é verdade é mau. Se não é verdade é mau.O facto é que de tantas acusações que passaram por aquele telejornal não resultou nenhuma queixa. Não há um processo.Não e o mais lógico perante aquelas acusações é uma suspensão do programa. É verdade? Não sei. Há má consciência? Não é verdade? 'A' está inocente e 'B' que é próximo de 'A' é culpado e, portanto, 'A' não pode reagir quando devia reagir? Não sei qual é a verdade, mas em qualquer hipótese que ponha A ser culpado, A ser inocente, A não sei o quê; em qualquer dessas hipóteses que ponha, como aquilo é dito e aparece alguém a insultar o seu primeiro-ministro, é uma coisa gravíssima. Eu fiquei completamente dividido.E como é que comenta a reacção do primeiro-ministro?A reacção foi má. O fim do programa é pior ainda, mas devia haver uma qualquer resposta judicial a isso.(Pausa para um telefonema onde lhe pedem para escrever um artigo para um jornal)Noutro dia, pediam-me para responder a umas perguntas por email. Eu disse que sim. E do outro lado a jornalista disse-me para não escrever mais de sete mil caracteres. E eu disse: "Mas eu nunca iria escrever isso, só se estivesse bêbado". Agora ia passar um dia a escrever?! (Risos) Escrever não é assim uma coisa que me divirta, como ler, por exemplo.A escrita não lhe dá prazer?Dá, mas é um prazer duro. Correr é um prazer. Mas é um prazer duro. Ir ao ginásio é um prazer duro. Estou a forçar-me. Beber uma cerveja é um prazer mole. Uma pessoa está aqui a beber uma cerveja e a conversar e está descontraída. O trabalho tem um certo conteúdo de prazer, mas o prazer só vem através da disciplina.É disciplinado?Sou persistente, mais do que disciplinado. Em muitas horas lá vai acontecendo alguma coisa. Mas perco muito tempo também. E produzo sobretudo de manhã e à tarde. À noite raramente trabalho.Mas retomando o episódio TVI...Eu via, mas... lá em casa vemos os telejornais ao jantar, tanto eu como a minha mulher [Maria José Morgado] e trocamos impressões sobre as coisas.Vocês são um casal com muitas questões que se tocam profissionalmente.Não tocam não, nem se devem tocar. Nunca dou pareceres que metam questões-crime. Primeiro porque não sei, depois porque não devo. Há uma completa separação. Não era aceitável que eu viesse em quaisquer processos que acabassem por exemplo no DIAP.Estou a falar de um caso muito concreto, quando a sua mulher mandou inspeccionar as finanças da câmara e o senhor era mandatário de António Costa nessa área.Eu achei muito bem e o António Costa também não achou mau de todo. Primeiro eu nunca tive nada que ver com a Câmara. Fiz as contas que foram entregues, fiscalizadas e aprovadas sem nenhum reparo. Foi tudo de acordo com as regras. Ela mandou investigar a corrupção da Câmara e eu aí não tenho nada a ver com a câmara. Havia uma coisa ligeiramente incómoda: as pessoas pensarem que ela ia investigar apenas o PSD e fechar os olhos a coisas do PS.Onde o senhor estava.Onde eu estava. Ora a corrupção na Câmara é uma corrupção gémea. PS e PSD competem alegremente a ver quem é mais corrupto. Como naquele caso das casas, que foi dos poucos resultados daquela investigação, porque, como diz a Dra Paula Teixeira da Cruz, a corrupção da Câmara é corrupção pura. É tanta corrupção que se perde o fio ao tentar encontrar a ponta. Ela viu isso muito bem e tem toda a razão nisso. E como isso acontece na prática. Não conseguiram apurar quase nada. O que apanharam foi aquilo das casas e nisso estavam envolvidos o PS e o PSD, como era lógico. São parceiros de corrupção. Só se for no BPN, que era só PSD.Há um centrão na corrupção?É normal. As pessoas aliam-se para poderem estar sempre seguras em relação a qualquer Governo.Denunciou não há muito tempo a corrupção que existe nas autarquias mais pequenas, dizendo mesmo haver uma promiscuidade entre as autarquias e o Ministério Público.É uma coisa horrível, horrível. Em Lisboa isso não acontece porque é uma cidade grande e não há relação entre uma coisa e outra, agora a pequena corrupção das câmaras... mas isso eu estou a dizer o que toda agente diz. Os autarcas costumam protestar quando eu digo isto. Mas denunciar a corrupção é uma questão política.Quando diz que existe essa corrupção baseia-se em quê?Falo com as pessoas. Mas uma coisa é saber que há corrupção, outra coisa é provar que há corrupção. A prova é muito difícil, basta olhar para o Código de Processo Penal. Por exemplo, se eu levar umas escutas, se for disfarçado com óculos escuros e um bigode e dizer ao fiscal eu quero fazer uma casa em local x; depois o fiscal diz que não pode e eu tiro o dinheiro do bolso e ele aceita o dinheiro e eu gravo isso tudo: não é prova. Como é que eu provo? Imagine: você está a fazer obras e o fiscal diz: "Ah Ah! Obras!, Muito bem. Ou me dá x ou isto é tudo embargado; e você grava essa conversa com o fiscal: não serve de prova. Vai denunciar o fiscal, arranja um rico sarilho, acaba arguida do Ministério Público. Experimente! Eles não podem provar em relação ao fiscal da obra e põe-na a si como arguida. Ela não provou.Veio buscar outro tema que está na ordem do dia, que são as escutas.Isso é folclore. Folclore de Verão e do mais baixo. É como o monstro de Lochness. As escutas só são importantes para os mafiosos que têm os seus assuntos a tratar e acabam sempre a falar ao telefone de coisas que são crimes. Metade ou dois terços das conversas deles são crimes. Portanto, são apanhados nas escutas. O resto das escutas não têm importância nenhuma. Só para os muito corruptos. Para que é que o Presidente da República precisa de escutas? Isso é ridículo, idiota. Nem vale a pena falar disso.E já que estamos a falar do Presidente da República, como é que classifica a atitude dele em todo este processo?O Presidente da República, Cavaco Silva, tem um pequeno problema. As suas excelentes relações com o Dr. Oliveira e Costa que está na cadeia. São problemas muito sérios. Significa que está muito condicionado, porque quando se é amigo do Dr. Oliveira e Costa e se tem relações próximas com ele, temos aqui problemas. Não sei quais, não sei o que é que isso pode dar, mas penso que ele tentou uma posição clara sobre a corrupção, mas hoje tem mais dificuldades. Aliás, penso que ele é uma pessoa que, do ponto de vista daquilo que pensa, da sua posição no mundo, não gosta da corrupção nem dos corruptos, mas... É preciso que as obras correspondam aos sentimentos e às vezes não correspondem. É desagradável ter aquela relação com o Dr. Oliveira e Costa e é desagradável ser cliente do BPN e comprar acções do BPN porque ele é uma pessoa bem informada e sabia que o BPN tinha há muitos anos práticas muito, muito, discutíveis. E portanto, a única coisa que se esperava de alguém que tem ambições políticas e que procura ser honesto...Se fosse o senhor que tivesse este seu amigo?Tinha o cuidado de o ver o menos possível. E não ter negócios com ele. Tinha de manter as distâncias. Ter negócios com eles é um caminho muito perigoso.O senhor e a sua mulher costumam falar destas coisas lá em casa?Às vezes. Quando os processos acabam. Quando ela fez a acusação ao Jardim Gonçalves e ela se tornou pública, queria que eu a lesse e eu disse-lhe: "Tenho mais que fazer. Tenho processos muito mais complicados no meu ramo". Ela insistiu: "Vê o que tu achas." "Tá bem." Passei os olhos. Acho que está boa, está boa...Há uns tempos disse que o presidente do Banco de Portugal se devia demitir. Continua a ter a mesma opinião?Claro. Ele devia ter escapado àquele terrível vexame de ser inquirido na Assembleia da República em que só o apoio da maioria o livrou de ficar ainda mais exposto. Não costumo ser grande simpatizante do CDS, mas o trabalho que o Nuno Melo fez e os documentos que revelou foram esmagadores. É evidente que isto tem uma explicação. Uma explicação clara. O Vítor Constâncio é uma pessoa competente e honesta. Digo isto por intuição. Em relação à sua competência, só alguém mais fanático a pode negar, mas o BPN construiu um poderosíssimo 'lobby' político, com base no PSD. E o Dr. Dias Loureiro era um potentado politicamente. Aliás, a sua relação com o presidente Cavaco Silva foi até aos últimos dias. Sobreviveu no Conselho de Estado para lá de toda a lógica possível. E portanto penso e é a minha análise que o Dr Vítor Constâncio não teve coragem para enfrentar esse 'lobby'. Agora está agarrado ao poder. Na altura não era isso. Mas acho que é um lugar que ele faz muito bem. Acho que os seus estudos económicos são exemplares. Acontece que ele tem outro trabalho mais importante, e esse exige coragem. O regulador tem de ser alguém que está disposto a enfrentar os poderosos. Fazer-lhes frente, não recuar e ele não foi capaz. Está bem que os poderosos eram muito poderosos. Também se fossem fracos não tinha grande mérito.Como é que vê o facto de não ter sido decretada prisão preventiva a nenhum deles a não ser a Oliveira e Costa?É essa a função principal do nosso Processo Penal: proteger essa gente.Agora está a ser sarcástico.Não, não. Estou a ser rigoroso. Está construído de forma que o objectivo do Código é a protecção dessa gente.É um código viciado?Completamente viciado. É um código que nos envergonha pelos resultados. Essa impunidade que o código garante é uma coisa que nos envergonha. O caso Madoff em Portugal seria impossível, mesmo que alguém resolvesse confessar tudo, e nunca o faria. Na América as pessoas confessam porque as consequências da não confissão são muito duras e apesar de tudo o menos mau é confessar. Em Portugal não são duras, mas mesmo que se confessasse o processo não duraria dois ou três meses. Duraria sempre muito mais, mesmo com o máximo de zelo do Ministério Público. Temos um Código do Processo Penal que é feito para proteger esse tipo de delinquência. Até protege em parte a outra delinquência, mas essa então, do colarinho branco, está totalmente protegida. Não me admiraria ver o Dr. Oliveira e Costa acabar absolvido. Não ficaria particularmente admirado. Sem falar no Dr. Jardim Gonçalves, que o mais provável é vir a ser absolvido.Estava há pouco a falar de futebol.É um dos meus ódios de estimação. Acho degradante a tentativa que fazem os políticos de se pendurarem ao futebol para obterem popularidade.Mas aí não está a falar do futebol/jogo.O futebol é um belo jogo. Posso olhar para um jogo de futebol e gostar, se não me der para outra coisa qualquer.Tem clube?Não. Nenhum, desde criança. Em jovem era do Belenenses. Tinha 14 anos e ia ali ao estádio do Restelo. Depois deixei de ter clube e nunca mais gostei de futebol. O espectáculo pode ser bonito. Mas a tribo do futebol é do pior que existe neste país. Aliás, é no futebol que se verifica a articulação entre a economia paralela e a classe política. O futebol é das coisas mais perversas, zona criminógena e cheia de corrupção que temos neste país. Haverá clubes piores que outros, mas as regras são essas e nenhum escapa.Diz que se dá mal com mapas. Gosta de viajar?Vou a muitos poucos sítios. Fico-me por Veneza ou por Roma, Paris, Londres. Países tropicais, odeio. Não gosto. Quando vou ao Brasil a um congresso fico quase deprimido. Porque desordem e confusão temos cá muita. Gosto da grande escultura, da grande arquitectura, da grande pintura, das grandes livrarias e não vejo isso no Rio de Janeiro. Só vejo miséria e confusão e praias temos pr'aí à ganância. Estou há muitos anos para voltar à Grécia, que tem aquela confusão idêntica à nossa. Gosto de tomar um banho no mar gelado. Gosto disso. Na Ericeira, por exemplo, que é uma praia para masoquistas. (Cheguei à entrevista Via Maradona)

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