A Cinco Tons: Diógenes reinventado

05-08-2010
marcar artigo


Quando, a pedido de um amigo, me vi “obrigado” (o tipo dizia que só ia se eu o acompanhasse…enfim, uma coisa muito adulta…) a participar numa daquelas maratonas de leitura organizadas pela Biblioteca Pública de Évora, fiquei um bocado indeciso. O que deveria ler naquela vetusta e importante (digo-o sem qualquer ironia) “Casa” dos livros? Matutei (sempre quis escrever esta palavra…) e lá escolhi um texto da Crítica da Razão Cínica (que faz uma análise do cinismo desde os tempos remotos do escandaloso e libertário Diógenes até hoje). Foi escrita por Peter Sloterdijk (Karlsruhe, 1947), filósofo com vários livros editados em Portugal. Incompreensivelmente não é o caso desta Crítica. Traduzi, a partir da edição espanhola, um pequeno capítulo, e pedi a uma amiga que sabe alemão que o confrontasse com o original. Ficou catita. “O Peido Não podemos contornar o tema. Mais, é inevitável. Sinto muito por todos os leitores sensíveis, mas o peido não se pode, em absoluto, omitir. Quem não quer falar dele também tem que se calar sobre o cu. O tema exige-o, uma vez que já se tratou de coisas orais, a nossa exposição também tem que passar, queira-se ou não, pela sua fase anal antes de se chegar à genital. Falar sobre o peido não é difícil na medida em que supõe um som que em situações sociais significa sempre algo. Quem seja testemunha de um peido produz inevitavelmente uma interpretação desse som. Resumindo, a semântica do peido é também um problema bastante complicado, demasiado descuidado pela linguística e pela teoria da comunicação. A escala de significados vai desde a vergonha até ao desprezo, desde intenções humorísticas até à falta de respeito. Mestres, professores, oradores e participantes em conferências conhecem o tormento de não poder fazer soar fortemente uma flatulência imperiosa, já que um som semelhante expressa algo que não se quer dizer na realidade. Será que poderia fomentar a empatia pelos políticos, se ao escutarmos os seus discursos, pensássemos mais amiúde que estes possivelmente estão ocupados em reprimir uma ventosidade que poderia interromper por um instante o seu discurso? Com efeito, a arte das vagas formulações está em relação com a arte de um vento decente: ambas as coisas são diplomacia.Semioticamente contamos o peido no grupo dos sinais, quer dizer, dos signos que nem simbolizam nem reproduzem nada, apenas dão indicações de um estado. Quando a locomotiva apita, adverte da sua aproximação e dos seus possíveis perigos. O peido, entendido como sinal, mostra que o abdómen está em plena acção, e isso pode ter consequências fatais em situações em que toda a alusão a âmbitos semelhantes é absolutamente indesejada. Ernst Jünger deixou anotado no seu “Diário Parisiense”, a propósito da leitura da Guerra Judia do historiador Flavius Josephus, o que se segue:'De novo tropecei na passagem em que se descreve o começo dos distúrbios que tiveram lugar em Jerusalém sob o mandato de Cumanus(II,12). Enquanto os judeus se reuniam para a festa dos pães ázimos, os romanos dispuseram uma coorte sobre a sala de colunas do templo para observar a multidão. Um dos soldados desta coorte levantou a túnica, voltou o traseiro para os judeus com uma inclinação burlesca e deixou escapar o indecente som que correspondia à sua posição. Esta foi a ocasião que deu lugar a um choque que custaria a vida a dez mil pessoas, de tal maneira que se pode falar do peido mais funesto da história mundial.'(Strahlungen II,p.188-189)O cinismo do soldado romano que se peidou no templo de uma maneira tão blasfema e politicamente provocadora encontra um equivalente do mesmo tipo no comentário que faz Jünger, comentário que passa para o campo do cinismo teórico”.


Quando, a pedido de um amigo, me vi “obrigado” (o tipo dizia que só ia se eu o acompanhasse…enfim, uma coisa muito adulta…) a participar numa daquelas maratonas de leitura organizadas pela Biblioteca Pública de Évora, fiquei um bocado indeciso. O que deveria ler naquela vetusta e importante (digo-o sem qualquer ironia) “Casa” dos livros? Matutei (sempre quis escrever esta palavra…) e lá escolhi um texto da Crítica da Razão Cínica (que faz uma análise do cinismo desde os tempos remotos do escandaloso e libertário Diógenes até hoje). Foi escrita por Peter Sloterdijk (Karlsruhe, 1947), filósofo com vários livros editados em Portugal. Incompreensivelmente não é o caso desta Crítica. Traduzi, a partir da edição espanhola, um pequeno capítulo, e pedi a uma amiga que sabe alemão que o confrontasse com o original. Ficou catita. “O Peido Não podemos contornar o tema. Mais, é inevitável. Sinto muito por todos os leitores sensíveis, mas o peido não se pode, em absoluto, omitir. Quem não quer falar dele também tem que se calar sobre o cu. O tema exige-o, uma vez que já se tratou de coisas orais, a nossa exposição também tem que passar, queira-se ou não, pela sua fase anal antes de se chegar à genital. Falar sobre o peido não é difícil na medida em que supõe um som que em situações sociais significa sempre algo. Quem seja testemunha de um peido produz inevitavelmente uma interpretação desse som. Resumindo, a semântica do peido é também um problema bastante complicado, demasiado descuidado pela linguística e pela teoria da comunicação. A escala de significados vai desde a vergonha até ao desprezo, desde intenções humorísticas até à falta de respeito. Mestres, professores, oradores e participantes em conferências conhecem o tormento de não poder fazer soar fortemente uma flatulência imperiosa, já que um som semelhante expressa algo que não se quer dizer na realidade. Será que poderia fomentar a empatia pelos políticos, se ao escutarmos os seus discursos, pensássemos mais amiúde que estes possivelmente estão ocupados em reprimir uma ventosidade que poderia interromper por um instante o seu discurso? Com efeito, a arte das vagas formulações está em relação com a arte de um vento decente: ambas as coisas são diplomacia.Semioticamente contamos o peido no grupo dos sinais, quer dizer, dos signos que nem simbolizam nem reproduzem nada, apenas dão indicações de um estado. Quando a locomotiva apita, adverte da sua aproximação e dos seus possíveis perigos. O peido, entendido como sinal, mostra que o abdómen está em plena acção, e isso pode ter consequências fatais em situações em que toda a alusão a âmbitos semelhantes é absolutamente indesejada. Ernst Jünger deixou anotado no seu “Diário Parisiense”, a propósito da leitura da Guerra Judia do historiador Flavius Josephus, o que se segue:'De novo tropecei na passagem em que se descreve o começo dos distúrbios que tiveram lugar em Jerusalém sob o mandato de Cumanus(II,12). Enquanto os judeus se reuniam para a festa dos pães ázimos, os romanos dispuseram uma coorte sobre a sala de colunas do templo para observar a multidão. Um dos soldados desta coorte levantou a túnica, voltou o traseiro para os judeus com uma inclinação burlesca e deixou escapar o indecente som que correspondia à sua posição. Esta foi a ocasião que deu lugar a um choque que custaria a vida a dez mil pessoas, de tal maneira que se pode falar do peido mais funesto da história mundial.'(Strahlungen II,p.188-189)O cinismo do soldado romano que se peidou no templo de uma maneira tão blasfema e politicamente provocadora encontra um equivalente do mesmo tipo no comentário que faz Jünger, comentário que passa para o campo do cinismo teórico”.

marcar artigo