NOVA ÁGUIA: REVISTA DE CULTURA PARA O SÉCULO XXI: REPÚBLICA: MEETING POINT

28-05-2010
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.Luís G. Soto & Miguel M. QuintanarDois séculos, 10 anosHá na filosofia política internacional contemporânea um debate sobre o republicanismo1 em termos não desconhecidos na tradição política espanhola —ou quiçá melhor dito hispana— dos dois últimos séculos. Podemos datar —convencionalmente, miticamente— a sua origem nas Cortes de Cádis, reunidas em 1810, e a Constituição —monárquica, mas liberal— fruto do seu trabalho promulgada em 1812.Desde essas datas a hoje vão duzentos anos, e neles podemos contabilizar, somando-os, apenas —e como máximo— 10 anos de república em Espanha.Republicanismo, republicanosDesde há mais de duzentos anos, três ideias do republicanismo, então procedentes da Revolução Francesa de 1789, são discutidas e reelaboradas na teoria e a prática políticas: a liberdade, a igualdade e a fraternidade. As três conhecem um desenvolvimento profuso espargido em diferentes correntes políticas, que se entrecruzam, nem sempre em harmonia ou em sintonia, senão com frequência divergindo entre elas. E pugnam, desde então e antes, com variados conservadorismos, tradicionalismos, etc.Liberais, progressistas, anarquistas e socialistas são as formas —entre outras— que vão adoptando essas correntes —partidos, organizações, movimentos— que tomam por eixo a liberdade, a igualdade e a fraternidade (ou solidariedade).Diferenças entre os republicanosO que os diferencia, de início e ao longo do séc. XIX, não é tanto uma especialização —a escolha preferente de um desses valores: por exemplo, a liberdade— como a maneira de entender a conjunção desses três valores republicanos. Ainda no primeiro terço do séc. XX, em que o processo de fissão é um facto consumado, as diferenças entre as esquerdas liberais e os socialistas e os anarquistas podem ser formuladas como uma questão de hierarquia e compreensão desses valores, mas não de exclusão de algum deles.Uma outra diferença, e importante, é que uns —liberais, progressistas— nascem em torno ao poder político —o estado e o governo, do qual por vezes participam— e outros —socialistas, anarquistas— originam-se por fora do poder político, no seio da sociedade, em torno ao trabalho. Estes não só não participam do governo e o estado senão que ficam excluídos deles longo tempo (socialistas) ou de raiz e por sempre (anarquistas), mas constituem um poder social.Na prática, as forças de matriz republicana rara vez convergem na acção política e/ou social: discorrem por separado e entram em concorrência, desenvolvem-se afastando-se e debilitam-se enfrentando-se. Mesmo quando convergem é rara vez sob a forma da república.Duas RepúblicasDe facto, nestes dois últimos séculos apenas houve na Espanha duas breves experiências republicanas: uma no séc. XIX, a Iª República, de começos de 1873 a finais de 1874; outra no séc. XX, a IIª República, de 1931 a 1939.Ambas as duas remataram pela força das armas: o pronunciamento do general Martínez Campos em 1874, que deu passo à restauração da monarquia, e o alçamento do general Franco em 1936, que, como não triunfou, deu lugar à Guerra Civil até 1939. Desta vez a restauração monárquica ficou, de facto e de jure, adiada até 1975. E ela implicou o retorno também da democracia.Ou seja, o retorno dos valores republicanos mas sem a forma da república.Debilidade: força transversal e expansivaEm ambas experiências, no séc. XIX e no XX, o que deu ao traste com a república foram levantamentos militares, mas também a debilidade das posições republicanas, as discrepâncias, tensões, divergências e lutas entre os próprios republicanos.Essa debilidade talvez se deva —quando menos, em alguma medida— aos traços singulares do republicanismo hispano, que é, fundamentalmente, uma ideologia transversal e expansiva... ou seja, que está um pouco por toda a parte e de facto em nenhuma e, por isso mesmo, pode estar em todas partes.Outrora e agora mesmo o republicanismo é um alhures para as agências políticas... por isso a república, que neste dealbar do séc. XXI não forma parte da agenda política, pode aparecer em qualquer momento.República: democraciaO que significa a república? Que pode significar para reaparecer em qualquer momento? Outrora baixo a ditadura franquista pôde representar o retorno da democracia... Mas agora, com a democracia estabelecida e estável mais de trinta nos, que pode reportar a república? Pois uma outra maneira de entender a democracia, que apenas se diferencia em matizes ou pormenores da monarquia democrática.Ora, isso, mais ou menos, é o que já aconteceu com a Iª e a IIª repúblicas. Nelas, esses pequenos matizes e sobretudo a determinação de leva-los a feito —de concretizá-los na realidade— significou a chegada —a apertura, o início— de uma democracia inusitada, praticamente inédita.República: nouveau régimeHistoricamente, a finais do séc. XVIII e de aí por diante, os valores republicanos supuseram um contraste e uma ruptura grandes com a cosmovisão e o regime tradicionais, o sistema político e social cujo fulcro e núcleo era a monarquia mais ou menos absoluta. No último quartel do séc. XVIII a independência dos EUA e a Revolução Francesa puseram de manifesto a viabilidade das repúblicas e dotaram de uma base real, de um referente existente, o ideário republicano. Frente ao ancien régime, o nouveau régime trazia e opunha, por toda a parte em América e Europa, a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Que não foram entendidas nem partout nem sempre da mesma maneira.Republicanismo: federalismoUma característica do republicanismo espanhol, não inicial mas também não tardia, foi atribuir a liberdade, a igualdade e a fraternidade (ou solidariedade), não apenas aos indivíduos, os cidadãos espanhóis, senão também aos povos, às nacionalidades hispanas, as colectividades —outrora países independentes— de cuja conjunção na Idade Meia e a Renascença resultara Espanha.Este reconhecimento deu-se já na Iª República, ainda que quase não teve efeitos práticos, pois aquela, proclamada em 1873, não chegou a durar dois anos (e no derradeiro voltara já ao molde unitário)2.A IIª República, entre 1931 e 1936, foi mais longe, ainda que o percorrido foi curto: só o estatuto de Catalunha teve tempo de estar vigente... pois o do País Basco, aprovado em plebiscito e logo pelas Cortes, e o da Galiza, aprovado em plebiscito pouco antes do alçamento militar, viram truncado o seu percorrido pela Guerra Civil.Unicamente a Constituição de 1978 —e a monarquia constitucional dela resultante— fez realidade o estado das autonomias.Conquista democráticaCabe dizer outro tanto da realização da liberdade, a igualdade e a fraternidade aplicadas aos indivíduos? Pois sim e não.Sim, se pensarmos no regime vigente; e mesmo historicamente esses valores foram atingindo concretização e realidade não apenas “contra” senão também “com” as monarquias.Não, porque a Iª e a IIª repúblicas implicaram uma mudança —quando menos, uma tentativa de mudança— quantitativa e qualitativa na democratização do estado e a sociedade.Convém não esquecer que o ideário republicano se desenvolveu “contra” o estado e a sociedade do antigo regime, contra os poderes (a igreja, a monarquia, a nobreza) então imperantes. Os conteúdos da liberdade, a igualdade e a solidariedade contemporâneos são produto de uma conquista. Ora, esses conteúdos começaram sendo ideias muito simples, que acharam muitas resistências e obstáculos (uma longa história de lutas —guerras incluídas—) para se desenvolver e se assentar.Liberdade: não submissão: libertaçãoDesde os inícios, a liberdade é entendida, antes de mais, como libertação: como não submissão, isto é, como “não à submissão”. Abrange, fundamentalmente, duas vertentes: a ideológica e a política. So tardiamente penetra no terreno económico. As lutas ideológica e política vão de par e libram-se nos espaços da cultura e a política. A libertação económica, no entanto, é sobretudo um processo de luta social, que tarda em se inscrever no âmbito jurídico-político.Verdadeiramente, o que acontece é que a libertação tem duas faces: uma negativa, desfazer-se das ataduras; e outra positiva, instaurar regras. Ou seja, a outra cara da libertação é a regulação. E isto é o que tarda em chegar à economia, pois as estruturas e funcionamento económicos do antigo regime e a sociedade tradicional são desgastados, arrinconados e substituídos pelo mercado, um espaço e uma mecânica escassamente regulados.Libertação com e como regulação: o império da leiNas outras duas esferas, a cultura e a política, a libertação leva consigo a regulação. Assim, a liberdade de consciência e expressão e, por outra parte, em geral as liberdades políticas exigem a delimitação e ordenação de âmbitos em que essas liberdades se tornam possíveis e efectivas.Trata-se, primeiro, de ganhar terreno aos poderes da igreja e do monarca, de fazê-los recuar, até abrir e instaurar um espaço de liberdade religiosa e política, no qual, a seguir, o sujeito (o fiel, o súbdito) deixe de estar sujeito e ser meramente passivo e possa tornar-se livre e activo. Que, ao cabo, o fiel possa vir a ser laico —e crente, se assim o quiser— e o súbdito possa converter-se em cidadão.O que implica regulação: em poucas palavras, deslocar e substituir a vontade —o arbítrio, dito em perspectiva crítica— do padre e o rei pelo império da lei.Libertação sem (ou com pouca) regulaçãoCompreende-se que a regulação não se possa transferir à economia, já que o livre jogo das forças do capital e o trabalho aparece como gerador de riqueza e motor da transformação da sociedade. Ao contrário, é mister des-regular: levantar as travas jurídico-políticas que enquadram a actividade económica, mormente “fisiocrática” (primária: agrícola, pecuária, etc.) e —ligada a esta— artesanal e comercial, e impedem o desenvolvimento produtivo, mormente industrial, e a geração de riqueza, mormente financeira.Com certeza, o mercado precisa de regulações, tanto de cima para baixo (ou seja, em favor do capital) como de baixo para cima (ou seja, em favor do trabalho). As primeiras dar-se-ão asinha, com governos liberais; as segundas tardarão muito mais, com governos progressistas. Mas compreende-se a relutância e as reticências dos governos e estados nouveau régime a intervir pelo temor a danar o alicerce da sua própria existência.Império da lei, soberania popular, igualdade perante a leiPondo de parte a economia, liberdade é pois não submissão e, em definitiva, império da lei. O que remete para a soberania popular e a igualdade perante a lei. Além de dois conceitos, esses são os factos que permitem explicar porquê o império da lei é não submissão.Por que o império da lei —a obediência às leis— não é estar submetido? Porque a lei é produto da vontade geral: é feita por todos para todos —a través dos correspondentes mecanismos de representação— (eis a soberania popular) e coloca a todos, à par artífices e sujeitos, em igual posição (eis a igualdade perante a lei).Aí temos o trânsito da liberdade à igualdade. Mas aí encontramos também uma radical desavença da república coa monarquia.Casus belli?Com efeito, o republicanismo questiona e tenciona retirar a soberania do monarca e a sua excepcionalidade —o facto de não estar sujeito a responsabilidade— perante a justiça. Por uma parte, a soberania popular permite, como muito, a monarquia por delegação ou encargo. E, por outra parte, a igualdade perante a lei não casa com o facto de que alguém —o rei, a diferença de qualquer cidadão— seja “não justiciável” (ainda que se contemple que algumas figuras políticas, governamentais e/ou estatais, precisem de um procedimento especial para serem objecto de causa judiciária).Topamos com uma questão de fundo, um litígio que afasta a república da monarquia (excepto quando o rei é, sem mais, uma figura simbólica, electiva e revogável).Igualdade perante a lei, igualdade de direitosA igualdade republicana é, em origem e antes de mais, igualdade perante a lei. O que se diz igualdade formal e não igualdade material. Inicialmente, e depois só aparentemente, o republicanismo não contempla —ou descuida ou desdenha— a desigualdade social, a diversa condição, situação e posição dos cidadãos face aos recursos económicos. Não é que fique apenas no plano jurídico, senão que há uma resistência a —para solucionar a questão social— intervir na economia. O republicanismo, quando por efeito da pressão operária —anarquista e socialista— se torna mais sensível e se vê afectado pela questão social, propõe como solução, não a igualdade material, senão a igualdade de direitos.Eis a outra face da igualdade republicana, que consiste, pois, em igualdade perante a lei e em igualdade de direitos, entendendo-se estes como os meios com que o indivíduo (e mesmo uma colectividade) pode lutar contra a sua sorte iníqua e, em geral, contra a desigualdade social. Ora, essa luta consiste sobretudo em mudar a sorte adversa, pondo em jogo o mérito e a capacidade. Sobretudo, porque não exclui alguma regulação tendente a corrigir alguma das regras do jogo ou os seus efeitos, assim como as condições (pelo menos, aquelas piores) em que se acharem alguns cidadãos.Solidariedade, beneficência, justiçaEis, aí, o terceiro valor republicano: a fraternidade ou solidariedade. Por outras palavras, mais modernas, a procura da justiça social.O republicanismo foi, desde o início, sensível à pobreza, mas nas versões liberais e progressistas confiava a solução ao desenvolvimento económico —à melhora das condições sociais como efeito dele— e como recurso complementário à beneficência, não só social, produzida espontaneamente no seio da sociedade, mas também estatal, dispensada pelo estado. Nisto coincidiram liberais e progressistas: em promover a beneficência, organizando e incentivando a social desde o estado, e mesmo em que fosse dispensada pelo estado, ainda que, andando o tempo, acabaram discrepando e divergindo acerca do papel do estado. Só tardiamente, com certeza no séc. XX, a república adquire, por obra de anarquistas e socialistas, um conteúdo social.Repúblicas federáveis, estado socialMais atenção e antes que à sorte dos indivíduos e os laços entre eles, prestaram-lha os republicanos às colectividades, em concreto àqueles povos dos quais surgira Espanha e que se achavam unificados e uniformizados sob a monarquia. A república contempla antes, e melhor, o estado federal do que o estado social. Cuida antes da sorte dos povos que da dos pobres. Abraça o federalismo, sendo no entanto reticente e resistente ao socialismo.Assim, é procurada uma refundação do estado espanhol —no sentido de hispano— sobre a base do equilíbrio e a cooperação entre as partes integrantes. Neste aspecto, a Iª e a IIª repúblicas não passaram da tentativa, mas deixaram a ideia federal, o ideal do federalismo, como um valor que permanece3. E que, parcialmente, se acha realizado no actual estado das autonomias.Também, desde a Constituição de 1978, Espanha é um estado social: “um estado social e democrático de direito”.Estado: administraçãoEstado federável, estado social: a abertura do estado aos cidadãos inicia-se antes da assunção e o desenvolvimento da solidariedade. Produz-se como consequência da liberdade e igualdade republicanas. A soberania popular e a igualdade de direitos trazem a participação —a integração— dos cidadãos no estado, seja como representantes do povo, seja como empregados do estado.Além do governo, desenvolve-se uma administração cuja estrutura e funcionamento se regem pelo direito. E é segundo as regras do direito como o estado-administração se relaciona com os cidadãos. Entrarem os cidadãos no estado e relacionarem-se todos com este sob as regras do direito favorece tanto a promoção social dos indivíduos quanto a democratização das instituições e em geral da sociedade.Margem republicanaNão apenas no texto constitucional de 1978, senão na vida política e social espanholas desde então achamos realizados os ideais e princípios republicanos: a liberdade, o império de lei, a soberania popular,...a igualdade, a igualdade perante a lei, a igualdade de direitos,... a solidariedade, a descentralização territorial, mesmo a justiça social. Todo isso achamos —obviamente, com muitos defeitos e imperfeições mesmo graves— na actual democracia, uma monarquia constitucional. O que deixa pouco espaço, escassamente uma margem, para o republicanismo e a república.Meeting pointA república hoje4 tem poucos adeptos, mas o republicanismo segue a ser, como um rio subterrâneo, uma corrente transversal e expansiva. Um ponto de encontro que se pode converter num foco de renovação da democracia espanhola. O que não deve ser é um totum revolutum, pois então a IIIª República, como as duas anteriores, não chegará muito além da tentativa, da lembrança-esperança perdida nas brumas do passado e o futuro.


.Luís G. Soto & Miguel M. QuintanarDois séculos, 10 anosHá na filosofia política internacional contemporânea um debate sobre o republicanismo1 em termos não desconhecidos na tradição política espanhola —ou quiçá melhor dito hispana— dos dois últimos séculos. Podemos datar —convencionalmente, miticamente— a sua origem nas Cortes de Cádis, reunidas em 1810, e a Constituição —monárquica, mas liberal— fruto do seu trabalho promulgada em 1812.Desde essas datas a hoje vão duzentos anos, e neles podemos contabilizar, somando-os, apenas —e como máximo— 10 anos de república em Espanha.Republicanismo, republicanosDesde há mais de duzentos anos, três ideias do republicanismo, então procedentes da Revolução Francesa de 1789, são discutidas e reelaboradas na teoria e a prática políticas: a liberdade, a igualdade e a fraternidade. As três conhecem um desenvolvimento profuso espargido em diferentes correntes políticas, que se entrecruzam, nem sempre em harmonia ou em sintonia, senão com frequência divergindo entre elas. E pugnam, desde então e antes, com variados conservadorismos, tradicionalismos, etc.Liberais, progressistas, anarquistas e socialistas são as formas —entre outras— que vão adoptando essas correntes —partidos, organizações, movimentos— que tomam por eixo a liberdade, a igualdade e a fraternidade (ou solidariedade).Diferenças entre os republicanosO que os diferencia, de início e ao longo do séc. XIX, não é tanto uma especialização —a escolha preferente de um desses valores: por exemplo, a liberdade— como a maneira de entender a conjunção desses três valores republicanos. Ainda no primeiro terço do séc. XX, em que o processo de fissão é um facto consumado, as diferenças entre as esquerdas liberais e os socialistas e os anarquistas podem ser formuladas como uma questão de hierarquia e compreensão desses valores, mas não de exclusão de algum deles.Uma outra diferença, e importante, é que uns —liberais, progressistas— nascem em torno ao poder político —o estado e o governo, do qual por vezes participam— e outros —socialistas, anarquistas— originam-se por fora do poder político, no seio da sociedade, em torno ao trabalho. Estes não só não participam do governo e o estado senão que ficam excluídos deles longo tempo (socialistas) ou de raiz e por sempre (anarquistas), mas constituem um poder social.Na prática, as forças de matriz republicana rara vez convergem na acção política e/ou social: discorrem por separado e entram em concorrência, desenvolvem-se afastando-se e debilitam-se enfrentando-se. Mesmo quando convergem é rara vez sob a forma da república.Duas RepúblicasDe facto, nestes dois últimos séculos apenas houve na Espanha duas breves experiências republicanas: uma no séc. XIX, a Iª República, de começos de 1873 a finais de 1874; outra no séc. XX, a IIª República, de 1931 a 1939.Ambas as duas remataram pela força das armas: o pronunciamento do general Martínez Campos em 1874, que deu passo à restauração da monarquia, e o alçamento do general Franco em 1936, que, como não triunfou, deu lugar à Guerra Civil até 1939. Desta vez a restauração monárquica ficou, de facto e de jure, adiada até 1975. E ela implicou o retorno também da democracia.Ou seja, o retorno dos valores republicanos mas sem a forma da república.Debilidade: força transversal e expansivaEm ambas experiências, no séc. XIX e no XX, o que deu ao traste com a república foram levantamentos militares, mas também a debilidade das posições republicanas, as discrepâncias, tensões, divergências e lutas entre os próprios republicanos.Essa debilidade talvez se deva —quando menos, em alguma medida— aos traços singulares do republicanismo hispano, que é, fundamentalmente, uma ideologia transversal e expansiva... ou seja, que está um pouco por toda a parte e de facto em nenhuma e, por isso mesmo, pode estar em todas partes.Outrora e agora mesmo o republicanismo é um alhures para as agências políticas... por isso a república, que neste dealbar do séc. XXI não forma parte da agenda política, pode aparecer em qualquer momento.República: democraciaO que significa a república? Que pode significar para reaparecer em qualquer momento? Outrora baixo a ditadura franquista pôde representar o retorno da democracia... Mas agora, com a democracia estabelecida e estável mais de trinta nos, que pode reportar a república? Pois uma outra maneira de entender a democracia, que apenas se diferencia em matizes ou pormenores da monarquia democrática.Ora, isso, mais ou menos, é o que já aconteceu com a Iª e a IIª repúblicas. Nelas, esses pequenos matizes e sobretudo a determinação de leva-los a feito —de concretizá-los na realidade— significou a chegada —a apertura, o início— de uma democracia inusitada, praticamente inédita.República: nouveau régimeHistoricamente, a finais do séc. XVIII e de aí por diante, os valores republicanos supuseram um contraste e uma ruptura grandes com a cosmovisão e o regime tradicionais, o sistema político e social cujo fulcro e núcleo era a monarquia mais ou menos absoluta. No último quartel do séc. XVIII a independência dos EUA e a Revolução Francesa puseram de manifesto a viabilidade das repúblicas e dotaram de uma base real, de um referente existente, o ideário republicano. Frente ao ancien régime, o nouveau régime trazia e opunha, por toda a parte em América e Europa, a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Que não foram entendidas nem partout nem sempre da mesma maneira.Republicanismo: federalismoUma característica do republicanismo espanhol, não inicial mas também não tardia, foi atribuir a liberdade, a igualdade e a fraternidade (ou solidariedade), não apenas aos indivíduos, os cidadãos espanhóis, senão também aos povos, às nacionalidades hispanas, as colectividades —outrora países independentes— de cuja conjunção na Idade Meia e a Renascença resultara Espanha.Este reconhecimento deu-se já na Iª República, ainda que quase não teve efeitos práticos, pois aquela, proclamada em 1873, não chegou a durar dois anos (e no derradeiro voltara já ao molde unitário)2.A IIª República, entre 1931 e 1936, foi mais longe, ainda que o percorrido foi curto: só o estatuto de Catalunha teve tempo de estar vigente... pois o do País Basco, aprovado em plebiscito e logo pelas Cortes, e o da Galiza, aprovado em plebiscito pouco antes do alçamento militar, viram truncado o seu percorrido pela Guerra Civil.Unicamente a Constituição de 1978 —e a monarquia constitucional dela resultante— fez realidade o estado das autonomias.Conquista democráticaCabe dizer outro tanto da realização da liberdade, a igualdade e a fraternidade aplicadas aos indivíduos? Pois sim e não.Sim, se pensarmos no regime vigente; e mesmo historicamente esses valores foram atingindo concretização e realidade não apenas “contra” senão também “com” as monarquias.Não, porque a Iª e a IIª repúblicas implicaram uma mudança —quando menos, uma tentativa de mudança— quantitativa e qualitativa na democratização do estado e a sociedade.Convém não esquecer que o ideário republicano se desenvolveu “contra” o estado e a sociedade do antigo regime, contra os poderes (a igreja, a monarquia, a nobreza) então imperantes. Os conteúdos da liberdade, a igualdade e a solidariedade contemporâneos são produto de uma conquista. Ora, esses conteúdos começaram sendo ideias muito simples, que acharam muitas resistências e obstáculos (uma longa história de lutas —guerras incluídas—) para se desenvolver e se assentar.Liberdade: não submissão: libertaçãoDesde os inícios, a liberdade é entendida, antes de mais, como libertação: como não submissão, isto é, como “não à submissão”. Abrange, fundamentalmente, duas vertentes: a ideológica e a política. So tardiamente penetra no terreno económico. As lutas ideológica e política vão de par e libram-se nos espaços da cultura e a política. A libertação económica, no entanto, é sobretudo um processo de luta social, que tarda em se inscrever no âmbito jurídico-político.Verdadeiramente, o que acontece é que a libertação tem duas faces: uma negativa, desfazer-se das ataduras; e outra positiva, instaurar regras. Ou seja, a outra cara da libertação é a regulação. E isto é o que tarda em chegar à economia, pois as estruturas e funcionamento económicos do antigo regime e a sociedade tradicional são desgastados, arrinconados e substituídos pelo mercado, um espaço e uma mecânica escassamente regulados.Libertação com e como regulação: o império da leiNas outras duas esferas, a cultura e a política, a libertação leva consigo a regulação. Assim, a liberdade de consciência e expressão e, por outra parte, em geral as liberdades políticas exigem a delimitação e ordenação de âmbitos em que essas liberdades se tornam possíveis e efectivas.Trata-se, primeiro, de ganhar terreno aos poderes da igreja e do monarca, de fazê-los recuar, até abrir e instaurar um espaço de liberdade religiosa e política, no qual, a seguir, o sujeito (o fiel, o súbdito) deixe de estar sujeito e ser meramente passivo e possa tornar-se livre e activo. Que, ao cabo, o fiel possa vir a ser laico —e crente, se assim o quiser— e o súbdito possa converter-se em cidadão.O que implica regulação: em poucas palavras, deslocar e substituir a vontade —o arbítrio, dito em perspectiva crítica— do padre e o rei pelo império da lei.Libertação sem (ou com pouca) regulaçãoCompreende-se que a regulação não se possa transferir à economia, já que o livre jogo das forças do capital e o trabalho aparece como gerador de riqueza e motor da transformação da sociedade. Ao contrário, é mister des-regular: levantar as travas jurídico-políticas que enquadram a actividade económica, mormente “fisiocrática” (primária: agrícola, pecuária, etc.) e —ligada a esta— artesanal e comercial, e impedem o desenvolvimento produtivo, mormente industrial, e a geração de riqueza, mormente financeira.Com certeza, o mercado precisa de regulações, tanto de cima para baixo (ou seja, em favor do capital) como de baixo para cima (ou seja, em favor do trabalho). As primeiras dar-se-ão asinha, com governos liberais; as segundas tardarão muito mais, com governos progressistas. Mas compreende-se a relutância e as reticências dos governos e estados nouveau régime a intervir pelo temor a danar o alicerce da sua própria existência.Império da lei, soberania popular, igualdade perante a leiPondo de parte a economia, liberdade é pois não submissão e, em definitiva, império da lei. O que remete para a soberania popular e a igualdade perante a lei. Além de dois conceitos, esses são os factos que permitem explicar porquê o império da lei é não submissão.Por que o império da lei —a obediência às leis— não é estar submetido? Porque a lei é produto da vontade geral: é feita por todos para todos —a través dos correspondentes mecanismos de representação— (eis a soberania popular) e coloca a todos, à par artífices e sujeitos, em igual posição (eis a igualdade perante a lei).Aí temos o trânsito da liberdade à igualdade. Mas aí encontramos também uma radical desavença da república coa monarquia.Casus belli?Com efeito, o republicanismo questiona e tenciona retirar a soberania do monarca e a sua excepcionalidade —o facto de não estar sujeito a responsabilidade— perante a justiça. Por uma parte, a soberania popular permite, como muito, a monarquia por delegação ou encargo. E, por outra parte, a igualdade perante a lei não casa com o facto de que alguém —o rei, a diferença de qualquer cidadão— seja “não justiciável” (ainda que se contemple que algumas figuras políticas, governamentais e/ou estatais, precisem de um procedimento especial para serem objecto de causa judiciária).Topamos com uma questão de fundo, um litígio que afasta a república da monarquia (excepto quando o rei é, sem mais, uma figura simbólica, electiva e revogável).Igualdade perante a lei, igualdade de direitosA igualdade republicana é, em origem e antes de mais, igualdade perante a lei. O que se diz igualdade formal e não igualdade material. Inicialmente, e depois só aparentemente, o republicanismo não contempla —ou descuida ou desdenha— a desigualdade social, a diversa condição, situação e posição dos cidadãos face aos recursos económicos. Não é que fique apenas no plano jurídico, senão que há uma resistência a —para solucionar a questão social— intervir na economia. O republicanismo, quando por efeito da pressão operária —anarquista e socialista— se torna mais sensível e se vê afectado pela questão social, propõe como solução, não a igualdade material, senão a igualdade de direitos.Eis a outra face da igualdade republicana, que consiste, pois, em igualdade perante a lei e em igualdade de direitos, entendendo-se estes como os meios com que o indivíduo (e mesmo uma colectividade) pode lutar contra a sua sorte iníqua e, em geral, contra a desigualdade social. Ora, essa luta consiste sobretudo em mudar a sorte adversa, pondo em jogo o mérito e a capacidade. Sobretudo, porque não exclui alguma regulação tendente a corrigir alguma das regras do jogo ou os seus efeitos, assim como as condições (pelo menos, aquelas piores) em que se acharem alguns cidadãos.Solidariedade, beneficência, justiçaEis, aí, o terceiro valor republicano: a fraternidade ou solidariedade. Por outras palavras, mais modernas, a procura da justiça social.O republicanismo foi, desde o início, sensível à pobreza, mas nas versões liberais e progressistas confiava a solução ao desenvolvimento económico —à melhora das condições sociais como efeito dele— e como recurso complementário à beneficência, não só social, produzida espontaneamente no seio da sociedade, mas também estatal, dispensada pelo estado. Nisto coincidiram liberais e progressistas: em promover a beneficência, organizando e incentivando a social desde o estado, e mesmo em que fosse dispensada pelo estado, ainda que, andando o tempo, acabaram discrepando e divergindo acerca do papel do estado. Só tardiamente, com certeza no séc. XX, a república adquire, por obra de anarquistas e socialistas, um conteúdo social.Repúblicas federáveis, estado socialMais atenção e antes que à sorte dos indivíduos e os laços entre eles, prestaram-lha os republicanos às colectividades, em concreto àqueles povos dos quais surgira Espanha e que se achavam unificados e uniformizados sob a monarquia. A república contempla antes, e melhor, o estado federal do que o estado social. Cuida antes da sorte dos povos que da dos pobres. Abraça o federalismo, sendo no entanto reticente e resistente ao socialismo.Assim, é procurada uma refundação do estado espanhol —no sentido de hispano— sobre a base do equilíbrio e a cooperação entre as partes integrantes. Neste aspecto, a Iª e a IIª repúblicas não passaram da tentativa, mas deixaram a ideia federal, o ideal do federalismo, como um valor que permanece3. E que, parcialmente, se acha realizado no actual estado das autonomias.Também, desde a Constituição de 1978, Espanha é um estado social: “um estado social e democrático de direito”.Estado: administraçãoEstado federável, estado social: a abertura do estado aos cidadãos inicia-se antes da assunção e o desenvolvimento da solidariedade. Produz-se como consequência da liberdade e igualdade republicanas. A soberania popular e a igualdade de direitos trazem a participação —a integração— dos cidadãos no estado, seja como representantes do povo, seja como empregados do estado.Além do governo, desenvolve-se uma administração cuja estrutura e funcionamento se regem pelo direito. E é segundo as regras do direito como o estado-administração se relaciona com os cidadãos. Entrarem os cidadãos no estado e relacionarem-se todos com este sob as regras do direito favorece tanto a promoção social dos indivíduos quanto a democratização das instituições e em geral da sociedade.Margem republicanaNão apenas no texto constitucional de 1978, senão na vida política e social espanholas desde então achamos realizados os ideais e princípios republicanos: a liberdade, o império de lei, a soberania popular,...a igualdade, a igualdade perante a lei, a igualdade de direitos,... a solidariedade, a descentralização territorial, mesmo a justiça social. Todo isso achamos —obviamente, com muitos defeitos e imperfeições mesmo graves— na actual democracia, uma monarquia constitucional. O que deixa pouco espaço, escassamente uma margem, para o republicanismo e a república.Meeting pointA república hoje4 tem poucos adeptos, mas o republicanismo segue a ser, como um rio subterrâneo, uma corrente transversal e expansiva. Um ponto de encontro que se pode converter num foco de renovação da democracia espanhola. O que não deve ser é um totum revolutum, pois então a IIIª República, como as duas anteriores, não chegará muito além da tentativa, da lembrança-esperança perdida nas brumas do passado e o futuro.

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