O Cachimbo de Magritte: Richard Zimler e a brutalidade

23-12-2009
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Richard Zimler escreve hoje no Público um extenso artigo sobre a irrelevância de responder aos comentários analfabetos de Saramago sobre o «Antigo Testamento», dedicando-lhe mais de uma dezena de longos parágrafos, contrapondo a esse analfabetismo a sua visão sobre o assunto. Não os vou reproduzir aqui, porque o essencial deles se resume assim: o «Antigo Testemento» é poesia (ou ficção, como «qualquer romance ou outra forma narrativa...»), e Saramago é incapaz de compreender que a um romance, ou a um poema, se acede de múltiplas maneiras. É incapaz de compreender, no fundo, um poema ou um romance, que, diz-nos Zimler, tem como um dos seus principais nós exegéticos a «brutalidade de Deus e da humanidade».Estamos de acordo quanto ao primarismo de Saramago. Saramago não consegue aceder à Bíblia, nem mesmo de um ponto de vista estético.Acontece que a Bíblia, acredite ou não Zimler, não é uma obra de arte. Atribuir-lhe esse estatuto é fazer violência ao texto, e não creio que essa violência seja, no fundo, essencialmente diferente da que lhe faz Saramago. A «brutalidade» de que fala, no fundo, é o sinal claro de que é o ponto de vista estético que domina o olhar de Zimler sobre a Bíblia, e a distorção que um tal ponto de vista implica fica manifesta.Acontece que a Torah, para nos atermos apenas aos cinco livros de Moisés, é, como quer dizer literalmente o seu nome hebraico, «Instrução». Instrução ética, em primeiro lugar, e não arte. É, para o dizer de outra maneira, um assunto sério.Não é preciso lembrar a Richard Zimler o lugar central que o decálogo desempenha nesses livros - Eu sou o Senhor teu Deus; Não adorarás outros deuses além de mim; Não usarás o nome de Deus em vão; Recordarás o Shabbat para o santificar; Honrararás o teu pai e a tua mãe; Não assassinarás; Não cometerás adultério; Não roubarás; Não prestarás falso testemunho contra o teu próximo; Não cobiçarás nada que seja do teu vizinho.Acontece que à Torah - e por extensão à totalidade da Bíblia - não se acede tão-pouco de um ponto de vista estritamente ético, sem incorrer na distorção que envolve necessariamente a desadequação entre o ponto de vista e o objecto visado. De facto, filosoficamente falando, é impossível sustentar o sistema ético da Bíblia, sem o reconhecimento da autoridade soberana.Acontece que o Primeiro Mandamento do decálogo tem a estranha forma sintática: Eu sou o Senhor teu Deus. Acontece, pois, que à Torah, se se quiser evitar fazer-lhe violência, não se acede sem pelo menos perscrutar o que possa ser o ponto de vista religioso. Não estou a dizer que tenha de se ser religioso para se tentar compreender a Torah, ou a totalidade da Bíblia. Eu não preciso de ser ateu para tentar compreender um ateu e fazer jus ao que ele diz, sem distorcer o que ele diz.Mas se me recusar, por princípio, a aceitar ler um texto nos termos em que ele se me propõe, então estou a cometer uma brutalidade.


Richard Zimler escreve hoje no Público um extenso artigo sobre a irrelevância de responder aos comentários analfabetos de Saramago sobre o «Antigo Testamento», dedicando-lhe mais de uma dezena de longos parágrafos, contrapondo a esse analfabetismo a sua visão sobre o assunto. Não os vou reproduzir aqui, porque o essencial deles se resume assim: o «Antigo Testemento» é poesia (ou ficção, como «qualquer romance ou outra forma narrativa...»), e Saramago é incapaz de compreender que a um romance, ou a um poema, se acede de múltiplas maneiras. É incapaz de compreender, no fundo, um poema ou um romance, que, diz-nos Zimler, tem como um dos seus principais nós exegéticos a «brutalidade de Deus e da humanidade».Estamos de acordo quanto ao primarismo de Saramago. Saramago não consegue aceder à Bíblia, nem mesmo de um ponto de vista estético.Acontece que a Bíblia, acredite ou não Zimler, não é uma obra de arte. Atribuir-lhe esse estatuto é fazer violência ao texto, e não creio que essa violência seja, no fundo, essencialmente diferente da que lhe faz Saramago. A «brutalidade» de que fala, no fundo, é o sinal claro de que é o ponto de vista estético que domina o olhar de Zimler sobre a Bíblia, e a distorção que um tal ponto de vista implica fica manifesta.Acontece que a Torah, para nos atermos apenas aos cinco livros de Moisés, é, como quer dizer literalmente o seu nome hebraico, «Instrução». Instrução ética, em primeiro lugar, e não arte. É, para o dizer de outra maneira, um assunto sério.Não é preciso lembrar a Richard Zimler o lugar central que o decálogo desempenha nesses livros - Eu sou o Senhor teu Deus; Não adorarás outros deuses além de mim; Não usarás o nome de Deus em vão; Recordarás o Shabbat para o santificar; Honrararás o teu pai e a tua mãe; Não assassinarás; Não cometerás adultério; Não roubarás; Não prestarás falso testemunho contra o teu próximo; Não cobiçarás nada que seja do teu vizinho.Acontece que à Torah - e por extensão à totalidade da Bíblia - não se acede tão-pouco de um ponto de vista estritamente ético, sem incorrer na distorção que envolve necessariamente a desadequação entre o ponto de vista e o objecto visado. De facto, filosoficamente falando, é impossível sustentar o sistema ético da Bíblia, sem o reconhecimento da autoridade soberana.Acontece que o Primeiro Mandamento do decálogo tem a estranha forma sintática: Eu sou o Senhor teu Deus. Acontece, pois, que à Torah, se se quiser evitar fazer-lhe violência, não se acede sem pelo menos perscrutar o que possa ser o ponto de vista religioso. Não estou a dizer que tenha de se ser religioso para se tentar compreender a Torah, ou a totalidade da Bíblia. Eu não preciso de ser ateu para tentar compreender um ateu e fazer jus ao que ele diz, sem distorcer o que ele diz.Mas se me recusar, por princípio, a aceitar ler um texto nos termos em que ele se me propõe, então estou a cometer uma brutalidade.

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