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03-08-2010
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"Palavras Dadas" de Maria de Lurdes Pintasilgo

Fez há poucos dias um ano que faleceu Maria de Lurdes Pintasilgo. Cá no estabelecimento assinalou-se a triste data, com um texto chamado

Ainda não li o livro, mas tive o privilégio de assistir ao lançamento desta edição póstuma com apresentação de Maria Irene Ramalho, Boaventura Sousa Santos e José Manuel Pureza, além da anfitriã Fátima Grácio, presidente da Fundação instituída por Pintasilgo. As três intervenções merecem registo, pelo que deixo a letargia dos últimos tempos e volto à escrita.

Logo na explicação do "porquê deste livro", Maria de Lurdes Pintasilgo começa por citar o poema de Carlos de Oliveira que inspira a expressão "mulher das cidades futuras":

Cantar

é empurrar o tempo ao encontro das cidades futuras

fique embora mais curta a nossa vida.

Foi precisamente com a música que José Pureza começou por comparar este livro; não com o canto, mas com o Jazz de John Coltrane, num dos seus solos endemoinhados, com vários tons e muitos improvisos, com mudanças súbitas de ritmo, com vocabulário diverso e sempre, sempre com genialidade e vistas largas. Aqueles solos que fazem o ouvinte dizer que o músico anda à procura de Deus. Aqueles livros que fazem o leitor dizer que a escritora anda à procura de Deus.

Já Maria Irene Ramalho destacou a poesia que transborda deste livro. Ele nasce dum movimento de agradecimento: "tenho uma dívida" é a frase de abertura. Desse movimento de gratidão dirigido a cada um dos participantes no livro anterior, a "Mulher das Cidades Futuras" faz nascer uma resposta pessoal. Uma resposta tão pessoal e única que é um gesto de afecto, um "aceno de bem-querer" que a levam à pergunta provocadora: "Será mesmo verdade que não há amor senão recíproco?". É assim que neste livro se resolve o paradoxo: "como fazer de um afecto uma tese?". Por isso poesia: a tese dos afectos! E também por isso pode dizer-se que se trata de um testamento espiritual de Maria de Lurdes Pintasilgo – um testamento espiritual de quem sempre soube que a espiritualidade só faz sentido quando é aliada à acção.

Destaco a reflexão dedicada a José Policarpo, bispo de Lisboa, também destaca por José Pureza. Nela, Maria de Lurdes fala da Igreja e mais propriamente da pertença à Igreja. E fala disso usando uma metáfora: as pessoas que passam ao lado da Notre Damme e que são tocadas pela imagem da catedral, cada uma a seu modo, com maior ou menor intensidade, com mais ou menos inquietação, com mais ou menos questionamento ou identificação. A partir dessa imagem, fala da pertença à Igreja como uma "fronteira indefinida e arriscada", uma fronteira definida apenas na consciência de cada um. Ou, para usar as palavras do teólogo Yves Congar, mais do que uma fronteira, um "limiar":

«Gente que passa junto ao limiar da igreja, uns pensando-se fora, outros pensando-se dentro. Mas também aqui a fronteira não existe. É um limiar e, só porque por ele passam (pelo facto de existirem naquela cidade, naquele planeta Terra, no mundo), só por isso o que é transcendente diz-lhes respeito. A diferença entre uns e outros não é redutível a "acreditar" ou "não acreditar".»

Encarar a pertença à Igreja desta forma, percebendo que os crentes não se distinguem das outras pessoas por nenhuma regra, preceito ou género de vida especial, foi um dos grandes contributos daquela geração a que chamaram

Houve outros que não lhe perdoaram. Que não lhe perdoaram estar na política com desassombro e utopia. Estar na política e saber ultrapassar a barreira entre o povo e os burocratas. Ultrapassar a partidocracia. Estar no associativismo e na militância de base e simultaneamente embrenhar-se no "sistema". Houve quem não lhe perdoasse, dos dois lados. Eu sou novo e conheço pouco da história, mas a diferença abismal entre o reconhecimento internacional desta mulher (membro do Conselho Executivo da UNESCO, membro do Conselho Directivo da Universidade das Nações Unidas, Membro do Clube de Roma, só para citar os mais sonantes) e o desprezo a que a nossa triste pátria a votou são sinais evidentes. E da imprensa nem vale a pena falar. Boaventura Sousa Santos, na sua intervenção triste mas desassombrosa, fala de "silenciamento e marginalização". No texto dirigido ao sociólogo ela diz que encontrou como justificação o seu sexo e a sua vivência da condição feminina, imperdoável na nossa "sociedade patriarcal". Boaventura discora. O mal é mais geral: em Portugal só somos felizes se não nos entendermos uns aos outros. Maria de Lurdes Pintasilgo sempre procurou fazer pontes, entendimentos – dialogar. Ultrapassou a mediocridade geral. Não lhe perdoaram.

E para não acabar com coisas tristes, lembro o único momento em que privei com Maria de Lurdes Pintasilgo. Foi na apresentação do Fez há poucos dias um ano que faleceu Maria de Lurdes Pintasilgo. Cá no estabelecimento assinalou-se a triste data, com um texto chamado "Mudar a Vida" , que merece ser relido. Surge agora em edição dos Livros Horizonte e com chancela da Fundação Cuidar O Futuro o livro "Palavras Dadas". Trata-se de um conjunto de reflexões dirigidas a cada uma das 127 (!) personalidades que escreveram a Maria de Lurdes no livro "Mulher das Cidades Futuras" a ela dedicado por ocasião do seu septuagésimo aniversário. Um conjunto de reflexões, não de respostas, já que "resposta, resposta mesmo, não há". Como diz no prefácio, "todos os meus eus são interrogativos". A busca da verdade segue trilhos incertos; sábio é quem o reconhece: "o princípio da incerteza coexiste com a procura einsteiniana de uma grande verdade".Ainda não li o livro, mas tive o privilégio de assistir ao lançamento desta edição póstuma com apresentação de Maria Irene Ramalho, Boaventura Sousa Santos e José Manuel Pureza, além da anfitriã Fátima Grácio, presidente da Fundação instituída por Pintasilgo. As três intervenções merecem registo, pelo que deixo a letargia dos últimos tempos e volto à escrita.Logo na explicação do "porquê deste livro", Maria de Lurdes Pintasilgo começa por citar o poema de Carlos de Oliveira que inspira a expressão "mulher das cidades futuras":Cantaré empurrar o tempo ao encontro das cidades futurasfique embora mais curta a nossa vida.Foi precisamente com a música que José Pureza começou por comparar este livro; não com o canto, mas com o Jazz de John Coltrane, num dos seus solos endemoinhados, com vários tons e muitos improvisos, com mudanças súbitas de ritmo, com vocabulário diverso e sempre, sempre com genialidade e vistas largas. Aqueles solos que fazem o ouvinte dizer que o músico anda à procura de Deus. Aqueles livros que fazem o leitor dizer que a escritora anda à procura de Deus.Já Maria Irene Ramalho destacou a poesia que transborda deste livro. Ele nasce dum movimento de agradecimento: "tenho uma dívida" é a frase de abertura. Desse movimento de gratidão dirigido a cada um dos participantes no livro anterior, a "Mulher das Cidades Futuras" faz nascer uma resposta pessoal. Uma resposta tão pessoal e única que é um gesto de afecto, um "aceno de bem-querer" que a levam à pergunta provocadora: "Será mesmo verdade que não há amor senão recíproco?". É assim que neste livro se resolve o paradoxo: "como fazer de um afecto uma tese?". Por isso poesia: a tese dos afectos! E também por isso pode dizer-se que se trata de um testamento espiritual de Maria de Lurdes Pintasilgo – um testamento espiritual de quem sempre soube que a espiritualidade só faz sentido quando é aliada à acção.Destaco a reflexão dedicada a José Policarpo, bispo de Lisboa, também destaca por José Pureza. Nela, Maria de Lurdes fala da Igreja e mais propriamente da pertença à Igreja. E fala disso usando uma metáfora: as pessoas que passam ao lado da Notre Damme e que são tocadas pela imagem da catedral, cada uma a seu modo, com maior ou menor intensidade, com mais ou menos inquietação, com mais ou menos questionamento ou identificação. A partir dessa imagem, fala da pertença à Igreja como uma "fronteira indefinida e arriscada", uma fronteira definida apenas na consciência de cada um. Ou, para usar as palavras do teólogo Yves Congar, mais do que uma fronteira, um "limiar":«Gente que passa junto ao limiar da igreja, uns pensando-se fora, outros pensando-se dentro. Mas também aqui a fronteira não existe. É um limiar e, só porque por ele passam (pelo facto de existirem naquela cidade, naquele planeta Terra, no mundo), só por isso o que é transcendente diz-lhes respeito. A diferença entre uns e outros não é redutível a "acreditar" ou "não acreditar".»Encarar a pertença à Igreja desta forma, percebendo que os crentes não se distinguem das outras pessoas por nenhuma regra, preceito ou género de vida especial, foi um dos grandes contributos daquela geração a que chamaram "católicos progressistas" . Maria de Lurdes Pintasilgo foi a grande figura impulsionadora dessa forma fresca de estar na comunidade eclesial, a quem devemos muito. É a essa geração que devemos a grande mudança cultural que foi desamarrar a missão da Igreja do apoio ao regime. É a essa geração que devemos a mudança, em alguns sítios ainda pouco esclarecida, de entender que a Igreja não é de direita (nem de esquerda). E que não é, não pode ser, um entrave à mudança e à liberdade, a "gloriosa liberdade dos filhos de Deus". Os conservistas não lhe perdoaram. E nem no momento da sua morte um senhor bispo soube estar presente!Houve outros que não lhe perdoaram. Que não lhe perdoaram estar na política com desassombro e utopia. Estar na política e saber ultrapassar a barreira entre o povo e os burocratas. Ultrapassar a partidocracia. Estar no associativismo e na militância de base e simultaneamente embrenhar-se no "sistema". Houve quem não lhe perdoasse, dos dois lados. Eu sou novo e conheço pouco da história, mas a diferença abismal entre o reconhecimento internacional desta mulher (membro do Conselho Executivo da UNESCO, membro do Conselho Directivo da Universidade das Nações Unidas, Membro do Clube de Roma, só para citar os mais sonantes) e o desprezo a que a nossa triste pátria a votou são sinais evidentes. E da imprensa nem vale a pena falar. Boaventura Sousa Santos, na sua intervenção triste mas desassombrosa, fala de "silenciamento e marginalização". No texto dirigido ao sociólogo ela diz que encontrou como justificação o seu sexo e a sua vivência da condição feminina, imperdoável na nossa "sociedade patriarcal". Boaventura discora. O mal é mais geral: em Portugal só somos felizes se não nos entendermos uns aos outros. Maria de Lurdes Pintasilgo sempre procurou fazer pontes, entendimentos – dialogar. Ultrapassou a mediocridade geral. Não lhe perdoaram.E para não acabar com coisas tristes, lembro o único momento em que privei com Maria de Lurdes Pintasilgo. Foi na apresentação do livro da Rita , que esteve a cargo de ambos, em Lisboa, numa sala apinhada e com o sistema de som avariado. Eu bem me esforcei por falar alto para aquela multidão. Depois começou ela. Serenamente. Não falou alto, mas não tenho qualquer dúvida que foi ouvida com toda a clareza, tal a força das suas palavras. Se os Wemans nos deixarem, um dia destes ainda publicamos aqui a sua intervenção. Para já leiam o livro, que vale bem a pena.

"Palavras Dadas" de Maria de Lurdes Pintasilgo

Fez há poucos dias um ano que faleceu Maria de Lurdes Pintasilgo. Cá no estabelecimento assinalou-se a triste data, com um texto chamado

Ainda não li o livro, mas tive o privilégio de assistir ao lançamento desta edição póstuma com apresentação de Maria Irene Ramalho, Boaventura Sousa Santos e José Manuel Pureza, além da anfitriã Fátima Grácio, presidente da Fundação instituída por Pintasilgo. As três intervenções merecem registo, pelo que deixo a letargia dos últimos tempos e volto à escrita.

Logo na explicação do "porquê deste livro", Maria de Lurdes Pintasilgo começa por citar o poema de Carlos de Oliveira que inspira a expressão "mulher das cidades futuras":

Cantar

é empurrar o tempo ao encontro das cidades futuras

fique embora mais curta a nossa vida.

Foi precisamente com a música que José Pureza começou por comparar este livro; não com o canto, mas com o Jazz de John Coltrane, num dos seus solos endemoinhados, com vários tons e muitos improvisos, com mudanças súbitas de ritmo, com vocabulário diverso e sempre, sempre com genialidade e vistas largas. Aqueles solos que fazem o ouvinte dizer que o músico anda à procura de Deus. Aqueles livros que fazem o leitor dizer que a escritora anda à procura de Deus.

Já Maria Irene Ramalho destacou a poesia que transborda deste livro. Ele nasce dum movimento de agradecimento: "tenho uma dívida" é a frase de abertura. Desse movimento de gratidão dirigido a cada um dos participantes no livro anterior, a "Mulher das Cidades Futuras" faz nascer uma resposta pessoal. Uma resposta tão pessoal e única que é um gesto de afecto, um "aceno de bem-querer" que a levam à pergunta provocadora: "Será mesmo verdade que não há amor senão recíproco?". É assim que neste livro se resolve o paradoxo: "como fazer de um afecto uma tese?". Por isso poesia: a tese dos afectos! E também por isso pode dizer-se que se trata de um testamento espiritual de Maria de Lurdes Pintasilgo – um testamento espiritual de quem sempre soube que a espiritualidade só faz sentido quando é aliada à acção.

Destaco a reflexão dedicada a José Policarpo, bispo de Lisboa, também destaca por José Pureza. Nela, Maria de Lurdes fala da Igreja e mais propriamente da pertença à Igreja. E fala disso usando uma metáfora: as pessoas que passam ao lado da Notre Damme e que são tocadas pela imagem da catedral, cada uma a seu modo, com maior ou menor intensidade, com mais ou menos inquietação, com mais ou menos questionamento ou identificação. A partir dessa imagem, fala da pertença à Igreja como uma "fronteira indefinida e arriscada", uma fronteira definida apenas na consciência de cada um. Ou, para usar as palavras do teólogo Yves Congar, mais do que uma fronteira, um "limiar":

«Gente que passa junto ao limiar da igreja, uns pensando-se fora, outros pensando-se dentro. Mas também aqui a fronteira não existe. É um limiar e, só porque por ele passam (pelo facto de existirem naquela cidade, naquele planeta Terra, no mundo), só por isso o que é transcendente diz-lhes respeito. A diferença entre uns e outros não é redutível a "acreditar" ou "não acreditar".»

Encarar a pertença à Igreja desta forma, percebendo que os crentes não se distinguem das outras pessoas por nenhuma regra, preceito ou género de vida especial, foi um dos grandes contributos daquela geração a que chamaram

Houve outros que não lhe perdoaram. Que não lhe perdoaram estar na política com desassombro e utopia. Estar na política e saber ultrapassar a barreira entre o povo e os burocratas. Ultrapassar a partidocracia. Estar no associativismo e na militância de base e simultaneamente embrenhar-se no "sistema". Houve quem não lhe perdoasse, dos dois lados. Eu sou novo e conheço pouco da história, mas a diferença abismal entre o reconhecimento internacional desta mulher (membro do Conselho Executivo da UNESCO, membro do Conselho Directivo da Universidade das Nações Unidas, Membro do Clube de Roma, só para citar os mais sonantes) e o desprezo a que a nossa triste pátria a votou são sinais evidentes. E da imprensa nem vale a pena falar. Boaventura Sousa Santos, na sua intervenção triste mas desassombrosa, fala de "silenciamento e marginalização". No texto dirigido ao sociólogo ela diz que encontrou como justificação o seu sexo e a sua vivência da condição feminina, imperdoável na nossa "sociedade patriarcal". Boaventura discora. O mal é mais geral: em Portugal só somos felizes se não nos entendermos uns aos outros. Maria de Lurdes Pintasilgo sempre procurou fazer pontes, entendimentos – dialogar. Ultrapassou a mediocridade geral. Não lhe perdoaram.

E para não acabar com coisas tristes, lembro o único momento em que privei com Maria de Lurdes Pintasilgo. Foi na apresentação do Fez há poucos dias um ano que faleceu Maria de Lurdes Pintasilgo. Cá no estabelecimento assinalou-se a triste data, com um texto chamado "Mudar a Vida" , que merece ser relido. Surge agora em edição dos Livros Horizonte e com chancela da Fundação Cuidar O Futuro o livro "Palavras Dadas". Trata-se de um conjunto de reflexões dirigidas a cada uma das 127 (!) personalidades que escreveram a Maria de Lurdes no livro "Mulher das Cidades Futuras" a ela dedicado por ocasião do seu septuagésimo aniversário. Um conjunto de reflexões, não de respostas, já que "resposta, resposta mesmo, não há". Como diz no prefácio, "todos os meus eus são interrogativos". A busca da verdade segue trilhos incertos; sábio é quem o reconhece: "o princípio da incerteza coexiste com a procura einsteiniana de uma grande verdade".Ainda não li o livro, mas tive o privilégio de assistir ao lançamento desta edição póstuma com apresentação de Maria Irene Ramalho, Boaventura Sousa Santos e José Manuel Pureza, além da anfitriã Fátima Grácio, presidente da Fundação instituída por Pintasilgo. As três intervenções merecem registo, pelo que deixo a letargia dos últimos tempos e volto à escrita.Logo na explicação do "porquê deste livro", Maria de Lurdes Pintasilgo começa por citar o poema de Carlos de Oliveira que inspira a expressão "mulher das cidades futuras":Cantaré empurrar o tempo ao encontro das cidades futurasfique embora mais curta a nossa vida.Foi precisamente com a música que José Pureza começou por comparar este livro; não com o canto, mas com o Jazz de John Coltrane, num dos seus solos endemoinhados, com vários tons e muitos improvisos, com mudanças súbitas de ritmo, com vocabulário diverso e sempre, sempre com genialidade e vistas largas. Aqueles solos que fazem o ouvinte dizer que o músico anda à procura de Deus. Aqueles livros que fazem o leitor dizer que a escritora anda à procura de Deus.Já Maria Irene Ramalho destacou a poesia que transborda deste livro. Ele nasce dum movimento de agradecimento: "tenho uma dívida" é a frase de abertura. Desse movimento de gratidão dirigido a cada um dos participantes no livro anterior, a "Mulher das Cidades Futuras" faz nascer uma resposta pessoal. Uma resposta tão pessoal e única que é um gesto de afecto, um "aceno de bem-querer" que a levam à pergunta provocadora: "Será mesmo verdade que não há amor senão recíproco?". É assim que neste livro se resolve o paradoxo: "como fazer de um afecto uma tese?". Por isso poesia: a tese dos afectos! E também por isso pode dizer-se que se trata de um testamento espiritual de Maria de Lurdes Pintasilgo – um testamento espiritual de quem sempre soube que a espiritualidade só faz sentido quando é aliada à acção.Destaco a reflexão dedicada a José Policarpo, bispo de Lisboa, também destaca por José Pureza. Nela, Maria de Lurdes fala da Igreja e mais propriamente da pertença à Igreja. E fala disso usando uma metáfora: as pessoas que passam ao lado da Notre Damme e que são tocadas pela imagem da catedral, cada uma a seu modo, com maior ou menor intensidade, com mais ou menos inquietação, com mais ou menos questionamento ou identificação. A partir dessa imagem, fala da pertença à Igreja como uma "fronteira indefinida e arriscada", uma fronteira definida apenas na consciência de cada um. Ou, para usar as palavras do teólogo Yves Congar, mais do que uma fronteira, um "limiar":«Gente que passa junto ao limiar da igreja, uns pensando-se fora, outros pensando-se dentro. Mas também aqui a fronteira não existe. É um limiar e, só porque por ele passam (pelo facto de existirem naquela cidade, naquele planeta Terra, no mundo), só por isso o que é transcendente diz-lhes respeito. A diferença entre uns e outros não é redutível a "acreditar" ou "não acreditar".»Encarar a pertença à Igreja desta forma, percebendo que os crentes não se distinguem das outras pessoas por nenhuma regra, preceito ou género de vida especial, foi um dos grandes contributos daquela geração a que chamaram "católicos progressistas" . Maria de Lurdes Pintasilgo foi a grande figura impulsionadora dessa forma fresca de estar na comunidade eclesial, a quem devemos muito. É a essa geração que devemos a grande mudança cultural que foi desamarrar a missão da Igreja do apoio ao regime. É a essa geração que devemos a mudança, em alguns sítios ainda pouco esclarecida, de entender que a Igreja não é de direita (nem de esquerda). E que não é, não pode ser, um entrave à mudança e à liberdade, a "gloriosa liberdade dos filhos de Deus". Os conservistas não lhe perdoaram. E nem no momento da sua morte um senhor bispo soube estar presente!Houve outros que não lhe perdoaram. Que não lhe perdoaram estar na política com desassombro e utopia. Estar na política e saber ultrapassar a barreira entre o povo e os burocratas. Ultrapassar a partidocracia. Estar no associativismo e na militância de base e simultaneamente embrenhar-se no "sistema". Houve quem não lhe perdoasse, dos dois lados. Eu sou novo e conheço pouco da história, mas a diferença abismal entre o reconhecimento internacional desta mulher (membro do Conselho Executivo da UNESCO, membro do Conselho Directivo da Universidade das Nações Unidas, Membro do Clube de Roma, só para citar os mais sonantes) e o desprezo a que a nossa triste pátria a votou são sinais evidentes. E da imprensa nem vale a pena falar. Boaventura Sousa Santos, na sua intervenção triste mas desassombrosa, fala de "silenciamento e marginalização". No texto dirigido ao sociólogo ela diz que encontrou como justificação o seu sexo e a sua vivência da condição feminina, imperdoável na nossa "sociedade patriarcal". Boaventura discora. O mal é mais geral: em Portugal só somos felizes se não nos entendermos uns aos outros. Maria de Lurdes Pintasilgo sempre procurou fazer pontes, entendimentos – dialogar. Ultrapassou a mediocridade geral. Não lhe perdoaram.E para não acabar com coisas tristes, lembro o único momento em que privei com Maria de Lurdes Pintasilgo. Foi na apresentação do livro da Rita , que esteve a cargo de ambos, em Lisboa, numa sala apinhada e com o sistema de som avariado. Eu bem me esforcei por falar alto para aquela multidão. Depois começou ela. Serenamente. Não falou alto, mas não tenho qualquer dúvida que foi ouvida com toda a clareza, tal a força das suas palavras. Se os Wemans nos deixarem, um dia destes ainda publicamos aqui a sua intervenção. Para já leiam o livro, que vale bem a pena.

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