NOVA ÁGUIA: REVISTA DE CULTURA PARA O SÉCULO XXI: Tréplica ao Eurico, sobre o papel da lei numa sociedade complexa

07-08-2010
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Caro Eurico:Caramba, você trouxe o mundo todo à discussão.1. De acordo em muita coisa: (a) nada de comparável entre a sociedade medieval (e os seus reis) e o absolutismo 'iluminado' ou, indo mais atrás na História, o maquiavelismo renascentista e 'europeu'; (b) nada de comparável entre a nossa presença na Índia, África e Brasil e as colónias inglesas ou holandesas; (c) de acordo com a crucial importância daquilo a que chama 'harmonização' ou 'tomada de consciência' colectiva, e que é aquilo a que os primeiros republicanos chamavam 'civismo' e os medievais chamavam 'honra', que é um conceito mais fundo... e de acordo com a 'democracia participativa'. 'Small is beautiful'.2. No meu ponto sobre 'auto-regulação' e evolução preciso de chamar a atenção para um aspecto. Vou voltar a usar um modelo simples, como o das maçãs e das galinhas, usando o seu próprio exemplo do nosso debate, sendo nós 'pessoas educadas e de princípios que não precisam de mediador ou de polícia'.2.1. Na verdade, estamos a ser mediados a dois níveis: em primeiro lugar, os nossos 'princípios' éticos são, já, um vasto vastíssimo de regras que interiorizámos; tal como no famoso exemplo do andar de bicicleta, 'sabemos como fazer' (know-how) mas muito dificilmente poderíamos explicitar num manual de instruções 'o que' fazer (know-what): é por isso que se aprende a andar de bicicleta... andando (e não, lendo livros). Isto é uma mediação, queiramos ou não, e isto são regras que nenhum Legislador ou Político inventou. Não foram dadas 'prontas a usar', como as Tábuas da Lei do mítico Moisés, e não o foram porque são, digamos assim, muito mais complexas do que aquilo que um cérebro (ou um comité de cérebros, e lembro-me da frase patusca do Churchill sobre o camelo que é um cavalo desenhado por um comité) é capaz de produzir conscientemente.2.2. Temos outra instãncia de mediação: o Renato, o Paulo Borges, ou quem seja administrador do blog, e que nos podem 'desligar' se nos portarmos mal (é irrelevante que o queiram ou não fazer, interessa que têm esse poder de facto). Para além de nos desligarem, os administradores do blog são também dirigentes do MIL, etc, e portanto guiam-se por objectivos mais 'amplos'. São, para todos os efeitos, a 'instância política' aqui presente. Também eles estabeleceram 'regras de uso do blog' (por exemplo quanto às cores a usar no texto).2.3. Cada uma das duas 'instâncias de mediação' está presente, mas as regras de uma e de outra são essencialmente diferentes na sua própria natureza: as nossas 'regras interiores' são IMPLICITAS, as regras políticas são EXPLICITAS e podem ser decisões AD-HOC (por exemplo, o Renato diz-nos 'parem com essa conversa que não interessa nem ao Menino Jesus').2.4. Ora bem: o Direito, hoje em dia, é visto como uma coisa próxima da tal 'instância política', uma forma de 'dirigir' a sociedade'; mas o Direito foi visto, tradicionalmente (e assim na Idade Média) como uma forma de explicitar as regras implícitas de governo da sociedade, e não mais do que isso. Efeito prático? Nem o Rei podia inventar uma lei (aqui nasceu a ideia de 'constituição', ou 'leis fundamentais', que nem o Rei podia alterar)2.5. Agora talvez possa ficar claro o objectivo desta argumentação: no desenvolvimento ou na explicitação gradual de um sistema de regras de 'justo comportamento', é fundamental que os 'explicitadores' (juízes) sejam imparciais. Que, tanto quanto possível, tenham a atitude do cientista, e não a atitude do chefe de exércitos. Que não queiram orientar os nossos comportamentos, mas descobrir as regras que nos orientam. Que sejam árbitros, e não jogadores. E é por isso que, se na nossa discussão concluíssemos que os 'princípios morais' não bastavam (não porque os não tenhamos; mas sim porque podemos aplicá-los de maneira diferente) e se concluíssemos que era bom ter um árbitro a balizar a discussão, será completamente diferente dizermos:- "Que um dos coordenadores do MIL seja o árbitro; ele sabe o que é melhor para o MIL"; ou dizermos:- "Que sejam escolhidos três dos nossos confrades, com larga experiência em discussões em blogs; que não se deixem guiar por outros critérios que não o de manter a discussão dentro das regras de cortesia, sem querer saber qual de nós vai 'ganhar'; que se mantenham no seu papel de árbitros mesmo que esta discussão, por mais insólito que isso agora nos pareça, faça surgir e triunfar pontos de vista que agora nos parecem bizarros, e que talvez se não quadrem na Declaração de Princípios e Objetivos do MIL".No primeiro caso, estamos a pensar como uma organização, ou seja, como um grupo de pessoas com uma finalidade comum; no segundo, como uma ordem, ou seja, como um grupo de pessoas reunidas em torno de valores comuns, mas sem um objectivo 'político'. O MIL é uma organização, tem objectivos; a sociedade não é uma (leninistas e fascistas pensam que sim), mas antes um espaço em que, balizadamente, cada um tem os seus particulares objectivos. Ou seja, um espaço de liberdade.2.6. Meu caro Eurico, suponhamos que vamos em frente com a sua ideia das 'Festas catárticas', não só como ideia intelectual - isto é, que temos condições 'políticas' para as criar na prática; e que eu digo assim: "precisamos de pessoas a quem caiba definir, progressivamente, as regras dessas festas (serão anuais? poderão os trabalhadores faltar ao trabalho nesse dia sem serem despedidos? poderão as crianças de 15 anos beber álcool nessa noite? deveremos impedir casais homosexuais de nelas participar?)". E que, a seguir, digo assim: "proponho que o Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa nomeie as pessoas a quem caberá definir essas regras". Eu penso que você clamaria 'Batota!'. E o mesmo se a definição das regras coubesse, digamos, aos donos da Super Bock.2.7. Agora suponha, Eurico, que durante duzentos anos tínhamos as suas 'festas' milimetricamente organizadas por um comité integrado pelo Cardeal, pelo dono da Super Bock e pelo Chefe da Polícia. Obviamente, a honestidade manda que digamos 'isto nem são festas, nem são catárticas. As regras que estes senhores definiram durante dois séculos devem ir todas para o lixo, e vamos fazer uma festa a sério'. Claro. A questão mantém-se, e quem define as novas regras? Teoricamente, a melhor solução seria fazer a festa primeiro, ter pessoas independentes a ver o que se passava e gradualmente deixar essas pessoas descobrir as melhores regras. Daqui a 50 anos, com sorte, teríamos já um acumular de experiência considerável (já descobrimos, por exemplo, que talvez os bombeiros não devam entrar em catarse).2.8. Mais uma vez, percebamos que a sociedade global não é uma organização simples, mas um sistema de altíssima complexidade. As regras que nos regem ou nos deviam reger não estão ao alcance da sapiência de dois ou três sábios. Podem ser descobertas, mas isso demora tempo. Mandámos fora o Cardeal, a Super Bock e a Polícia; se quisermos, podemos propor que toda a sociedade seja uma grande festa catártica durante uns tempos (receio que a experiência seja desagradável). Ou entao nomeamos um novo Cardeal. Este é o dilema em que nos encontramos, e agora saio dos pequenos modelos que usei e volto à discussão dos problemas reais. O sistema legal que temos, a Lei como criação de políticos legisladores, produziu coisas absurdas. Não temos cem anos de solidao à nossa frente para redescobrir as regras que devíamos ter mantido e desenvolvido; a 'crise' politica, financeira, ecológica, espiritual, está aí à vista de todos; não acredito no poder absoluto dos Cardeais, mesmo que não sejam da Igreja Católica; não é possível pôr sete biliões de pessoas em assembleia permanente; a catarse vai começar, e os bombeiros não sabem se hão-de pegar no tradicional machado (palavra aziaga neste blog) ou na máscara de Baco, o Deus do Vinho; a 'honra' e o 'sentimento cívico' não levam necessariamente a que tenhamos o mesmo comportamento e à ultrapassagem dos conflitos; os Avatares do nosso amigo Júlio tardam a manifestar-se, a Senhora de Fátima também. No fundo, a questão é que para construir um barco convém ter um estaleiro em terra firme, e nós estamos no alto mar. Moral de toda esta história? Não usemos a lei como instrumento político da transformação que queremos que a sociedade tenha. Não desprezemos a 'auto-regulação' dos sistemas sociais como se fosse uma intrujice de Wall Street. Não sigamos ideias de 'transformação da sociedade segundo quatro ou cinco regras que escrevi aqui num papel'. Percebamos que já não há tempo para não fazer nada, e já não há tempo para fazer o que devia ter sido feito há muito. Que essa é a verdadeira crise. E não tenhamos medo, 'venha o que vier'. Mas a serenidade, num navio, quando ausente dos ventos, tem que residir no coração dos tripulantes. E mais do que isto não sei dizer.


Caro Eurico:Caramba, você trouxe o mundo todo à discussão.1. De acordo em muita coisa: (a) nada de comparável entre a sociedade medieval (e os seus reis) e o absolutismo 'iluminado' ou, indo mais atrás na História, o maquiavelismo renascentista e 'europeu'; (b) nada de comparável entre a nossa presença na Índia, África e Brasil e as colónias inglesas ou holandesas; (c) de acordo com a crucial importância daquilo a que chama 'harmonização' ou 'tomada de consciência' colectiva, e que é aquilo a que os primeiros republicanos chamavam 'civismo' e os medievais chamavam 'honra', que é um conceito mais fundo... e de acordo com a 'democracia participativa'. 'Small is beautiful'.2. No meu ponto sobre 'auto-regulação' e evolução preciso de chamar a atenção para um aspecto. Vou voltar a usar um modelo simples, como o das maçãs e das galinhas, usando o seu próprio exemplo do nosso debate, sendo nós 'pessoas educadas e de princípios que não precisam de mediador ou de polícia'.2.1. Na verdade, estamos a ser mediados a dois níveis: em primeiro lugar, os nossos 'princípios' éticos são, já, um vasto vastíssimo de regras que interiorizámos; tal como no famoso exemplo do andar de bicicleta, 'sabemos como fazer' (know-how) mas muito dificilmente poderíamos explicitar num manual de instruções 'o que' fazer (know-what): é por isso que se aprende a andar de bicicleta... andando (e não, lendo livros). Isto é uma mediação, queiramos ou não, e isto são regras que nenhum Legislador ou Político inventou. Não foram dadas 'prontas a usar', como as Tábuas da Lei do mítico Moisés, e não o foram porque são, digamos assim, muito mais complexas do que aquilo que um cérebro (ou um comité de cérebros, e lembro-me da frase patusca do Churchill sobre o camelo que é um cavalo desenhado por um comité) é capaz de produzir conscientemente.2.2. Temos outra instãncia de mediação: o Renato, o Paulo Borges, ou quem seja administrador do blog, e que nos podem 'desligar' se nos portarmos mal (é irrelevante que o queiram ou não fazer, interessa que têm esse poder de facto). Para além de nos desligarem, os administradores do blog são também dirigentes do MIL, etc, e portanto guiam-se por objectivos mais 'amplos'. São, para todos os efeitos, a 'instância política' aqui presente. Também eles estabeleceram 'regras de uso do blog' (por exemplo quanto às cores a usar no texto).2.3. Cada uma das duas 'instâncias de mediação' está presente, mas as regras de uma e de outra são essencialmente diferentes na sua própria natureza: as nossas 'regras interiores' são IMPLICITAS, as regras políticas são EXPLICITAS e podem ser decisões AD-HOC (por exemplo, o Renato diz-nos 'parem com essa conversa que não interessa nem ao Menino Jesus').2.4. Ora bem: o Direito, hoje em dia, é visto como uma coisa próxima da tal 'instância política', uma forma de 'dirigir' a sociedade'; mas o Direito foi visto, tradicionalmente (e assim na Idade Média) como uma forma de explicitar as regras implícitas de governo da sociedade, e não mais do que isso. Efeito prático? Nem o Rei podia inventar uma lei (aqui nasceu a ideia de 'constituição', ou 'leis fundamentais', que nem o Rei podia alterar)2.5. Agora talvez possa ficar claro o objectivo desta argumentação: no desenvolvimento ou na explicitação gradual de um sistema de regras de 'justo comportamento', é fundamental que os 'explicitadores' (juízes) sejam imparciais. Que, tanto quanto possível, tenham a atitude do cientista, e não a atitude do chefe de exércitos. Que não queiram orientar os nossos comportamentos, mas descobrir as regras que nos orientam. Que sejam árbitros, e não jogadores. E é por isso que, se na nossa discussão concluíssemos que os 'princípios morais' não bastavam (não porque os não tenhamos; mas sim porque podemos aplicá-los de maneira diferente) e se concluíssemos que era bom ter um árbitro a balizar a discussão, será completamente diferente dizermos:- "Que um dos coordenadores do MIL seja o árbitro; ele sabe o que é melhor para o MIL"; ou dizermos:- "Que sejam escolhidos três dos nossos confrades, com larga experiência em discussões em blogs; que não se deixem guiar por outros critérios que não o de manter a discussão dentro das regras de cortesia, sem querer saber qual de nós vai 'ganhar'; que se mantenham no seu papel de árbitros mesmo que esta discussão, por mais insólito que isso agora nos pareça, faça surgir e triunfar pontos de vista que agora nos parecem bizarros, e que talvez se não quadrem na Declaração de Princípios e Objetivos do MIL".No primeiro caso, estamos a pensar como uma organização, ou seja, como um grupo de pessoas com uma finalidade comum; no segundo, como uma ordem, ou seja, como um grupo de pessoas reunidas em torno de valores comuns, mas sem um objectivo 'político'. O MIL é uma organização, tem objectivos; a sociedade não é uma (leninistas e fascistas pensam que sim), mas antes um espaço em que, balizadamente, cada um tem os seus particulares objectivos. Ou seja, um espaço de liberdade.2.6. Meu caro Eurico, suponhamos que vamos em frente com a sua ideia das 'Festas catárticas', não só como ideia intelectual - isto é, que temos condições 'políticas' para as criar na prática; e que eu digo assim: "precisamos de pessoas a quem caiba definir, progressivamente, as regras dessas festas (serão anuais? poderão os trabalhadores faltar ao trabalho nesse dia sem serem despedidos? poderão as crianças de 15 anos beber álcool nessa noite? deveremos impedir casais homosexuais de nelas participar?)". E que, a seguir, digo assim: "proponho que o Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa nomeie as pessoas a quem caberá definir essas regras". Eu penso que você clamaria 'Batota!'. E o mesmo se a definição das regras coubesse, digamos, aos donos da Super Bock.2.7. Agora suponha, Eurico, que durante duzentos anos tínhamos as suas 'festas' milimetricamente organizadas por um comité integrado pelo Cardeal, pelo dono da Super Bock e pelo Chefe da Polícia. Obviamente, a honestidade manda que digamos 'isto nem são festas, nem são catárticas. As regras que estes senhores definiram durante dois séculos devem ir todas para o lixo, e vamos fazer uma festa a sério'. Claro. A questão mantém-se, e quem define as novas regras? Teoricamente, a melhor solução seria fazer a festa primeiro, ter pessoas independentes a ver o que se passava e gradualmente deixar essas pessoas descobrir as melhores regras. Daqui a 50 anos, com sorte, teríamos já um acumular de experiência considerável (já descobrimos, por exemplo, que talvez os bombeiros não devam entrar em catarse).2.8. Mais uma vez, percebamos que a sociedade global não é uma organização simples, mas um sistema de altíssima complexidade. As regras que nos regem ou nos deviam reger não estão ao alcance da sapiência de dois ou três sábios. Podem ser descobertas, mas isso demora tempo. Mandámos fora o Cardeal, a Super Bock e a Polícia; se quisermos, podemos propor que toda a sociedade seja uma grande festa catártica durante uns tempos (receio que a experiência seja desagradável). Ou entao nomeamos um novo Cardeal. Este é o dilema em que nos encontramos, e agora saio dos pequenos modelos que usei e volto à discussão dos problemas reais. O sistema legal que temos, a Lei como criação de políticos legisladores, produziu coisas absurdas. Não temos cem anos de solidao à nossa frente para redescobrir as regras que devíamos ter mantido e desenvolvido; a 'crise' politica, financeira, ecológica, espiritual, está aí à vista de todos; não acredito no poder absoluto dos Cardeais, mesmo que não sejam da Igreja Católica; não é possível pôr sete biliões de pessoas em assembleia permanente; a catarse vai começar, e os bombeiros não sabem se hão-de pegar no tradicional machado (palavra aziaga neste blog) ou na máscara de Baco, o Deus do Vinho; a 'honra' e o 'sentimento cívico' não levam necessariamente a que tenhamos o mesmo comportamento e à ultrapassagem dos conflitos; os Avatares do nosso amigo Júlio tardam a manifestar-se, a Senhora de Fátima também. No fundo, a questão é que para construir um barco convém ter um estaleiro em terra firme, e nós estamos no alto mar. Moral de toda esta história? Não usemos a lei como instrumento político da transformação que queremos que a sociedade tenha. Não desprezemos a 'auto-regulação' dos sistemas sociais como se fosse uma intrujice de Wall Street. Não sigamos ideias de 'transformação da sociedade segundo quatro ou cinco regras que escrevi aqui num papel'. Percebamos que já não há tempo para não fazer nada, e já não há tempo para fazer o que devia ter sido feito há muito. Que essa é a verdadeira crise. E não tenhamos medo, 'venha o que vier'. Mas a serenidade, num navio, quando ausente dos ventos, tem que residir no coração dos tripulantes. E mais do que isto não sei dizer.

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